CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
DIREITO DE RETENÇÃO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
MORA
PERDA
SINAL
DECLARAÇÃO TÁCITA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
Sumário

I - O direito de retenção da alinea f) do n. 1 do artigo
755 do Codigo Civil so existe se o promitente que detem a coisa for o não faltoso e for credor da contraparte.
II - A simples fixação de um prazo maximo para a celebração da escritura definitiva, sem mais, não chega para se concluir que as partes quizeram fixar um prazo de caducidade do contrato-promessa, nos termos do n. 1 do artigo 432 do Codigo Civil.
III - O direito do promitente-alienante fazer uma declaração tacita de resolução do contrato-promessa e fazer seu o sinal recebido do promitente-comprador pressupõe apenas a mora deste promitente-comprador e não o incumprimento definitivo.
IV - Deve entender-se que ha falta de interesse do credor no cumprimento do contrato-promessa para efeitos do n. 1 do artigo 808 do Codigo Civil se ante contrato-promessa se fixou o prazo maximo de 6 meses, terminado em 24 de Maio de 1977, para a celebração da escritura definitiva, se o promitente-vendedor so recebeu de sinal 400 contos dos 2700 contos, preço da prometida compra e venda e se a inflação, desde 24 de Maio de 1977 ate principios de 1992, andou a volta dos 10% anuais ou ate mais.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Na comarca de Sintra A e mulher B propuseram esta acção ordinaria contra C, na qual pediram: a) se declarasse o incumprimento do contrato-promessa de 24 de Novembro de 1986 por parte da re, promitente compradora, por não ter diligenciado a celebração da escritura definitiva no prazo previsto, com a perda do sinal de 400000 escudos a favor dos autores; b) se declarassem os autores legitimos donos do andar e a posse da re insubsistente, ilegal e de ma fe, condenando-se esta a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre o referido andar e a restitui-lo imediatamente aqueles; c) se condenasse a re a pagar aos autores todos os prejuizos que a sua detenção do andar, passada e futura, vem causando ou ira causar a estes, impedindo-os de o arrendarem por quantia não inferior a
35000 escudos mensais; o que representa nos meses ja decorridos 175000 escudos, a que acrescerão os meses que ainda durar essa detenção ilicita do autor;
Negaram para tanto serem donos de uma andar, que prometeram vender a re e esta comprar por 2700 contos, tendo havido sinal de 400 contos, devendo a escritura ser outorgada no prazo maximo de 6 meses, em dia, hora e local a designar pela re; esta ficou logo na posse do andar mas nunca diligenciou a celebração da escritura e tem-se recusado a entregar esse andar aos autores.
Na sua contestação, a re disse que a não celebração da escritura se deve aos autores, certo sendo ainda que estes não alegaram factos donde resulte o incumprimento definitivo do contrato por parte da re; terminam pedindo a improcedencia da acção e apoio judiciario.
Os autores replicaram.
O pedido de assistencia judiciaria da re foi liminarmente indeferido.
Correu o processo o seus regulares termos, com despacho saneador, organização da especificação e questionario e julgamento, ate que o meritissimo juiz da 1 instancia julgou a acção improcedente.
Desta sentença interpuseram recurso os autores e a
Relação, julgando parcialmente procedente este recurso, declarou os autores donos do andar em causa e condenou a re a reconhecer este direito de propriedade e confirmou no mais a sentença recorrida.
