ARRENDAMENTO
OBRAS DE CONSERVAÇÃO ORDINÁRIA
CONFRONTAÇÕES
ÁREA
PROVAS
Sumário

I - As obras de conservação ordinária são obras sem as quais o arrendatário fica impossibilitado de gozar o locado para habitação.
II - Exemplos destas obras são a reparação ou substituição da caixa de esgotos de um prédio, substituição de soalhos e pavimentos ou canalizações, pintura geral das paredes, etc.
III - Tratando-se de pequenos trabalhos, pequenas consertos de pouco relevo necessários à manutenção do locado e, ao seu bom funcionamento, como apertar um parafuso para evitar que a trave de uma persiana se solte, olear as dobradiças para que as portas, ou janelas não emperrem, arranjar uma torneira que encrava, desentupir as bancas no dia a dia para evitar entupimentos maiores, colar de um taco que se solta do seu lugar para evitar o desprendimento dos restantes de forma precoce, substituir um vidro que se partiu inadvertidamente, não são obras de carácter geral, mas pormenores isolados.
IV - São um sem número de actuações que qualquer locatário deverá observar tendo em conta um uso cauteloso e prevenido, ou nas palavras da lei uma prudente utilização.

Texto Integral

Apelação nº 737.08.2
Relatora: Maria Eiró
Adjuntos: João Proença e Carlos Moreira


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. – B……… propôs a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário, contra C………. e, como herdeiros de D………., E………., F……… e G………., alegando que:
– Deu de arrendamento aos réus uma fracção de um prédio seu;
– O locado apresenta deteriorações;
– Os Réus colocaram bens seus junto às escadas comuns do edifício;
– Os Réus mantêm um canídeo no locado;
– O contrato escrito celebrado proíbe expressamente a manutenção de animais domésticos e coloca a cargo do inquilino a realização das obras necessárias a repara os estragos descritos.
Conclui pedindo que os Réus sejam condenados, a:
– Proceder à reparação dos estragos descritos;
– Não manterem no arrendado qualquer animal doméstico;
– Desocuparem de bens seus o espaço junto às escadas comuns do edifício.
A Ré contestou alegando que:
– Sempre utilizou prudentemente o locado, sendo as obras da responsabilidade do senhorio;
– São do senhorio os bens colocados junto às escadas comuns do edifício;
– Já possui o canídeo há 8 anos, com conhecimento e autorização dos senhorios, tendo criado com ele laços afectivos.
Respondeu o Autor reiterando a sua pretensão inicial.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com a observância do ritualismo legal, após o que se decidiu sobre a matéria, conforme o despacho de fls. 214.

«»
Oportunamente foi proferida sentença em que se decidiu:
“Pelo exposto, julgo a acção parcialmente provada e procedente e, em conformidade:
– Condeno a Ré C………. a remover imediatamente os supra referidos bens colocados no espaço junto à caixa das escadas no rés-do-chão, desocupando-o;
– Absolvo, no mais, as Rés C………., E………., F………. e G………. dos pedidos formulados por B………. .
Custas a cargo da Ré C……….o, na proporção de 10%, e, no mais, a cargo do Autor – sem prejuízo de Apoio Judiciário.
Registe e notifique”.
«»
Desta sentença apelou o autor B………., concluindo nas suas alegações:
1. “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos”… (art. 405º, nº 1 do CC), sendo que “o contrato deve ser pontualmente cumprido”… (ibidem, art. 406º, nº 1).
2. “Onde não se trate de normas imperativas as partes podem dar à relação locatícia conteúdo diverso do conteúdo legal. (…) Ora, são imperativas as normas que visam tutelar interesses públicos e as que pretendem proteger o arrendatário contra a sua fraqueza – sobretudo económica – em relação ao senhorio”.
3. Os interesses que estão em jogo nas disposições sob os nºs Sétimo, Oitavo e Nono do contrato de arrendamento junto aos autos, só aos próprios (proprietários e ou inquilinos) respeitam ou interessam.
4. No que respeita ao pedidos de reparação enunciados sob as als. a), b) e c) da PI, trata-se de danificações ou avarias provocadas pela Arrendatária, e que contratualmente são da sua responsabilidade.
5. “Na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu… (C.C., art. 1043º, nº 1).
