CONTRATO DE TRABALHO
Sumário

A lei não impõe que só possam trabalhar como assalariados nas Associações Humanitárias de Bombeiros Voluntários aqueles que tenham a qualidade de bombeiros. Do mesmo modo, a lei também não impõe que a perda da qualidade de bombeiro possa implicar a impossibilidade de prestar trabalhos nas Associações Humanitárias respectivas ou de estas receberem o trabalho.

Texto Integral

Reg. 330
Apel. 87.04.7TTBGC.P1
(PC 87.04.7TTBGC)
Relatora: Albertina Pereira
Juízes Desembargadores Adjuntos: Paula Carvalho e André Silva

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório

B……………. instaurou a presente acção emergente de contrato de trabalho contra C…………, pedindo se declare a ilicitude do seu despedimento e a condenação da ré a pagar-lhe a indemnização por despedimento bem como os salários vencidos.

A ré contestou arguindo as excepções de litispendência e de incompetência em razão da matéria do tribunal, bem como que a demissão do autor foi bem fundamentada.

Teve lugar o julgamento, tendo-se respondido à matéria de facto, sem reclamação.

Proferida sentença foi a acção julgada totalmente improcedente com a absolvição da ré dos pedidos formulados.

Inconformado com essa sentença dela recorre o autor, concluindo que:
A) A douta sentença é ilícita, por errada interpretação legal e violação de preceitos constitucionais;
B) O apelante discorda da douta sentença proferida, quando esta decide pela caducidade do contrato de trabalho, pelo facto de o apelante ter perdido o estatuto de bombeiro por força da pena de demissão que lhe foi aplicada;
C) O recorrente exercia a sua actividade para a recorrida em duas vertentes: como bombeiro voluntário e com contrato de trabalho subordinado;
D) Estes dois factos estão devidamente assentes;
E) E sendo assim, invoca-se a doutrina expressa no Ac. Relação do Porto, de 30/09/2002, publicado na CJ, IV, 2002, onde se decide que não existe caducidade do contrato, prevista no disposto no art. 4º, alínea b), do D.L. 64-A/89 de 27/02;
F) A recorrida não invocou a caducidade do contrato de trabalho;
G) Foi o tribunal recorrido que qualificou e decidiu a caducidade da relação de trabalho;
H) Quer dizer, tendo o recorrente as duas qualidades, bombeiro e assalariado, não se vislumbra porque razão cessando uma destas qualidades, não se há-se manter a outra qualidade;
I) Ao recorrente foi aplicada a pena de demissão na sua qualidade de bombeiro de acordo do com o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local,
J) Porém, devia o mesmo manter a sua qualidade de assalariado, até que a relação de trabalho cessasse por qualquer das formas de cessação previstas no referido art. 4º do D.L. 64-A/89 de 27/02 e por iniciativa de algum dos contraentes;
L) E sendo assim, o recorrente manteria a qualidade de trabalhador assalariado e perderia a qualidade de bombeiro voluntário.
M) A perda da qualidade de bombeiro, não implica a impossibilidade da prestação de trabalho pelo recorrente, nem de a recorrida receber tal trabalho;
N) Até porque a impossibilidade da prestação, sempre seria imputável à recorrida, já que” in casu” se colocou ela mesma na impossibilidade de o recorrente prestar o trabalho e de ela o receber, não estando preenchidos os pressupostos do art. 790, nº 1 do CC;
M) Quer dizer, o recorrente sempre manteria a vigência do contrato de trabalho, com todos os seus direitos e regalias.
O) Ou então, viu o seu contrato de trabalho rescindido sem processo disciplinar ou justa causa;
P) Por outro lado, os diplomas legais que têm regulado a actividade dos bombeiros voluntários, Dec.38.430 de 27/09/51, D.L.418/80 de 29/09 e D.L.407/93 de 14/12, também não impõem que só possam trabalhar como assalariados, aqueles que tenham a qualidade de Bombeiros.
Q) E, se assim fosse, sempre seriam inconstitucionais, por violação dos art.13, 18, 30, nº 4, 53 e 58, nº 1 da CRP.
R) A douta sentença com tal entendimento, violou os mencionados preceitos legais, ao decidir que perdendo o recorrente a qualidade de bombeiro, perde necessriamente a qualidade de assalariado;
T) Por outro lado, se caducasse o contrato de trabalho, tendo o recorrente impugnado a pena de demissão no tribunal administrativo e fiscal, como o fez,
U) E sendo tal pena anulada como se espera, o contrato de trabalho não é repristinado;
V) Quer dizer o recorrente não volta a adquirir a qualidade de assalariado;
X) O que significa que o AA. veria cessado o seu contrato de trabalho de modo ilicito, porque afinal o mesmo não deveria ter caducado,
Z) E seria prejudicado nos seus direitos por tal cessação, pois a qualidade de bombeiro voluntário readquirida não lhe traria qualquer benefício indemnizatório, precisamente por ser voluntário;
AA) A douta sentença é ilegal e deve ser revogada por infracção ao disposto art. 4º, alínea b) do D.L. 64-A/89 de 27/02 e diplomas Dec.38.430 de 27/09/51, D.L.418/80 de 29/09 e D.L.407/93 de 14/12;
BB) A mesma sentença é inconstitucional, pois o seu entendimento viola o disposto nos artigos dos art.13, 18, 30, nº 4, 53 e 58, nº 1 da CRP;

