PROVA PERICIAL
ERRO NOTÓRIO
Sumário

I - O juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. Se dele divergir, é-lhe, então, exigível um acrescido dever de fundamentação.
II - A violação das regras sobre o valor da prova enquadra-se no conceito de erro notório na apreciação da prova.

Texto Integral

Processo 76-06.
Vila Pouca de Aguiar.

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial de Vila Pouca de Aguiar, entre o mais que irreleva, foi decidido:
a) Condenar o arguido B………. pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto e punido no art.º 165°, nº 1 e 2, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução, mediante acompanhamento do IRS.
b) Julgar parcialmente procedente o pedido cível deduzido pela demandante C………. e condenar o arguido/demandado a pagar à demandante o montante de €12.500,00 (doze mil e quinhentos) euros a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora contados desde a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.
c) Julgar improcedente o remanescente do pedido cível deduzido pela demandante e absolver o demandado do mesmo.

Inconformado o arguido interpôs o presente recurso rematando a pertinente motivação com a alegação, entre o mais, de que a decisão recorrida padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição de fundamentação e de erro notório na apreciação da prova. Sustenta ainda o recorrente, nomeadamente, que não foi produzida prova de que o arguido «se tivesse deitado sobre a ofendida e que introduzisse o seu pénis erecto na vagina da ofendida e que tivesse ejaculado».
Admitido o recurso, o Ministério Público respondeu concluindo pela manutenção da decisão recorrida.
Já neste Tribunal o Ex.mo Procurador Geral Adjunto foi de parecer que o recurso merece parcial provimento.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPPenal e após os vistos realizou-se conferência.

Factos provados:
1) No dia 25 de Setembro de 2006, pelas 19.00 horas, no ………., em ………., Freguesia de ………., nesta comarca, o arguido abordou a ofendida C………., quando esta ia tirar a cancela do recinto onde as suas vacas se encontravam, e com ela entabulou conversa de teor concreto que não foi possível determinar.
2) Instantes depois, o arguido abraçou e beijou a ofendida C………. e conduziu-a a um palheiro aí existente.
3) Uma vez no interior desse palheiro, o arguido, tirou-lhe a roupa dos membros inferiores, tirou as suas próprias calças, deitou-se sobre a ofendida introduzindo, de seguida, o seu pénis erecto na vagina daquela, aí ejaculando.
4) O arguido desde o mês de Junho de 2006, em datas não concretamente apuradas, mas com carácter de regularidade, sempre aproveitando o momento em que se encontrava sozinho com a ofendida C………. apalpava-lhe os seios.
5) A ofendida sofre de deficiência mental moderada e "não tem capacidade para decidir da volição de relacionamento afectivo – sexual' e como tal de lhe fazer oposição.
6) O arguido actuou da forma acima descrita de forma livre, deliberada e consciente, tendo conhecimento e aproveitando-se do facto da ofendida C………. sofrer de deficiência mental, que a tornava e torna incapaz de avaliar o significado dos comportamentos que se descreveram, e de medir as consequências dos mesmos, incapacidade que era do conhecimento do arguido e de que este se aproveitou.
7) O arguido estava plenamente consciente de que ao actuar pela forma acima descrita ofendia gravemente a saúde e moral sexual da ofendida C………. .
8) O arguido nasceu no seio de uma família de agricultores, sendo o mais novo de cinco irmãos.
9) Não tem habilitações literárias, teve 9 filhos e é divorciado.
10) O arguido aufere €250,00 de reforma, encontra-se bem integrado no meio social.
11) Tem problemas de saúde ao nível de artroses e coluna e coluna, bem como um certo grau de surdez.
12) O arguido não tem antecedentes criminais.
13) A Ofendida nasceu com Trissomia 21, ou síndrome de Down caracterizada como uma síndrome "associada a algumas dificuldades de habilidade cognitiva e desenvolvimento físico, assim como de aparência facial"
14) Desde longa data que a ofendida conhece o arguido, convivendo frequentemente com ele e com a família
15) As famílias eram amigas e ajudavam-se mutuamente nas sementeiras e nas colheitas de produtos agrícolas, prática corrente da localidade onde habitam.
16) A Ofendida criou laços afectivos e de confiança com o Arguido, por conviver com aquele socialmente, apelidando-o de "B1……….", pelo facto da esposa se chamar D………. .
17) Por conviverem tantas vezes em família e na sociedade da aldeia onde moram, os pais da ofendida sempre tiveram o Arguido como uma pessoa "da casa", depositando naquele toda a confiança de "um bom pai de família".
18) Por diversas vezes o Arguido abusou sexualmente da Ofendida, o que fez nas "……….", nas "………." e no "……….".
19) O Arguido sabia que a ofendida era incapaz de entender o que aquele lhe estava a fazer.
20) A ofendida tinha uma certa "independência" na realização de tarefas, como ir à caixa do correio sozinha, ao monte "deitar" o gado, fazer "recados" à sua mãe.
21) Na sequência do comportamento do arguido todas estas "tarefas" foram "abolidas" do dia-a-dia da C………. ,
22) Além disto, quando a C………. teve que contar o que o "B1………." lhe havia feito, ela ficou envergonhada perante a sua aldeia.
23) Ficou com vergonha dos seus pais, das suas irmãs, dos seus familiares e amigos e passou a ser agressiva para com aqueles que com ela convivem.