Deste acordão da Relação interpuseram os autores recurso de revista e, nas suas alegações, concluem assim:
I - A questão essencial a decidir e a propriedade do andar reivindicado pelos autores e não o incumprimento do contrato-promessa ou de qualquer prestação nele prevista;
II - a detenção do andar pela re não resulta directamente do contrato-promessa mas duma relação de comodato pelo prazo maximo de 6 meses ou, quando muito, ate a propositura desta acção;
III - importa interpretar o contrato-promessa, nomeadamente saber o sentido da fixação pelo reniter consenso do "prazo maximo de 6 meses", estipulação esta a entender como clausula omissoria ou de caducidade, como estipulação convencional dum direito de execução dum contrato-promessa, nos termos do artigo 432, n. 1 do Codigo Civil;
IV - mesmo que se coloque a questão como incumprimento duma obrigação por parte da re, e evidente que esta perdeu todo o interesse para os credores (artigo 808 do Codigo Civil), dado o contrato-promessa ter sido celebrado ha 5 anos, com preço fixado e sinal inferior a 15% deste, num periodo em que a inflacção em geral era de 11,7%, mas bem mais elevada na habitação;
V - o artigo 442 do Codigo Civil, na redacção do Decreto-Lei n. 379/86, vigente a data do contrato-promessa, implicou a perda do sinal pela re, quer se achasse em venda quer essa venda, por falta de interesse para os credores, se deve equiparar a impossibilidade definitiva da obrigação (artigo 808 do Codigo Civil);
VI - os autores perderam interesse na escritura definitiva porque estabeleceram para esta o prazo maximo de 6 meses e a re não logrou provar qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito dos autores ao reconhecimento do incumprimento do contrato por causa imputavel a re, prova que a data competia (resposta aos quesitos 2 a 6), nos termos dos artigos 342 n. 2 e 799 n. 1 do Codigo Civil;
VII - pelas respostas aos quesitos 8 e 9 ficou estabelecida a medida minima em que se traduzem os prejuizos mensais dos autores, certamente bem infraccionados, mais de 4 anos apos a propositura da acção;
VIII - o direito dos autores a restituição do andar e a indemnização pela sua indevida ocupação para alem do prazo previsto para a escritura definitiva não admite que se lhe oponha qualquer direito de retenção por parte da re, dado não haver um credito desta por não cumprimento do contrato-promessa por parte dos autores, credito cuja verificação seria indispensavel para que existisse o direito de retenção (artigos 754 e 755 n. 1 alinea f) do Codigo Civil).
A re não contra-alegou.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Vem provados os factos seguintes:
1 - os autores são donos de fracção autonoma designada pela letra "R" correspondente ao 6 andar direito do predio urbano sito na Rua ....,
Queluz, descrito na Conservatoria do Registo Predial daquela localidade sob o n. 2355 e inscrito sob o n. 24389;
2 - o referido andar, tem 2 assoalhadas, cozinha, casa de banho, hall e dispensa, as divisões são pequenas, tem mais de 15 anos de construção, vale, no minimo, no mercado de habitação, uma renda mensal de 35000 escudos;
3 - nunca houve no predio ou na fracção em causa quaisquer obras;
4 - a retenção do andar pela ré, para alem de 24 de
Maio de 1987, impossibilitou os autores de auferirem, pelo andar, uma renda mensal de 35000 escudos;
5 - a re e os autores celebraram, em 24 de Novembro de
1986, um contrato-promessa de compra e venda respeitante ao mesmo andar pelo preço de 2700 contos e como sinal e principio de pagamento estes receberam daquela a quantia de 400 contos, assentando-se que o remanescente do preço seria pago no acto da escritura definitiva de compra e venda, a entregar no prazo maximo de 6 meses, em dia, hora e local a designar pela re, com antecedencia não inferior a 8 dias;
6 - a data do referido contrato, a re ja residia no mesmo andar ha alguns anos, por cedencia do então inquilino, e esse contrato não legitimou a existencia da re no dito andar;
7 - ate hoje, não foi celebrada a escritura definitiva de compra e venda.
São as seguintes as questões a decidir: a) o direito de propriedade dos autores sobre o andar por eles reivindicado; b) a existencia do direito de retenção, por parte da re, do dito andar; c) se o direito de resolução do contrato-promessa exige o incumprimento definitivo ou apenas a simples mora; d) se o credor perdeu o interesse no cumprimento do contrato-promessa; e) se o promitente-vendedor tem direito a ficar com o sinal e a ser indemnizado pelos prejuizos com a detenção do andar pela re.
O direito de propriedade dos autores sobre o andar em causa não chegou a ser contestado, vem expressamente afirmado e resulta da presunção de que o objecto definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, segundo preceitua o artigo 7 do Codigo do Registo Predial.
E manifesto que a re não goza do direito de retenção do andar em causa previsto na alinea f) do n. 1 do artigo
755 e do artigo 754, ambos do Codigo de Processo Civil.
