EXECUÇÃO
PENHORA DE DIREITO
HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA
RENDIMENTO
Sumário

Em execução em que se encontre penhorado o direito a uma herança ilíquida e indivisa integrada por vários bens, não tem o exequente legitimidade para exigir do cabeça de casal a distribuição de rendimentos a que se reporta o art. 2092º, do CC.

Texto Integral

Proc. nº 1960/07.6TVPRT-D.P1 – 3ª Secção (Agravo)
Rel. Deolinda Varão (407)
Adj. Des. Freitas Vieira
Adj. Des. Cruz Pereira


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B………. instaurou execução de sentença, com forma de processo sumário, contra C………. .
Foi proferido despacho a converter em penhora o arresto, além do mais, do direito à acção e à herança indivisa aberta por morte de D………., pai do executado.
Seguidamente, o exequente requereu:
a) A notificação da cabeça-de-casal da herança acima referida, E………., para depositar à ordem dos presentes autos a quota-parte do executado nas rendas vencidas e recebidas após a data em que a cabeça-de-casal foi notificada do arresto, posteriormente convertido em penhora, bem como das vincendas, respeitantes ao arrendamento de dois prédios que integram a dita herança;
b) Caso assim não se entendesse, a penhora do direito de crédito que cabe ao executado para sobre a referida herança, resultante da sua quota-parte nas rendas vencidas e vincendas e acima mencionadas, devendo a cabeça-de-casal ser notificada para os devidos efeitos.
O requerimento do exequente foi indeferido por despacho de 10.12.08.

O exequente recurso, formulando as seguintes
Conclusões
1ª – As rendas são frutos civis que os prédios arrendados geram para o seu proprietário e, achando-se penhorado direito à acção e herança indivisa e não partilhada composta por imóveis arrendados, a penhora abrange a quota-parte do herdeiro nas rendas dos prédios arrendados.
2ª – O disposto no artº 842º do CPC aplica-se à penhora do direito à acção e herança por força da remissão prevista no artº 863º do CPC.
3ª – Nos presentes autos acha-se penhorado o direito à acção e herança do executado na herança indivisa por morte de seu pai D………., a qual é composta por prédios que se acham arrendados.
4ª – Encontra-se na posse da cabeça-de-casal da herança o saldo emergente das rendas cobradas deduzidas das despesas que, na parte respeitante ao executado e aos anos de 2003 a 2008 é de € 14.979,84.
5ª – O exequente requereu que, tratando-se de frutos dependentes da extensão da penhora do direito à herança, fosse ordenada a notificação da cabeça-de-casal para proceder ao depósito dos saldos dos rendimentos da herança vencidos e vincendos ou, caso assim não se entendesse, que se ordenasse a penhora e notificação do direito de crédito aos referidos saldos do executado nos rendimentos da herança.
6ª – A distribuição dos rendimentos da herança pelos herdeiros não está sujeita ao arbítrio da cabeça-de-casal, antes resultando do artº 2092º do CC que devem ser distribuídos pelo menos metade dos rendimentos.
7ª – Por outro lado, devendo o cabeça-de-casal prestar contas anualmente, havendo saldo a favor do herdeiro, o mesmo deve ser distribuído (artº 2093º, nºs 1 e 3 do CC).
8ª – A extensão da penhora às rendas prevista no artº 842º do CPC, é aplicável no caso de penhora de direito a acção e herança indivisa composta de prédios imóveis arrendados a terceiros por força do artº 863º do CPC.
9ª – O direito à acção e herança em herança indivisa e não partilhada emergente de sucessão post-morten, não traduz nenhuma expectativa de aquisição mas uma aquisição efectiva (ainda que dependente de partilha a efectuar) que tem lugar com a abertura da sucessão (artºs 2031º e 2032º, nº 1 do CC).
10ª – De igual modo, a penhora e depósito do saldo dos rendimentos da herança na parte devida ao executado, não traduz penhora de expectativas mas efectiva penhora de frutos, pelo que, deveria a Mª Juíza a quo determinar a notificação da cabeça-de-casal para depositar nos autos os saldos dos rendimentos da herança desde o decretamento do arresto até à presente data.
11ª – Ainda que se entendesse não haver lugar à extensão da penhora, então deveria ordenar-se a penhora do direito de crédito do executado sobre a herança pela sua quota-parte nos rendimentos da mesma herança, vencidos e vincendos, mediante notificação da cabeça-de-casal para os depositar à ordem da execução.