Factos não provados.
a) A ofendida e tenha passado a "esconder-se" da sociedade.

A convicção do tribunal.
Em sede de motivação da decisão de facto provada e não provada, ponderaram-se, desde logo, os documentos juntos aos autos:
Fls. – 3 a 4 – auto de denúncia, exame directo e termo de entrega.
Fls. 8 – guia de registo de objectos.
Fls. 19 a 21 – relatório médico-legal.
Fls. 33, 58 – envio de peças de roupa com vestígios biológicos.
Fls. 51 a 56 – relato de diligência externa.
Fls. 57 – termo de entrega.
Fls. 62 a 65 – relatório pericial biológico.
Fls. 67 – auto de exame directo.
Fls. 80 – assento de nascimento.
Fls. 96 a 99 – exame pericial de natureza sexual.
Fls. 109 a 111 - exame médico-forense psiquiátrico.
Ponderaram-se as declarações do arguido, o qual referiu ter estado com a ofendida mas não ter tido qualquer relação sexual, esteve à porta do telheiro, mas a ofendida não entrou, apenas tendo entrado o arguido.
A ofendida/demandante C………. referiu como tinham ocorrido os factos, estiveram no palheiro, o arguido tirou-lhe a roupa e depois teve relações sexuais.
Concordou em ter relações sexuais neste dia, porquanto já tinha tido relações sexuais de outras vezes com o arguido.
Apenas contou as relações sexuais tidas no dia 25.09.06 pelo facto da tia ter aparecido e a ter visto com feno na cabeça.
A testemunha E………., tia da ofendida, referiu que andava com as cabras e passou no ………. e viu as vacas paradas junto ao cancelo, bem como os paus utilizados na condução do gado, como a ofendida não aparecia chamou por ela, entrou no palheiro e a ofendida estava a levantar-se, com as calças ainda desabotoadas, estando o arguido escondido debaixo do feno.
Logo aí a ofendida disse que tinha tido relações sexuais com o arguido.
Após a ofendida sair fechou a porta à chave mas o arguido conseguiu fugir.
Não havia suspeitas de ter havido outras relações anteriores entre o arguido e a ofendida.
Antes da ofendida e do arguido irem para o palheiro a testemunha viu-os abraçados cá fora.
Toda a gente sabe que a ofendida é deficiente, principalmente o arguido que era amigo da família.
No chão estava a manta pisada no feno, era habitual a manta estar pendurada no local.
A testemunha F………., mãe da ofendida, referiu que o arguido era muito amigo da família, conhecendo a ofendida desde pequena.
Quando ofendida contou à tia pediu para não dizer nada á mãe com medo.
A ofendida costumava dar o penso ao gado, ir aos correios.
Antes era meiga e agora não, muito resmungona.
A ofendida efectuou a laqueação aos 12 anos de idade.
A testemunha G………., amiga e vizinha da ofendida, referiu que esta costumava ir levar as vacas ao campo e depois ia embora.
O arguido costumava frequentar a casa da ofendida.
As testemunhas H………., I………., J………., K………. e L………. referiram que o arguido era trabalhador e boa pessoa, perfeitamente integrado no meio.
Relativamente às condições sócio-económicas e antecedentes criminais do arguido teve-se em atenção as suas declarações, os depoimentos das testemunhas que sobre tal depuseram, bem como CRC.

O Direito:
Como esclarecidamente refere o Ex.mo Procurador Geral Adjunto há um facto que não pode ser dado como provado. Temos em vista o ponto 3) da matéria provada na parte, em seguida, posta em realce: introduzindo, de seguida, o seu pénis erecto na vagina daquela, aí ejaculando.
Há prova pericial nos autos, que o tribunal convoca para fundar a sua convicção, que não permite essa conclusão e que, pelo contrário, impõe a conclusão de que tal introdução/penetração do pénis erecto na vagina não pode ter ocorrido.
Temos em vista o exame de Fls. 19 a 21 – relatório médico-legal, também referido na motivação como fls. 96 a 99 – exame pericial de natureza sexual.
Desse único exame resulta claro e inequívoco que a região vulvar da examinada estava sem alterações, que o hímen estava íntegro, não apresentava entalhes naturais, nem soluções de continuidade ou outras lesões e era permeável apenas a uma polpa digital, fls. 20. Isto é: após os alegados factos o hímen da ofendida estava íntegro e não apresentava sinais de ter sido penetrado e não era um hímen complacente.
Médico legalmente é complacente o hímen que, não apresentando lacerações, se deixa penetrar pelos dedos indicador e médio justapostos[1]. Se estes dois dedos justapostos puderem ser introduzidos sem resistência, admite-se geralmente que também o pénis erecto de adulto pode ou pôde ser introduzido pelo óstio himeneal[2].
Tendo em conta a configuração anatómica do hímen da ofendida, que apenas era permeável a uma polpa digital, contrariamente ao que concluiu o tribunal, a penetração do pénis erecto do arguido na vagina da ofendida não pôde ter ocorrido, pois se tivesse penetrado necessariamente tinha provocado o rompimento do hímen e este teria de apresentar lacerações e não podia estar íntegro.
Não podendo ter havido penetração na vagina não podia também ter ocorrido ejaculação na vagina.

A prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, art.º 151º do Código Processo Penal. Assim, perícia é a actividade de percepção ou apreciação dos factos probandos efectuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos[3].
No nosso ordenamento legislativo a perícia é um meio de prova como indiscutivelmente resulta da sua inserção sistemática no título II do Livro III do Código Processo Penal. Apesar de o intérprete não estar necessariamente vinculado às classificações legislativas, não vemos como perante o actual Código Processo Penal se possa entender de modo diverso.
A finalidade da perícia é a percepção de factos ou a sua valoração de modo a constituir prova atendível pela autoridade judiciária, quer em sede de inquérito – para v.g. acusar ou não –, quer em sede de instrução – v.g. para pronunciar ou não – quer em sede de julgamento – v.g. para condenar ou absolver –. O perito é um auxiliar do juiz, pois as provas periciais produzidas em qualquer fase processual, incluindo as do inquérito, poderão sempre ser tomadas em conta, quer na instrução quer no julgamento, art.º 356º n.º 1 al. a) a contrario do Código Processo Penal.
O juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador; o art.º 163 do Código Processo Penal consagra, de acordo com entendimento unânime, uma restrição ao princípio da livre convicção probatória, art.º 127º do Código Processo Penal: o julgador está amarrado ao juízo pericial, sendo que sempre que dele divergir deve fundamentar esse afastamento, exigindo-se um acrescido dever de fundamentação. Ora tal não aconteceu e não se descortina qualquer possibilidade de o tribunal poder divergir do juízo pericial. Conclui-se, assim, que na decisão recorrida e quanto ao ponto em questão foram violadas as regras sobre a apreciação e o valor da prova, o que se enquadra no conceito amplo de erro notório na apreciação da prova.
Sustenta o Ex.mo Procurador Geral Adjunto que tal erro de julgamento não consubstancia o vício de erro notório dado que não seria detectado pelo observador médio e só seria constatável por quem tivesse conhecimentos de medicina legal, o que não é suposto no homem médio.
Que dizer?
Desde há anos que vimos sustentando que o homem médio referido pela generalidade da jurisprudência é uma expressão que não pode ser levada «à letra»; o «homem médio» não pode ter o sentido abrangente e generalizador inerente à literalidade da expressão. Pelo menos uma correcção é necessária o «homem médio» será representado pelo «juiz médio ou normal», quando estiver em causa a actividade judicial. Perante o requien do «homem médio»[4], temos que operar com o «homem medido» correspondente à actividade em causa, sem esquecer que o desempenho de determinados papeis sociais pressupõe e exige determinados conhecimentos. Ora o conhecimento das regras de apreciação da prova em processo penal é exigível e como tal pressuposto em qualquer juiz que realiza julgamentos penais. E isso é tanto mais assim quando, como no caso, o julgamento foi realizado pelo tribunal colectivo, em cuja composição entram, em regra, dois juízes de círculo, com especiais requisitos pessoais – combinação de experiência e conhecimento – que dão, pelo menos em abstracto, mais garantias na realização da justiça, art.º 105º da LOFTJ[5].

A violação das regras sobre o valor da prova enquadra-se no conceito amplo de erro notório na apreciação da prova.
Consubstancia erro notório na apreciação da prova, a falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível por um juiz normal – com a cultura e experiência da vida e dos homens, que deve pressupor-se num juiz chamado a apreciar a actividade e os resultados probatórios – na sugestão de Castanheira Neves ([6]). Há um tal vício quando um homem médio, rectius, um juiz normal, perante o que consta do texto da decisão, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal (...) desrespeitou as regras sobre o valor da prova, art.º 410º n.º 2 al. c.) do Código Processo Penal.
Assim, verificado o apontado vício do art.º 410º n.º 2 al. c) do Código Processo Penal, e porque não é possível decidir a causa, determina-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do processo.

*
Decisão:
Na procedência do recurso determina-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do processo.
Sem custas.

Porto, 9 de Setembro de 2009.
António Gama Ferreira Ramos
Abílio Fialho Ramalho

_________________________
[1] Duarte Santos, Medicina Legal, 1968, p. 204.
[2] Carlos Lopes, Guia de perícias médico-legais, 1977, p. 89.
[3] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 3ªed. pág. 197.
[4] Sobre o requien do homem médio tradicional e geral, Maria Joana Castro Oliveira, A imputação objectiva na perspectiva do homicídio negligente, p. 110., Günther Jakobs, Derecho Penal, parte general, 1997, p. 102.
[5] Assim também Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 15.7.2009, rec. 2475-02 disponível no sitio na internet deste Tribunal.
[6] Sumários de Processo Criminal, 1968, pág. 50-1,