E que, segundo estes textos, o direito de retenção so existiria se a re fosse credora dos autores e fosse o promitente não faltoso, o que, no presente caso, não acontece, pois que a re não provou ser credora dos autores como não provou que a não realização da escritura no prazo marcado não proveio de culpa sua, como lhe competia, de acordo com o disposto nos artigos 342 n. 2 e 799 n. 1, ambos do Codigo Civil.
Dizem os recorrentes que, ao fixarem o prazo maximo de
6 meses para a celebração da escritura do contrato prometido, quiseram estabelecer convencionalmente o direito de resolver o contrato, caso esse prazo não fosse respeitado, nos termos do artigo 432, n. 1 do
Codigo Civil.
Não pensamos assim.
Havendo apenas a fixação de prazo maximo de 6 meses, sem mais nada a indicar que a intenção das partes foi a de atribuir por convenção o direito de resolver o contrato, não e de admitir declaração de vontade com semelhante alcance, a luz dos principios que regem a interpretação dos negocios juridicos (artigos 236 e verso do Codigo Civil), pois que nem a essencialidade do termo do prazo estabelecido nem a clausula resolutiva expressa são perceptiveis a um declaratario normal e tem um minimo de correspondencia no texto do contrato-promessa.
Apos as actuações introduzidas nos ns. 2 e 3 do artigo
442 do Codigo Civil pelo Decreto-Lei 379/86, de 11 de Novembro, a doutrina e a jurisprudencia decidiram-se quanto a questão de saber se o promitente-alienante tem o direito de fazer seu o sinal recebido e resolver imediatamente o contrato apenas com base na simples mora do promitente-adquirente; dito de outro modo, o promitente-vendedor não faltoso tera o direito de transformar a mora do promitente-comprador faltoso em incumprimento definitivo, sem necessidade de previa observancia do regime do artigo 808 n. 1 do Codigo
Civil, e exigir o sinal, fazendo uma declaração tacita de resolução do contrato-promessa, com a propositura da correspondente acção (artigo 436 n. 1 do Codigo Civil)?
Pela afirmativa esta Almeida Costa (Direito das Obrigações, 5 edição, 343, nota, 345, 346 e 896, nota) e tambem esta Pires de Lima e Antunes Varela, muito embora considerando manifestamente erronea a solução legalmente consagrada (Codigo Civil Anotado, 4 edição, vol. I, 423) e, ao que parece, ainda Meneres Cordeiro (citado por Antunes Varela a paginas 151 e estudo sobre o contrato-promessa, 2 ed.).
Em sentido contrario, estão pelo menos Galvão Teles
(Direito das Obrigações, 6 edição, 112) e Calvão de Lier (Sinal e contrato-promessa, 76 e seguintes).
Quanto a jurisprudencia, a maioria alinha com estes ultimos autores (v., por exemplo, acordãos do Supremo Tribunal de Justiça no BMJ 347, 375 e 360, 526) mas tambem ha quem siga aquela primeira orientação (acordão do Supremo Tribunal de Justiça no BMJ 321, 387).
De uma parte, embora com bastantes duvidas, aderimos aquela primeira orientação, segundo a qual os ns. 2 e 3 do artigo 442 vigente permitem a resolução imediata do contrato pelo promitente-vendedor e o fazer seu o sinal recebido perante a simples mora do promitente-comprador.
Na verdade, o n. 2 do artigo 442 dispõe: Se quem constituir o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputavel, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue...
Parece, pois, que a letra da lei vai no sentido apontado, tanto mais que a 2 parte do n. 3 do mesmo artigo pressupõe uma situação de simples mora - não de incumprimento definitivo. Por outro lado, a propositura da acção equivale a uma declaração tacita de resolução do contrato-promessa (artigo 436 n. 1 ja citado). E não se ve que a cronica solução da perda do serial como aplicavel apenas ao não cumprimento definitivo da obrigação tenha a importancia que o Professor Antunes Varela lhe atribui "define constituto" em sede de responsabilidade, de bom senso e de vontade presuntiva das partes contratantes.
De qualquer modo, mesmo a ser erronea a orientação seguida de, excepcionalmente, admitir o credor a resolver o negocio em consequencia da simples mora do devedor, estamos em crer trata-se de hipotese em que o credor, o promitente-vendedor, perdeu o interesse que tinha no cumprimento do contrato-promessa em consequencia da mora do devedor, o promitente-comprador, e converteu a mora em não cumprimento definitivo do contrato-promessa, nos termos do artigo 808 n. 1 do Codigo Civil.