Não foram apresentadas contra-alegações.
A Mª Juíza sustentou o despacho.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II.
Os elementos com interesse para a decisão do recurso são os que constam do ponto anterior.
*
III.
A questão a decidir – delimitada pelas conclusões da alegação do agravante (artºs 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC, na redacção anterior à entrada em vigor do DL 303/07 de 24.08) – é a seguinte:
- Se, tendo sido penhorado o direito do executado a uma herança ilíquida e indivisa, devem ser depositadas à ordem dos autos de execução as rendas de bens imóveis que compõem essa herança ou, caso assim não se entenda, se deve ser penhorado o direito do executado àquelas rendas.

Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios (artº 601º do CC).
A penhora consubstancia-se na apreensão jurídica de bens do devedor ou de terceiro, em termos de desapossamento em relação àqueles e de empossamento quanto ao tribunal, com vista à realização dos fins da acção executiva[1].
Enquanto que a lei civil distingue entre coisas móveis e imóveis (artºs 204º e 205º do CC), a lei processual regula separadamente a penhora de imóveis, a de móveis e a de direitos (artºs 838º a 847º, 848 a 855º e 856º a 863º, respectivamente, todos do CPC – Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem, na redacção anterior à entrada em vigor do DL 38/03 de 08.03, aqui aplicável - cfr. artº 21º deste Diploma).
Segundo Lebre de Freitas[2], não obstante a tripartição legal do objecto da penhora (penhora de bens imóveis, penhora de bens móveis, penhora de direitos), ela não se deixa, rigorosamente, classificar em penhora de coisas e penhora de direitos (…) nem, quando estão em causa créditos ou bens imateriais, deixa de ser uma penhora para passar a ser uma mera substituição subjectiva numa relação jurídica e, portanto, nas consequências, prováveis ou possíveis, dessa relação (…). A penhora actua, em qualquer caso, sobre um bem (o que explica a constituição do direito real de garantia, nem sempre acompanhada de uma transferência de posse), enquanto objecto da afectação própria do direito subjectivo (de onde deriva a ineficácia relativa dos actos de disposição ou oneração subsequentes à penhora, bem como dos actos extintivos do direito de crédito). A classificação legal, que divergências de regime impõem, não resiste à consideração de que em dois dos seus termos (penhora de bens imóveis e penhora de bens móveis) está em causa o direito de propriedade plena e exclusiva ou um direito real menor que acarrete a posse efectiva e exclusiva da coisa, enquanto o terceiro (penhora de direitos) respeita a todos os outros tipos de situação.
Diz o artº 826º que, nos casos de comunhão num património autónomo ou de compropriedade em bens indivisos, se a execução for movida apenas contra algum ou alguns dos contitulares, não podem ser penhorados os bens compreendidos no património comum ou uma fracção de qualquer deles, nem uma parte especificada dos bens indivisos.
É entendimento pacífico que a herança, antes da partilha, constitui uma universitas juris, um património autónomo, com conteúdo próprio, que, de algum modo, se confunde com a figura da compropriedade. Até à partilha, os direitos dos herdeiros recaem sobre o conjunto da herança; cada herdeiro apenas tem direito a uma parte ideal da herança e não a bens certos e determinados desta[3]. Só depois da realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança[4].
Por isso, o disposto no citado artº 862º tem aplicação à herança ilíquida e indivisa: a penhora só pode incidir sobre o direito do executado à herança, ou seja, sobre uma quota-ideal do património hereditário e nunca sobre algum ou alguns dos bens certos e determinados que compõem a herança.
A partilha do direito à herança é feita em conformidade com o disposto no artº 862º[5].
Por força do disposto no nº 1 daquele preceito, a penhora do direito à herança ilíquida e indivisa consiste apenas na notificação do facto ao cabeça-de-casal, enquanto administrador dos bens (artº 2079º do CC), e aos co-herdeiros, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do tribunal da execução.
A notificação aos co-herdeiros tem por finalidade possibilitar a estes o exercício do direito de preferência na venda do direito penhorado, que lhes assiste por força do disposto no nº 1 do artº 2130º do CC.
Tanto assim é que, na venda judicial do direito à herança ilíquida e indivisa, devem os co-herdeiros ser notificados, na qualidade de titulares de um direito de preferência, do dia, hora e local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio acto, se alguma proposta for aceite (cfr. artº 892º, nº 1).
O artº 863º diz que é subsidiariamente aplicável à penhora de direitos o disposto nas subsecções anteriores para a penhora das coisas imóveis e das coisas móveis.
Mas nem todas as normas relativas à penhora de bens imóveis e de bens móveis podem ser aplicadas à penhora de direitos a bens indivisos.
Por exemplo, a penhora sobre o direito a bens indivisos só é registável quando a indivisão respeite a um único bem sobre o qual sejam registáveis direitos. Se compreender vários bens, o registo não é necessário e nem sequer se pode fazer, por não se poder determinar senão depois da divisão, a qual ou quais bens respeita o direito. Como exemplo do primeiro caso, temos a penhora do direito a um bem imóvel; como exemplo do segundo, temos precisamente a penhora do direito a uma herança ilíquida e indivisa[6].