6. Compete ao Inquilino manter o arrendado em bom estado de conservação e limpeza, agindo diligentemente e cuidando bem dos soalhos, paredes interiores, portas, janelas e persianas, e procedendo à sua regular conservação e manutenção.
7. No que respeita ao pedido enunciado na al. d) da PI, não é aplicável o disposto no art. 829º do CC, porquanto não estamos em processo executivo; apenas se peticionou uma condenação, à qual, sendo favorável e se não cumprida, se seguirá a execução.
8. Estamos perante uma obrigação assumida pela R. no contrato de arrendamento, obrigação esta que, resulta dos autos, está a ser por ela violada.
9. A douta Sentença violou os comandos dos arts. 405º, 406º, 829º e 1043º, todos do CC.
«»
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões das alegações a questão a decidir consiste em saber se as obras peticionadas pelo autor senhorio contra o arrendatário são da responsabilidade deste.
«»
Os Factos Provados.
Factos provados
1.º – Por documento assinado em 1 de Julho de 1975, junto a fls. 5 e 6, que aqui se dá por integralmente transcrito, os Réus declararam tomar de arrendamento o 1.º Andar do prédio urbano sito na Rua ………., n.º …., Porto, tendo a proprietária à data declarado dá-lo de arrendamento.
2.º – Neste documento consta, além do mais:
«SÉTIMO – Cabe ao inquilino ter sempre o apartamento em bom estado de conservação; igualmente o inquilino será responsável pela manutenção em bom estado de funcionamento dos aparelhos e utensílios; qualquer avaria nos móveis, aparelhos ou utensílios deverá ser prontamente reparada pelo inquilino e por sua conta.
OITAVO - O inquilino logo que ocupe o apartamento deve verificar o seu estado e bem assim o dos móveis e utensílios, e comunicar, por escrito, ao senhorio, dentro de 48 horas, se encontrou alguma coisa em mau estado ou avariada. Se o não fizer, entende-se que tudo está em ordem, não podendo para futuro alegar em sua defesa qualquer defeito já existente. (…)
DÉCIMO – Todas as limpezas e reparações interiores, incluindo (…) consertos de persianas, reparações de canalizações e de instalações sanitárias de água e luz ficam a cargo do inquilino (…). São proibidos animais domésticos».
3.º – O documento junto a fls. 5 e 6 foi preenchido pelas partes nos espaços sublinhados “.............”, já estando, no mais, pré-elaborado.
4.º – A fracção foi arrendada à Ré ……, contendo os móveis referidos na lista anexa ao contrato de arrendamento.
5.º – O Autor tem registada a seu favor a aquisição de todo o imóvel onde se encontra o locado.
6.º – No pavimento do arrendado, há tacos soltos, designadamente no corredor e quartos.
7.º – As canalizações das redes de água e esgotos que servem o arrendado apresentam entupimentos, designadamente as que servem a banca da cozinha e uma das casas de banho.
8.º – O locado tem persianas avariadas, não funcionando.
9.º – A Ré mantém no arrendado um canídeo, local onde este também come e dorme.
10.º – A Ré colocou e mantém armazenados bens por si detidos, como seus, junto à caixa das escadas, no rés-do-chão.
11.º – O Autor remeteu à Ré a carta datada de 19 de Outubro de 2004, junta a fls.
13, que aqui se dá por transcrita.
12.º – O edifício já data, pelo menos, desde os anos 60, ocupando a Ré o locado desde Julho de 1975.
13.º – No decurso deste período não foram efectuadas pelo proprietário quaisquer obras no interior do locado.
14.º – Paredes do locado já foram pintadas a mando da Ré.
15.º – Numa visita efectuada ao apartamento do 2.º andar, um funcionário do Autor não notou tacos soltos no chão.
16.º – O cão em causa vive com a Ré há mais de 8 anos.
17.º – A Ré tem laços afectivos com o cão.
«»
O recurso.
Estamos no âmbito de um contrato de arrendamento e o recurso centra-se no pedido que o autor, enquanto senhorio, formulou contra os réus pedindo a sua condenação a proceder à reparação do pavimento, reparação das redes de aguas e esgotos que servem o arrendado, designadamente ao desentupimento das que servem a banca de lava louças da cozinha e uma das casas de banho; proceder à reparação das persianas que equipam o arrendado, recolocando-o em funcionamento.
