JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
REGISTO PREDIAL
Sumário


“A exigência de prova da licença de utilização, feita no art. 1º, nº 1 do Dec-Lei n.º 281/99, de 26/07, é aplicável a todos os tipos de escrituras de justificação notarial, previstas no art. 116º, nº 1 do CRP.”

Texto Integral


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Recorrente(s):- Maria e marido Manuel;

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Maria e marido Manuel vieram impugnar judicialmente o despacho proferido pelo Exmo. Presidente do Conselho Directivo no dia 28 de Março de 2017, relativo à Ap. 3033 de 22-11-2016, provisório por dúvidas, e respeitante ao prédio urbano sito no …, Lugar de …, freguesia de …, concelho de Viana do Castelo, omisso na Conservatória do Registo Predial e inscrito na matriz predial da freguesia de … sob o artigo urbano ….

Em resumo, os Recorrentes alegam que requereram na Conservatória do Registo Predial o registo a seu favor da aquisição do prédio artigo … urbano, sito na freguesia de …, concelho de Viana do Castelo. Acompanharam o requerimento com uma escritura pública de justificação outorgada no dia 6 de Outubro de 2016, caderneta predial e imposto de selo. Declararam complementarmente desconhecer os possuidores imediatamente anteriores ao transmitente por já terem falecido há mais de vinte anos.

Fundamentaram os Recorrentes a sua posição nos seguintes motivos:

- Foi indeferido o recurso hierárquico apresentado pelos ora impugnantes;
- Decorre do referido despacho que foi correcta a qualificação do registo de aquisição peticionado pela apresentação ap. 3033 de 22-11-2016 como provisório por dúvidas, porquanto “a exigência estabelecida no artigo 4º do DL nº 281/99, de 26 de Julho aplica-se a todas as modalidades de justificação previstas no artigo 116º do Código do Registo Predial, porquanto o preceito legal não distingue consoante se trate do reatamento do trato sucessivo ou do seu estabelecimento”;
- Entenderam que não assiste razão ao Exmo. Sr. Presidente do Conselho Directivo;
- A escritura de justificação notarial que serviu de base ao pedido de registo em causa constitui um título de aquisição originária do terreno onde se encontra edificada a casa de habitação, sendo que, a construção realizada nesse imóvel, foi efectuada pelos sujeitos beneficiários da usucapião;
- Trata-se de uma justificação notarial destinada à descrição ex novo de um prédio rústico omisso na Competente Conservatória e destinado à inscrição do respectivo direito de propriedade a favor dos justificantes, por falta de título de aquisição do terreno;
- Conforme decorre da escritura de justificação, o prédio inscrito na matriz sob o nº … foi construído pelos justificantes, a expensas suas, no prédio rústico por eles adquirido por doação verbal no ano de 1980, em mês e dia que não podem precisar, feita pelos seus pais e sogros, Joaquim e Josefina, tendo desde logo iniciado a implantação de uma construção, implantando os materiais de construção e efectuando as respectivas fundações, não dispondo, porém, de qualquer título formal que lhes permitia o respectivo registo do terreno onde foi implantada a construção na C.R.P.;