A ré não respondeu ao recurso.

O Exmo. Procurado Geral – Adjunto nesta Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

Foi recebido o recurso, e colhidos os vistos legais.

2. Matéria de Facto
Na primeira instância foram considerados provados os seguintes factos:
1- O autor foi contratado de modo permanente pela ré em 26 de Março de 1993 exercendo a partir dessa data a sua actividade sob orientação, fiscalização e poder disciplinar da ré.
2- Passou a ter de executar um horário de trabalho com obrigação de permanência no quartel onde lhe foram distribuídas funções e passou a receber ordens dos dirigentes associativos ou representantes da ré.
3 - Exercendo desde essa data as funções de telefonista;
4- Tendo tal categoria profissional passado a designar-se de Operador de Central, por volta de 1997.
5- Nesse ano, e tendo em vista o apuramento, adequação e enquadramento das suas qualidades profissionais, o autor frequentou um curso de formação profissional para Operador de Central promovido pela Inspecção de Bombeiros.
6- Nesse curso foi confirmado o preenchimento dos requisitos da referida categoria profissional, ora apelidada de Operador de Central, tendo obtido o aproveitamento necessário.
7- A categoria profissional de Operador de Central, implica o exercício de modo contínuo e diário de atendimento do telefone e prestação de outros serviços de telecomunicações, como comunicações via rádio, além de inserir e registar informaticamente no computador todo o serviço e operações materiais diárias que são executadas na central telefónica da ré.
8- O autor prestava tais serviços numa sala específica para tal fim – onde está instalada a Central de Comunicações – como sempre vinha acontecendo desde o início do seu contrato de trabalho.
9- Em 17/02/2003 foi enviada ao A. a nota de culpa que se mostra junta aos autos a fls. 10 e segs. e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
10- Após um Relatório e Conclusões, cuja cópia se mostra junta aos autos de fls. 14 a 16 e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido, a R. decidiu optar pela demissão do A. com efeitos a 6 de Abril de 2003.
11- Pelo menos desde Janeiro de 2001 tem a R. conhecimento da existência da sociedade comercial por quotas D…………, Ldª, tanto assim que com ela contratou e pagou os respectivos serviços no referido ano:
12- A escolha da D………… resultou de um concurso da R. e a mesma foi escolhida, constando de actas deliberativas para o efeito.
13- O Presidente da Direcção da R. recrutou clientes para a dita D………..
14- A entrevista relatada no ponto 8 da nota de culpa efectuou-se e foi do conhecimento da R. em Setembro de 2002, tendo a nota de culpa sido elaborada apenas em 21/02/2003.
15- O A., apesar da ordem de serviço referida no ponto 5 al. a) da nota de culpa, sempre se apresentou para cumprir o seu horário e funções, até à sua suspensão preventiva.
16- A actividade descrita nos artigos 6 e 7 da nota de culpa sempre foi autorizada pela R.
17- Na entrevista referida em 8 da nota da culpa o A. protestou pela sua situação, falando verdade.
18- O A. auferia, à data do despedimento a quantia mensal de € 471,64.
19- O A. não gozou férias o ano de 2003 devido à cessação do seu contrato de trabalho.
20- A R. não pagou ao A. os proporcionais de subsídio de férias e de Natal relativos ao ano da cessação do contrato.
21- Nos autos de acção com processo comum emergente de contrato individual de trabalho com o nº …../03.1TTBGC a correr termos neste tribunal intentada pelo ora A.- contra a ora R. foi proferida a sentença que consta da certidão junta aos autos a fls. 77 e seguintes e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido, tendo tal sentença transitado em julgado.

3. O Direito
De acordo com o preceituado nos artigos 684, n.º 3 e art. 690, n.º s 1 e 3, do Código de Processo Civil[1], aplicáveis ex vi do art. 1, n.º 2, alínea a) e art. 87 do Código de Processo do Trabalho, é pelas conclusões que se afere o objecto do recurso, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

A questão que o recorrente coloca à apreciação deste tribunal consiste em aquilatar da não caducidade do seu contrato de trabalho.