O recorrente sustenta o seu pedido no artº.1043º C.C.
Pedido que foi julgado improcedente por a sentença recorrida entender que a cláusula contratual estabelecida no contrato não tinha o poder de libertar o senhorio do dever de pagar ao inquilino as obras peticionadas e que lhe compete fazer nos termos gerais do artº 1031º do CC e 11º do RAU.
A questão centra-se na problemática das obras necessárias à satisfação do gozo do locado pelo arrendatário e na respectiva responsabilidade – a cargo do senhorio ou do arrendatário?
Do art.1031º, b), resulta a obrigação do locador de efectuar as reparações necessárias ao cumprimento da obrigação, aí referida, de assegurar ao locatário o gozo da coisa locada.
O contrato dos autos dos foi celebrado em 1975 e, foi estabelecida uma clausula contratual do seguinte teor, “todas as limpezas e reparações interiores, incluindo (…) consertos de persianas, reparações de canalizações e de instalações sanitárias de água e luz ficam a cargo do inquilino”.
Esta cláusula contratual fazia parte de pratica corrente da altura em que as partes estipulavam que as obras de conservação interior ficavam a cargo do arrendatário e as de conservação exterior a cargo do senhorio.
A partir do Dec-Lei nº 46/85 passou a estar a cargo do senhorio o dever de proceder a obras de conservação ordinária do prédio, nos termos do seu artº 16º.
O RAU veio consagrar no seu artº 12º nº1 essa regra, mas saliente-se sem prejuízo do que dispõe artº 1043º do C. Civil, ou seja sobre o dever do locatário de manter e restituir o prédio no estado em que o recebeu, presumindo-se o seu bom estado, e do artº 4º do mesmo RAU sobre as pequenas deteriorações tidas por lícitas executada pelo arrendatário para assegurar o seu conforto e comodidade.
De acordo com o RAU as obras de conservação ordinária estão enumeradas no artº 11ºe compreendem:
“a) A reparação e limpeza geral do prédio e suas dependências;
b) As obras impostas pela Administração Pública nos termos da lei geral ou local e as que visem conferirem ao prédio as características apresentadas aquando da cessão da licença de utilização;
c) Em geral as destinadas a manter o prédio as condições requeridas pelo fim do contrato e existentes à data da sua celebração”
No âmbito do RAU como é sabido discutia-se na doutrina e na jurisprudência se as partes podiam estipular no contrato ficarem tais obras de conservação do prédio a cargo do locatário, por outras palavras se a cláusula ínsita no contrato é valida.
Romano Martinez defendia a validade de uma tal cláusula, mesmo no arrendamento habitacional, visto não contrariar nenhuma disposição legal e não ofender princípios fundamentais do respectivo regime de arrendamento. (Contratos em Especial, 2ª ed., 248, nota 13) - Ac da R Évora de 25/02/1999. Col.Jur 1999, Tº V, 274, Ac deste Supremo de 15/11/1998, BMJ 481º, 484,
Opinião contraria e a predominante, no sentido da ilicitude de clausula contratual neste sentido, era sustentada por Aragão Seia (Arrendamento Urbano 7ª ed., 213) o qual refere resultar o contrário do artº 12º do RAU e ainda dos artºs 13 (obras de conservação extraordinária) e 40ºdo mesmo diploma e ainda o artº 1030º do C Civil, este reportado aos encargos da coisa locada, preceituando que ficam sempre a cargo do locador, sem embargo de estipulação em contrário”. No mesmo sentido Menezes Leitão (Direito das Obrigações, Vol III, 315) de A.Varela (RLJ, anos 100º, 379 e 119º, 276) (partindo da interpretação dos normativos conjugados dos artº 1031º, aln b) e 1043º,nº1 do CC, ou seja, a estipulação em contrário, quererá significar “ embora o contrário tenha sido acordado”) – cf. neste sentido Ac da R Coimbra de 9/11/2005, CJ 2005, Tº V, 9 “ o locador é obrigado a realizar todas as reparações ou outras despesas essenciais ou indispensáveis para assegurar o gozo da coisa locada, de harmonia com o fim contratual quer a sua necessidade resulte do simples desgaste do tempo, de caso fortuito ou de facto de terceiro”.