- E, desde essa data, entraram na posse e fruição do referido prédio, iniciando as obras de construção e o seu licenciamento na Câmara Municipal, por volta do ano de 1984, ocupando-o e habitando-o desde 1984, em nome próprio, posse que assim se detém há mais de vinte anos, sem interrupção ou ocultação de quem quer que seja.
- A questão que se colocava no recurso era a de saber se era ou não exigível licença de utilização nas escrituras de justificação notarial para a primeira inscrição, em que o acto de aquisição do prédio objecto de usucapião é apenas o terreno e não o acto de aquisição da construção nele existente, questão directamente relacionada com a interpretação dos artigos 1º, nº 1 e 4º do DL nº 281/99 de 26 de Julho;
- Entenderam os recorrentes não ser exigível a licença de utilização porquanto o artigo 1º, nº 1 não se aplica a todos os tipos de justificação notarial, mas apenas àquelas que envolvam a transmissão do prédio urbano, não sendo o caso dos autos;
- Ainda que se entendesse estarmos perante uma justificação notarial de prédio urbano, o que não é o caso, entendiam não ser necessária a exibição de licença de utilização, uma vez que se estava perante uma aquisição originária;
- O legislador excluiu a exigência da prova da existência do alvará de licença de utilização nas escrituras de justificação notarial de prédios urbanos com base em usucapião, por se estar perante uma situação de aquisição originária e, por isso, incompatível com qualquer ideia de transmissão;
- Apenas nas escrituras de justificação para reatamento do trato sucessivo, em que se mostre necessário proceder à reconstituição de títulos intermédios que envolvam transmissão entre vivos de prédios urbanos, para fazer a necessária aglutinação com as inscrições constantes do registo predial é que será necessário fazer a prova a que alude a conclusão do nº 1 do artigo 1º do citado DL.
- Em situações semelhantes foi dispensada pela Conservatória do Registo Predial a exigência de licença de utilização;
- O despacho de que se recorre viola o princípio da segurança jurídica.
- A decisão recorrida violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 1º, nº 1 e 4º do DL nº 281/99, de 26 de Julho, na redacção introduzida pelo DL nº 116/2008, de 4 de Julho.
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Foi proferido despacho de sustentação da decisão – cfr. fls. 58 a 62.
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O Ministério Público emitiu parecer subscrevendo a posição assumida pela Conservatória do Registo Predial.
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Prosseguiram os autos seus regulares termos, tendo o Tribunal Recorrido proferido a seguinte decisão:
“Assim sendo e pelas razões explanadas, concluímos que não assiste razão aos recorrentes, pelo que se mantém o despacho recorrido e, como consequência, julgamos o presente recurso totalmente improcedente.
Custas pelos recorrentes.
Registe e notifique. “
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É justamente desta decisão que os Recorrentes vieram interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“CONCLUSÕES:

1. Refere-se o presente recurso à douta sentença que manteve o despacho recorrido e, em consequência, julgou o recurso totalmente improcedente.
2. Entende a douta sentença recorrida que a exigência do disposto no artigo 4º do DL nº 281/99, de 26 de Julho se aplica a todas as modalidades de justificação de direito previstas no artigo 116º do Código do Registo Predial e, portanto, aplica-se não só aos casos de reatamento de trato sucessivo como também aos de estabelecimento de trato (aquisição originária), como é o caso em apreço.
3. Entendem os Recorrentes que não assiste razão ao Tribunal a quo.
4. A escritura de justificação notarial que serviu de base ao pedido de registo em causa constitui um título de aquisição originária do terreno onde se encontra edificada a casa de habitação, sendo que, a construção realizada nesse imóvel, foi efectuada pelos sujeitos beneficiários da usucapião.
5. Trata-se de uma justificação notarial destinada à descrição ex novo de um prédio rústico omisso na Competente Conservatória e destinado à inscrição do respectivo direito de propriedade a favor dos justificantes, por falta de título de aquisição do terreno.
6. Conforme decorre da escritura de justificação, o prédio inscrito à matriz sob o n.º …, foi construído pelos justificantes, a expensas suas, no prédio rústico por eles adquirido, por doação verbal, no ano de mil novecentos e oitenta, em mês e dia que não podem precisar, feita pelos seus pais e sogros, Joaquim e Josefina, respectivamente, tendo desde logo iniciado a implantação de uma construção, implantando os materiais de construção e efectuando as respectivas fundações, não dispondo, porém, de qualquer título formal que lhes permita o respectivo registo do terreno onde foi implantada a construção na Conservatória do Registo Predial,
7. e que, desde essa data, entraram na posse e fruição do referido prédio iniciando as obras de construção, e o seu licenciamento na Câmara Municipal, por volta do ano de mil novecentos e oitenta e quatro, ocupando-o e habitando-o desde mil novecentos e oitenta e quatro, em nome próprio, posse que assim detêm há mais de vinte anos, sem interrupção ou ocultação de quem quer que seja.
8. Entendem os recorrentes não ser exigível a licença de utilização, porquanto o artigo 1º, n.º 1 do referido DL não se aplica a todos os tipos de justificação notarial, mas apenas àquelas que envolvam a transmissão de prédio urbano, não sendo o caso dos autos.
9. Ainda que se entendesse estarmos perante uma justificação notarial de prédio urbano, o que não é o caso, entendemos não ser necessária a exibição de licença de utilização, uma vez que se está perante uma aquisição originária.
10. O legislador quis excluir a exigência da prova da existência do alvará de licença de utilização nas escrituras de justificação notarial de prédios urbanos que sejam alicerçadas com base em usucapião, uma vez que se está perante uma situação de aquisição originária, e, por isso, incompatível com qualquer ideia de transmissão.
11. Apenas nas escrituras de justificação para reatamento do trato sucessivo, em que se mostre necessário proceder à reconstituição de títulos intermédios que envolvam a transmissão inter vivos, de prédios urbanos, para fazer a necessária aglutinação com as inscrições constantes do registo predial, é que será necessário fazer a prova a que alude a conclusão do n.º 1 do artigo 1º do supra citado DL, ou, eventualmente, a prova da sua dispensabilidade, nos termos consentidos pela lei.
12. É este o entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23.04.2003, processo n.º 220/03, e do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 16.03.2016, processo 086/16,
13. bem como, o entendimento consagrado pelo legislador, através do DL 41/2016 de 1 de Agosto, na nova redacção dada pelo artigo 13º, n.º 7 do Código do Imposto de Selo.
14. Em situações semelhantes, ou seja, em casos de registo de aquisição com base em escritura de justificação notarial, foi dispensada, pela Conservatória de Registo Predial, a exigência de licença de utilização, conforme apresentação 2222, de 2016/04/26, descrição 0000 de … e apresentação 1111 de 2014/09/03, descrição 3333 de Castelo do Neiva.
15. O despacho de que se recorre e, por conseguinte, a exigência de licença de utilização para o presente registo de aquisição é no mínimo inesperada para os recorrentes e viola um dos mais elementares princípios da justiça, que é o da segurança jurídica.
16. O Acórdão a que se refere o despacho recorrido – o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.03.2011 – já existia à data em que foram efectuados os registos de aquisição acima referidos e a Conservatória de Registo Predial a ele não se referiu, aceitando efectuar os registos com a dispensa da licença de utilização.
17. O Acórdão invocado pela Exma. Sra. Conservadora refere-se à justificação de um prédio urbano e não ao terreno onde tal prédio foi edificado, o que não é o caso presente, porquanto e como já se disse, na escritura justificou-se o prédio rústico onde a construção foi levada a efeito.
18. A ser exigível aos recorrentes a licença de utilização, jamais poderão fazer o registo de aquisição do prédio em causa, porquanto não dispõem de documento idóneo de registo de aquisição, documento esse necessário para instruir o pedido de licença de utilização.
19. A decisão recorrida violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 1º, n.º 1 e 4º do DL 281/99 de 26 de Julho (com a redacção introduzida pelo DL 116/2008 de 04/07).
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, determinando-se a realização do acto de registo em causa com carácter definitivo.”.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, os Recorrentes colocam a seguinte única questão que importa apreciar:

- saber se o registo foi indevidamente lavrado como provisório por dúvidas, porque, no caso da escritura de justificação notarial aqui em discussão, não é exigível que se comprove a existência de licença de utilização nos termos do artigo 4º do DL nº 281/99, de 26/07.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
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A decisão proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

III. Importa ter em consideração os seguintes factos:

No dia 22 de Novembro de 2016 ER, advogada, formulou requerimento onde pediu o registo de aquisição a favor de Maria e de Manuel do prédio com o artigo … urbano, da freguesia de …, do concelho de Viana do Castelo.
No requerimento declarou-se que se desconheciam os possuidores imediatamente anteriores ao transmitente por já terem falecido há mais de vinte anos.
Com o requerimento foram entregues os seguintes documentos: escritura pública de justificação, datada de 6 de Outubro de 2016, caderneta predial e imposto de selo.
Foi outorgada escritura de justificação em 6 de Outubro de 2016, sendo outorgantes Maria e Manuel, AM, DE e MM.
Pelos primeiros outorgantes foi dito que são donos e legítimos proprietários, com exclusão de outrem, do prédio urbano, sito no …, lugar de …, na freguesia de …, concelho de Viana do Castelo, composto de casa de habitação de rés-do-chão, anexo e logradouro, destinado a habitação, com a área coberta de cento de dois metros quadrados e superfície descoberta de quatrocentos e oitenta e dois metros quadrados, omisso na Conservatória do Registo Predial, inscrito na matriz predial da freguesia de …, em nome da justificante mulher, sob o artigo urbano nº …, tendo sido apresentada participação para a sua actualização no Serviço de Finanças, em 1 de Setembro de 2016, desconhecendo o artigo rústico do terreno onde a construção foi implantada, o que declaram sob a sua inteira responsabilidade, com o valor patrimonial de 16.740,00 euros, ao qual atribuem igual valor. Que o referido prédio foi construído pelos justificantes, no estado de casados, a expensas suas, no prédio rústico adquiridos pelos primeiros outorgantes, por doação verbal, no ano de 1980, em mês e dia que não podem precisar, feita por seus pais e sogros, Joaquim e Josefina, respectivamente, residentes que foram no Lugar de …, na freguesia de …, concelho de Viana do Castelo, tendo desde logo iniciado a implantação de uma construção, implantando materiais de construção e efectuando as respectivas fundações, não dispondo de qualquer título formal que lhes permita o respectivo registo do terreno onde foi implantada a construção na Conservatória do Registo Predial. Que, no entanto, entraram desde essa data na posse e fruição do referido prédio, iniciando as obras de construção e o seu licenciamento na Câmara Municipal, por volta do ano de 1984, ocupando-o, habitando-o desde 1984, em nome próprio, posse que assim detêm há mais de vinte anos, sem interrupção ou ocultação de quem quer que seja. Que a posse foi adquirida e mantida sem violência e sem oposição, ostensivamente, com o conhecimento de toda a gente, em nome próprio e com aproveitamento de todas as utilizadas do prédio, habitando-o e ocupando-o, procedendo a obras de conservação e manutenção, agindo sempre de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, quer usufruindo como tal o imóvel quer suportando os respectivos encargos. Que esta posse, em nome próprio, pacífica, contínua e pública, desde 1980, conduziu à aquisição do imóvel por usucapião, que invocam, justificando o seu direito de propriedade para o efeito de registo, dado que esta forma de aquisição não pode ser comprovada por qualquer outro título formal extrajudicial.
Pelos segundos outorgantes foi dito que confirmam as declarações prestadas pelos primeiros outorgantes, por corresponderem inteiramente à verdade.

Na escritura foi consignado pela Sra. Notária, no que respeita à não exigência da licença de utilização do prédio, que subscrevia tal entendimento, no seguimento da doutrina jurisprudencial contida no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23 de Abril de 2003.
O requerimento deu origem à apresentação nº 3033 de 22-11-2016, com o nº de ficha …, freguesia …, nº na matriz …, natureza urbana e freguesia da matriz ….
Foi proferido o seguinte despacho de qualificação “lavrado provisoriamente por dúvidas o acto de registo requerido por não se comprovar a existência de licença de utilização nos termos do artigo 4º do DL nº 281/99, de 26/07. É certo que a Exma Srª Notária deu cumprimento ao disposto no artigo 1º, nº 2, do citado DL, na medida em que consigna no título a não exigência de licença de utilização por subscrever o entendimento jurisprudencial contido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23 de Abril de 2004(3). Contudo, a jurisprudência contida no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2 de Março de 2011 conclui pela exigência de prova da licença de utilização, feita no artigo 1º, nº 1 do DL nº 281/99 de 26 de Julho é aplicável também às escrituras de justificação notarial previstas no artigo 116º, nº 1, do Código do Registo Predial.
Em 29 de Dezembro de 2016 foi apresentado recurso hierárquico pelos referidos Elisa Barros e Manuel.
O recurso hierárquico foi indeferido. “
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Já se referiu qual é a única questão que é colocada nos presentes autos.