Vejamos então o caso da extensão da penhora previsto no artº 842º:
Segundo o nº 1 daquele preceito, a penhora abrange o prédio com todas as suas partes integrantes e os seus frutos, naturais ou civis, desde que não sejam expressamente excluídos e nenhum privilégio exista sobre eles.
Diz-se fruto de uma coisa tudo o que ela produz periodicamente, sem prejuízo da sua substância (artº 212º, nº 1 do CC).
Os frutos são naturais ou civis; dizem-se naturais os que provêm directamente da coisa, e civis as rendas ou interesses que a coisa produz em consequência de uma relação jurídica (nº 2 do mesmo preceito).
Como decorre da redacção do nº 2 do artº 842º, apenas os frutos naturais (pendentes) podem ser penhorados separadamente, como coisas móveis.
Por força do disposto no artº 863º, o artº 842º, nº 1 é aplicável à penhora de direitos[7]. Como escreve Lopes Cardoso[8], o direito penhorado pode ter rendimentos que alguém terá de cobrar e depositar a favor da execução, tal como está prescrito para os rendimentos de imóveis penhorados.
Tal é possível se a penhora incidir sobre o direito do executado a um bem determinado, como no caso da compropriedade: tendo o comproprietário direito a uma quota-parte daquele bem em concreto (artº 1403º do CC), tem igualmente direito a idêntica quota-parte dos frutos daquele bem, pelo que a penhora do direito abrange a penhora dos frutos, por força do disposto no artº 842º, nº 1, ex vi artº 863º.
Mas, como vimos, a penhora do direito à herança incide sobre a quota-ideal do executado num património composto por vários bens e não sobre a quota-parte de um bem determinado daquele património.
Ora, se o executado não tem direito a uma quota-parte de determinado bem da herança, não tem também direito aos frutos produzidos por aquele bem, pelo que a penhora do direito à herança não os pode abranger nos termos do artº 842º, nº 1.
Pela mesma ordem de razões, não é possível penhorar o direito do executado aos rendimentos de um determinado bem da herança.
A herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados (artº 2068º do CC).
Como salientam Pires de Lima e Antunes Varela[9], enquanto houver bens no património hereditário, é à custa deles que as despesas referidas no artº 2068º do CC devem ser pagas, porque, embora não sendo dívidas do autor da herança, são dívidas contraídas por causa dele, por força do respeito devido ao seu corpo e à sua alma e em obediência ético-jurídica ao destino que ele pretende dar aos seus bens, para depois da sua morte.
A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal (artº 2079º do CC).
Diz o artº 2092º do CC que qualquer dos herdeiros ou o cônjuge meeiro tem o direito de exigir que o cabeça-de-casal distribua por todos até metade dos rendimentos que lhes caibam, salvo se forem necessários, mesmo nessa parte, para satisfação dos encargos da administração.
Por seu turno, o artº 2093º, nº 1 do mesmo Diploma estabelece a obrigação de o cabeça-de-casal prestar contas anualmente.
A norma do artº 2092º do CC foi estabelecida contra o cabeça-de-casal – sujeito passivo da obrigação – jamais, em seu favor; visou a impedir que este, dilatando-se o inventário, colocasse os interessados na triste situação de não receberem coisa alguma enquanto não findasse o processo[10].
A obrigação de entrega de parte dos rendimentos é independente da obrigação de prestação anual de contas, de que trata o artº 2093º do CC.
Segundo Lopes Cardoso[11], a harmonia entre os preceitos estabelece-se facilmente da seguinte forma: - requerido e decidido que o cabeça-de-casal deve distribuir os rendimentos, e cumprida esta obrigação por sua parte, ele fará constar essas entregas como despesas nas contas que venha a prestar, espontânea ou forçadamente (citado artº 2093º, nº 2).
Havendo saldo positivo das contas prestadas pelo cabeça-de-casal, este é distribuído pelos interessados, segundo o seu direito, depois de deduzida a quota necessária para os encargos do novo ano (nº 3 do artº 2093º do CC).
Resulta do exposto que, se o herdeiro não tem direito ao rendimento de bens da herança certos e determinados, tem, no entanto, direito a receber uma quota-parte dos rendimentos da herança, até ao limite máximo de metade, nos termos do artº 2092º do CC.
Porém, essa distribuição de rendimentos tem de ser requerida pelo herdeiro e essa exigência pode nem sequer ser satisfeita se mesmo essa metade for necessária para satisfazer os encargos da administração da herança, como dispõe expressamente o citado preceito.
Assim, em execução em que se encontre penhorado o direito a uma herança ilíquida e indivisa, não tem o exequente legitimidade para exigir do cabeça-de-casal a distribuição de rendimentos a que se reporta o artº 2092º do CC.
Quanto ao saldo resultante da prestação anual de contas pelo cabeça-de-casal, é este obrigatoriamente distribuído pelos herdeiros, depois de deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano, sem necessidade de ser pedido pelos herdeiros, como expressamente dispõe o nº 3 do artº 2093º do CC.
Se o cabeça-de-casal prestou contas e não distribuiu o saldo pelos herdeiros, como lhe competia, nada obsta em que, em execução movida contra os herdeiros, a quota-parte do executado naquele saldo seja penhorado, uma vez que não se trata do direito o rendimento de um bem da herança, mas de uma quantia efectivamente devida ao executado que só não entrou no seu património por o cabeça-de-casal não ter cumprido a sua obrigação de distribuição do saldo.