A este respeito, vem provado que se fixou o prazo maximo de 6 meses para a celebração da escritura do contrato definitivo, que este prazo terminou em 24 de Maio de 1987 e que o promitente-vendedor so recebeu 400 contos dos 2700 contos que foi o preço da prometida compra e venda ainda não celebrada.
Por outro lado, e facto notorio, que não carece de prova nem de alegação (artigo 514 n. 1 do Codigo de Processo Civil), ter-se verificado uma inflacção bastante acentuada desde 24 de Maio de 1987 (a inflacção, incluindo a habitação, segundo o I.N.E., foi em 1987, 1988, 1989, 1990 e 1991, respectivamente, de 10,2, 9,6, 12,7, 13,6 e 12). Feitas as contas e fazendo a actualização dos 2300 contos que o promitente-comprador ficou de pagar, obteriamos, agora, mais de 4000 contos.
Como e sabido e resulta do preceituado no n. 2 do citado artigo 808, não basta a perda subjectiva do interesse do credor na prestação, e necessario que tal perda seja apreciada objectivamente, justificada a luz das circunstancias objectivas, segundo criterio de responsabilidade, propria do comum das pessoas (Antunes Varela, R.L.J. 118, 54 e seguintes).
Em face das apontadas circunstancias acabadas de referir e considerando ainda o facto de os autores terem proposto a presente acção, parece-nos poder concluir-se que os autores, atento o elevado prejuizo que sofreriam, perderam objectivamente, justificadamente, razoavelmente o interesse no cumprimento do contrato-promessa.
Resta apreciar o pedido de indemnização com base na ocupação pela re do andar em causa.
E evidente que a tal indemnização não obsta o disposto no n. 4 do citado artigo 442 quando diz não haver lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, alem das ai referidas.
E que a perda do sinal e uma sanção apenas destinada a indemnizar o prejuizo causado pela retratação do promitente faltoso, pela não celebração do contrato prometido, ao passo que a indemnização pedida pelos autores se funda no facto de a re ocupar ilegitimamente o andar em causa, o que a sujeita a indemnizar os lesados, os autores donos do andar, pelos danos resultantes duma ilegitima ocupação, nos termos do artigo 483 n. 1 do Codigo Civil.
E tal indemnização, atento o que vem provado, deve corresponder a 35000 escudos mensais, que foi a verba minima provada como correspondente a verba mensal.
Mas a partir de quando e devida uma tal indemnização?
Referem os autores a data de 24 de Maio de 1987, data limite de celebração da escritura de compra e venda prometida.
Mas não e assim.
Vem provado que o contrato-promessa legitimou a residencia da re no dito andar, onde ela ja antes residia.
Sendo assim, tem de concluir-se que a ocupação so deixara de estar legitimada quando for resolvido o contrato-promessa que concedeu a re o direito de ocupar o andar (Antunes Varela, R.L.J. 119, 220)
Nesta conformidade, a indemnização dos 35000 escudos mensais so começara a correr apos o transito da presente decisão e ate efectiva desocupação do andar.
Por todo o exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequencia, a) declara-se não cumprido o contrato-promessa datado de 24 de Novembro de 1986, por parte da re, promitente compradora; b) declara-se perdido a favor dos autores o sinal por eles recebido de 400000 escudos; c) declara-se que os autores são legitimos donos do andar identificado no artigo 1 da petição inicial, que foi objecto do referido contrato-promessa; d) condena-se a re a restituir imediatamente aos autores esse andar; e) condena-se a re a pagar aos autores a quantia mensal não inferior a 35000 escudos, a partir do transito em julgado da presente decisão e ate efectiva desocupação do dito andar.
Custas pela recorrida.
Lisboa, 2 de Abril de 1992.
Fernando Fabião,
Cesar Marques,
Ramiro Vidigal.
Decisões impugnadas:
I- Sentença de 20 de Abril de 1990 do 5 Juizo, 2 Secção do Tribunal da Comarca de Sintra;
II- Acordão de 9 de Abril de 1991 do Tribunal da
Relação de Lisboa.