Em primeiro lugar, importa definir, de uma forma exacta, os contornos da questão.
Na verdade, os Recorrentes defendem que, no caso concreto, se trata de uma justificação notarial destinada à descrição ex novo de um prédio rústico omisso na Competente Conservatória e destinado à inscrição do respectivo direito de propriedade a favor dos justificantes, por falta de título de aquisição do terreno.
No entanto, julga-se que assim não é.
Primeiro, porque se assim fosse a questão nem sequer se levantava, pois que se se tratasse da justificação notarial de um prédio rústico não era exigível a exibição da licença de utilização.
É justamente por causa disso (por ter entendido que se tratava de uma escritura de justificação notarial relativa a um prédio urbano) que a Exma. Sra. Notária fez menção na escritura de que, no que respeita à não exigência da licença de utilização do prédio, subscrevia tal entendimento no seguimento da doutrina jurisprudencial contida no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23 de Abril de 2003.
Refira-se, aliás, que é isso que decorre manifestamente do próprio teor da escritura de justificação notarial aqui em discussão.
Com efeito, nos termos da aludida escritura, os outorgantes declararam que (“(…) são donos e legítimos proprietários, com exclusão de outrem, do prédio urbano, sito no …, lugar de …, na freguesia de …, concelho de Viana do Castelo, composto de casa de habitação de rés-do-chão, anexo e logradouro, destinado a habitação, com a área coberta de cento de dois metros quadrados e superfície descoberta de quatrocentos e oitenta e dois metros quadrados, omisso na Conservatória do Registo Predial, inscrito na matriz predial da freguesia de …, em nome da justificante mulher, sob o artigo urbano nº … (..)”)(1).
Feita esta precisão, e estabelecendo-se, pois, que se trata de uma escritura de justificação notarial relativa a um prédio urbano (2), importa entrar então na questão de saber se a exigência de licença de utilização é aplicável a todas as escrituras de justificação notarial, ou se tal licença não será exigível nas escrituras de justificação notarial que assumam a natureza daquela que os aqui Recorrentes outorgaram.
Antes de entrarmos directamente nesta questão, importa esclarecer o regime legal aqui em aplicação.
Em primeiro lugar, neste âmbito, importa ter em atenção o que dispõe o art. 1º, nº 1 do Dec. Lei 281/99 onde se refere que: “não podem ser celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça perante o notário prova suficiente da inscrição na matriz predial, ou da respectiva participação para a inscrição, e da existência da correspondente licença de utilização, de cujo alvará, ou isenção de alvará, se faz sempre menção expressa na escritura.”
Ora, o legislador, no art. 4º do citado DL, estendeu estas exigências às escrituras de justificação previstas no art. 116º do CRegPredial.
Na verdade, aí ficou referido que:
“A justificação para os efeitos do artigo 116º do CRP que tiver por objecto prédios urbanos fica sujeita à disciplina deste diploma, na parte que lhe for aplicável.”.
É, pois, em face deste regime legal que a questão se coloca.
Ou seja, no fundo, as teses em confronto partem da interpretação do citado art. 4º e concluem que o seu âmbito de aplicação é diferente.
Na verdade, como decorre do exposto, é justamente nesse ponto que a Jurisprudência se mostra dividida.
Assim, segundo o ac. desta Relação de 23.4.2003 (3) citado pela Exma. Sra. Notária “só nas escrituras de justificação para reatamento do trato sucessivo em que se mostre necessário proceder à reconstituição de títulos intermédios que envolvam a transmissão de prédios urbanos será necessário fazer prova da licença de utilização…”.
Nas outras- na justificação notarial para primeira inscrição-, uma vez que não há transmissão “…não se nos afigura que seja exigível a prova da existência da licença de utilização”, porque a finalidade subjacente ao DL 218/99 (aos arts. 1º e 4º) é salvaguardar quem adquire.
Já no Ac. da RC de 2.3.2011 (4), citado pelos Serviços do Registo Predial, defendeu-se que tal exigência é aplicável a todas as escrituras de justificação notarial.
Importa aqui fazer a distinção entre os tipos de escritura de justificação notarial, previstas no art. 116º do CRegPredial.
Como é sabido, as escrituras de justificação foram permitidas “para resolver o problema da falta dos documentos comprovativos de uma determinada aquisição – porque de todo nunca existiram, porque não se sabe onde se encontram ou porque se terão extraviado”.
Ora, perante essas situações, “…colocou-se ao legislador o problema de procurar a melhor e mais expedita maneira de resolver a questão. A solução encontrada, com vista a suprir a falta desses documentos, consistiu precisamente na permissão (e divulgação) das justificações como um meio idóneo para o ingresso dos prédios no sistema registral e para o estabelecimento ou restabelecimento do trato sucessivo…” (5).