Caso similar ao presente já foi decidido por acórdão deste Tribunal da Relação, de 30.09.2202, publicado na CJ IV, 2002, pág. 223 e seguintes, cujo entendimento não vemos razão para não seguir. Aí se considerou, com efeito, que quer o Decreto 38430, de 27 de Setembro de 1951 (Organização dos Corpos de Bombeiros), quer o Decreto-Lei 418/80, de 29 de Setembro (Lei Orgânica do Serviço Nacional de Bombeiros), quer o Decreto-Lei 407/93, de 14 de Dezembro (Regime Jurídico dos Corpos dos Bombeiros), não impõem que só possam trabalhar como assalariados nas Associações Humanitárias de Bombeiros Voluntários aqueles que tenham a qualidade de bombeiros.
Igualmente dos mesmos diplomas também se não extrai que a perda da qualidade de bombeiro possa implicar a impossibilidade de prestar trabalhos nas Associações Humanitárias respectivas ou de estas receberem o trabalho.
Assim, invocando uma Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários a caducidade do contrato de trabalho do autor, que exercia as funções de motorista, por ter sido demitido de bombeiro, pratica um despedimento ilícito por não precedido de processo disciplinar.
Com efeito, não decorre dos regime legal dos bombeiros que só possam trabalhar como assalariados nas respectivas associações humanitárias aqueles que tenham a qualidade de bombeiros, sendo que a existirem tais restrições as mesmas violariam os artigos 13, 18 e 58, da nossa Constituição. Para além disso, tão pouco a perda da qualidade de bombeiro implica a impossibilidade de prestar trabalho nas respectivas associações humanitárias ou de estas receberem esse trabalho. E, a existirem tais normas, as mesmas estariam eivadas de inconstitucionalidade, pois nenhuma pena implica como efeito necessário a perda de direitos profissionais; assim como ocorreria manifesta violação dos normativos constitucionais da segurança no emprego e do direito ao trabalho.
Acresce que as funções de telefonista exercidas pelo autor não exigem ou pressupõem a qualidade de bombeiro; tais funções podem ser exercidas em termos autónomos, não dependendo da qualidade de bombeiro.
Desta feita, não se verifica a caducidade do contrato de trabalho do autor, pelo que a ré ao assim ter declarado perpetrou na pessoa do mesmo um despedimento que é ilícito por não ter sido precedido de processo disciplinar (art. 12 do DL 64-A/89, de 27.02 – LCCT). O que implica que o autor tem direito a receber da ré as retribuições (vencidas e vincendas) que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, o que no caso, ponderando o art. 13, n.º 1 e 2, alínea a) (a acção deu entrada em 9.03.2004), ascende, no presente, a euros 30.750,92. Bem como a auferir da ré, a título de indemnização por antiguidade, pela qual optou, a quantia que até ao presente ascende a (16X471,64) euros 7.546,24 (art. 13, n.º 3, da LCCT).
Tem ainda o autor direito a receber da ré os proporcionais relativos a férias e subsídio de férias do ano da cessação do contrato (art. 10, do DL 874/76, de 28 de Dezembro), que ascendem a euros 314,42.
E, porque não gozou férias em 2003, em virtude da cessação (indevida) do contrato de trabalho, da responsabilidade da ré, tem ainda direito a receber desta, a esse título (art. 13 do DL 874/76, de 28 de Dezembro), a quantia de euros 1.414,92.
Quantias essas acrescidas dos respectivos juros legais desde a data dos respectivos vencimentos até integral pagamento.
Procedem, pois, as conclusões de recurso.

4. Decisão
Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso do autor, pelo que se revoga a sentença recorrida e se condena a ré a pagar àquele:
- As retribuições (vencidas e vincendas) que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, que ascendem, até ao presente, a euros 30.750,92.
- A título de indemnização por antiguidade, a quantia que até ao momento é de euros 7.546,24.
- Proporcionais relativos a férias e subsídio de férias do ano da cessação do contrato, que se contabilizam em euros 314,42.
- A título de violação do direito a férias de 2003 a quantia de euros 1.414,92
Sobre as quantias em divida incidem os respectivos juros legais desde a data dos respectivos vencimentos até pagamento.

Custas pela ré.

PORTO, 2009.07.15
Albertina das Dores N. Aveiro Pereira
Paula A. P. G. Leal S. Mayor de Carvalho
Luís Dias André da Silva
__________
[1] Serão deste diploma todas as referências normativas sem indicação de origem.