O regime do RAU veio com o artº 120º na redacção introduzida pelo Dec. Lei 257/95, de 30 de Setembro, permitir para o arrendamento comercial ou industrial, que as partes convencionassem, “por escrito”, que qualquer dos tipos de obras a que se referia o art. 11º do RAU ficassem a cargo do arrendatário.
O NRAU veio estabelecer no seu art. 1074º do CC como retorno ao princípio da autonomia da vontade das partes a possibilidade de cláusula contratual das obras de conservação a cargo do senhorio ou do arrendatário. Se nada for estipulado são da responsabilidade do senhorio.
Vejamos os factos dos autos.
– No pavimento do arrendado, há tacos soltos, designadamente no corredor e quartos.
– As canalizações das redes de água e esgotos que servem o arrendado apresentam entupimentos, designadamente as que servem a banca da cozinha e uma das casas de banho.
- O locado tem persianas avariadas, não funcionando.
O problema que se coloca consiste em saber se estes factos configuram obras de conservação ordinária, ou se pelo contrário constituem reparações que caem no âmbito do artº 1043º do CC, ou seja, as resultantes de uma habitação imprudente e desleixada, não resultando de mero desgaste e erosão dos materiais proveniente do decurso do tempo ou da sua resistência.
Se concluirmos que se configuram estas ultimas o arrendatário é responsável pela sua realização, independentemente da existência e validade de tal cláusula contratual.
As obras de conservação ordinária são obras sem as quais o arrendatário fica impossibilitado de gozar o locado para habitação. Exemplos destas obras são a reparação ou substituição da caixa de esgotos de um prédio, substituição de soalhos e pavimentos ou canalizações, pintura geral das paredes, etc.
Entendemos que os factos dos autos não integram o conceito de obras de conservação no sentido que a lei lhe confere. Tratam-se de pequenos trabalhos, pequenas consertos de pouco relevo necessários à manutenção do locado e, ao seu bom funcionamento, (as mais das vezes realizadas pelo próprio residente). Estão neste caso o apertar um parafuso para evitar que a trave de uma persiana se solte, olear as dobradiças para que as portas, ou janelas não emperrem, arranjar uma torneira que encrava, desentupir as bancas no dia a dia para evitar entupimentos maiores, colocação de um taco que se solta no seu lugar para evitar o desprendimento dos restantes de forma precoce, substituir um vidro que se partiu inadvertidamente. Não são obras de carácter geral. Mas pormenores isolados. Enfim um sem número de actuações que qualquer locatário deverá observar tendo em conta um uso cauteloso e prevenido, ou nas palavras da lei uma prudente utilização.
Ora no caso dos autos não foi o que aconteceu. Os estragos decorrem da falta de normal utilização do prédio neste sentido e que se enquadram naquelas deteriorações que caem no âmbito do art. 1043º do CC, ou seja danos e avarias diminutos que de acordo com o princípio geral da boa fé (cf.art 762º do CC), são exigidos e impostos ao locatário cuidadoso, prudente e diligente. Estes danos não são em si mesmos estorvos ao uso e ao gozo normal do locado (podem evoluir para danos mais graves susceptíveis de o impedir).
Ao não realizar estas reparações os réus não fazem uma utilização prevenida, cuidada e ponderada e, como tal são obrigados à sua reparação.
Neste sentido o Ac. do STJ de 19.3.92, in www.dgsi.pt, “as obras de conservação impedem sobre o senhorio quando obstem ao uso e gozo normais do locado e o locatário não tenha feito uso imprudente do prédio”.
O locatário, entregue a coisa, conforme nº2º do art.1043º, em bom estado de conservação, e obrigado, consoante nº1º do mesmo, a mantê-la e restituí-la no estado em que a recebeu, - ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização.
Deste artigo e da expressão manter a coisa e do art.2º, nº2 do CPC resulta que o senhorio pode exigir, em juízo que o locatário proceda a estas reparações decorrentes da imprudente utilização, mesmo durante a vigência do contrato.
Na procedência das alegações de recurso revoga-se a decisão recorrida e condenam-se os réus a proceder à reparação do locado nos termos formulados na petição inicial.
Custas pelos recorridos.

Porto, 09.06.30
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa
Carlos António Paula Moreira