“… Partindo sempre da circunstância de que o interessado não disponha de documento bastante para comprovar o seu direito, os casos em que a justificação notarial é legalmente admitida para fins de registo predial são os seguintes:

a) para obter a primeira inscrição, ou seja, para estabelecimento do trato sucessivo relativamente a prédios ainda não descritos ou, quando objecto já de descrição, sobre eles não incida inscrição de aquisição ou equivalente;
b) para reatamento do trato sucessivo, quando a sequência das aquisições derivadas (transmissões intermédias) se não interrompe desde o proprietário inscrito até ao actual proprietário (justificante), acontecendo porém que, relativamente a alguma ou algumas dessas transmissões, os interessados não dispõem do respectivo documento que as permita comprovar, apesar de terem sido tituladas de conformidade com a lei (ou porque o documento se extraviou ou foi destruído num incêndio ou por outro qualquer motivo atendível, designadamente porque não foi possível localizar o cartório onde ele foi lavrado);
c) para estabelecimento de novo trato sucessivo, contemplando então aquelas situações em que se verifique uma quebra na cadeia das aquisições derivadas por abandono do proprietário (quer o inscrito quer outro subsequente a ele), tornando por isso necessário que o justificante invoque a posse conducente à usucapião, enquanto causa originária da aquisição.
No caso da primeira inscrição a justificação consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais, devendo, quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, ser mencionadas expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.
No caso de reatamento do trato sucessivo a justificação tem por objecto a dedução do trato sucessivo a partir do titular da última inscrição, por meio de declarações prestadas pelo justificante, devendo na escritura reconstituir-se as sucessivas transmissões, com especificação das suas causas e identificação dos respectivos sujeitos, e indicar-se ainda, relativamente àquelas a respeito das quais o interessado afirme ser-lhe impossível obter o título, as razões de que resulte essa impossibilidade.
No caso de estabelecimento de novo trato sucessivo a justificação consiste na afirmação, feita pelo interessado, das circunstâncias em que se baseia a aquisição originária, com dedução das transmissões que a tenham antecedido e das subsequentes, devendo na escritura reconstituir-se as sucessivas transmissões, com especificação das suas causas e identificação dos respectivos sujeitos, e indicar-se ainda, relativamente àquelas a respeito das quais o interessado afirme ser-lhe impossível obter o título, as razões de que resulte essa impossibilidade e as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião” (6).
Quanto aos requisitos de admissibilidade processual de cada uma das modalidades de justificação deve-se ainda ter em atenção o disposto nos arts 117º-A e ss. do CRegPredial (7).
Aqui chegados, e feitas estas distinções, importa, então, interpretar os citados preceitos legais, no sentido de verificar qual das teses em confronto deve merecer acolhimento.