No caso dos autos, nada se disse acerca de os herdeiros terem pedido a distribuição dos rendimentos da herança nos termos previstos no artº 2092º do CC, pelo que carece o exequente de legitimidade para pedir aquela distribuição.
Quanto à penhora do saldo apurado na prestação de contas, o exequente não a pediu.
E ainda que se pudesse entender que a pediu, aquele saldo não se mostra apurado, uma vez que a “prestação de contas” junta pelo cabeça-de-casal não se encontra formalizada nos termos exigidos pelo artº 2093º do CC: para além de se reportar apenas às rendas dos dois imóveis acima referidos (desconhecendo-se se existem outros rendimentos da herança), não se mostram deduzidos os encargos do ano seguinte.
Assim, a penhora daquele saldo equivaleria à penhora dos rendimentos de bens determinados, que já vimos que não é possível.

Improcedem assim todas as conclusões do agravante, restando negar provimento ao agravo e confirmar a decisão recorrida.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo e, em consequência:
- Confirma-se o despacho recorrido.
Custas pelo agravante.
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Porto, 17 de Setembro de 2009
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Evaristo José Freitas Vieira
José da Cruz Pereira

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[1] Castro Mendes, Acção Executiva, págs. 73 e 74.
[2] A Acção Executiva à Luz do Código Revisto, 2ª ed., pág. 172, nota 4.
[3] Cfr, entre outros, o Ac. do STJ de 17.04.80, BMJ 296º-298.
[4] Ac. do STJ de 26.01.99, BMJ 483º-211.
[5] Cfr. Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, pág. 487 e Lebre de Freitas, obra citada, pág. 204.
[6] Lopes Cardos, obra citada, pág. 490. No mesmo sentido, Alberto dos Reis, Processo de Execução, 2º, págs. 224 e 225 e Lebre de Freitas, obra citada, pág. 208.
[7] Neste sentido, Lebre de Freitas, obra citada, pág. 193.
[8] Obra citada, pág. 490.
[9] CC Anotado, VI, pág. 118.
[10] Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, II, 3ª ed., pág. 69.
[11] Obra citada, pás. 69 e 70.