Da análise do ac. da RG de 23.4.2003, constata-se que são três os argumentos que fundamentam a não exigência de licença de utilização nos casos de escritura de justificação notarial ditas de primeira inscrição:

-“é evidente que o DL 218/99 ao exigir a licença de construção quer proteger o consumidor-adquirente, assegurando-lhe que a escritura de aquisição só se realiza se estiver certificado que o prédio está apto para o fim a que se destina” (pág. 3 do Acórdão);
-“No caso em apreço, estamos perante uma justificação notarial para primeira inscrição e por isso não há qualquer transmissão que não tem sequer de ser alegada… Ora, não havendo transmissão, não se nos afigura que seja exigível a prova da existência da licença de utilização. O citado art. 4º do DL nº 218/99 quando estipula “a justificação ao abrigo do art. 116º do CRP fica sujeita à disciplina deste diploma, na parte que lhe for aplicável” está a limitar a sua aplicação às situações em que tal justificação confirme uma transmissão” (pág. 4).
-os requerentes “…dos licenciamentos urbanos para obterem licença de utilização têm que demonstrar que são proprietários. Ora, é o recurso à justificação notarial e posterior inscrição do prédio que lhes vai permitir requerer a correspondente licença de utilização. Por isso exigir a licença de utilização para a justificação notarial para a primeira inscrição significa, em termos práticos, inviabilizar a sua realização e, por outro lado, impedir a obtenção da licença…”

Sucede que esta argumentação não pode merecer o nosso acolhimento.

Na verdade, e salvo o devido respeito pela opinião contrária, a verdade é que, tendo em conta o teor dos preceitos legais em aplicação e as razões subjacentes à sua aplicabilidade, deve entender-se que a exigência de licença de utilização é obrigatória para todos os casos de justificação notarial previstos no art. 116º do CRP.

Com efeito, contrariamente aquilo que foi defendido no citado ac. da RG, a razão de ser subjacente à invocada legislação não contende apenas com a protecção do comprador-consumidor, nem apenas é exigível nos casos em que na escritura de justificação se opere uma transmissão.

Senão vejamos.

No caso concreto, não podem existir dúvidas de que os Recorrentes podiam para suprir a falta do título necessário para a primeira inscrição no registo predial utilizar a escritura de justificação notarial, tal como sucedeu.

Com efeito, o adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição predial por tal via (8).
Sendo normalmente invocada - como também, no caso concreto, se verificou -, na escritura de justificação para primeira inscrição, a usucapião como causa de aquisição do direito.
Como já se referiu, os Recorrentes defendem (assim como o citado ac. da RG) que os citados preceitos legais seriam inaplicáveis ao caso concreto, alegando, no fundo, que procurando evitar-se através do art. 1º do DL 281/99 o tráfico jurídico de prédios urbanos ou das suas fracções autónomas que não se mostrem devidamente licenciadas (assim se evitando a proliferação das construções clandestinas) e, como inexiste qualquer transmissão no caso concreto, não há lugar á exigência prevista no citado art. 1º, nº 1.
Sucede que o âmbito de protecção das invocadas previsões legais não é restrito a actos de transmissão, nem visa apenas a protecção do comprador-consumidor.
Na verdade, quanto à razão de ser subjacente à lei, julga-se que deve ser acolhida antes a posição explanada, de uma forma fundamentada, no ac. da RC de 16.3.2004:
“O Regulamento Geral das Edificações Urbanas aprovado pelo DL 38382, de 7/8/1951, [que] introduziu, no seu art. 8º, a necessidade de licença municipal para a utilização de qualquer edificação nova, reconstruída, ampliada ou alterada, quando da alteração resultem modificações importantes das suas características.
Só podendo ser concedidas tais licenças nos termos dos §§ 1º e 2º do ora citado preceito legal, designadamente após vistoria destinada a verificar se as obras obedeceram às condições da respectiva licença, ao projecto aprovado e às condições legais e regulamentares aplicáveis.
Tendo o aludido diploma, segundo consta do preâmbulo do DL que o aprovou, não só a preocupação de tornar as edificações urbanas salubres, mas também de as construir com os exigidos requisitos de solidez e defesa contra o risco de incêndio e de lhes garantir condições mínimas de natureza estética.”
Depois, tendo em conta as referências legais que são feitas no preâmbulo daquela Dec. Lei 281/99, o acórdão lembra ainda:
“[…] a origem do citado art. 44º/1 [da Lei 46/85] remonta ao DL 445/74, de 12/09, também denominado "lei das rendas", onde se preceituava, no seu art. 11º/1 que: "Não poderão ser celebrados contratos que impliquem a transmissão da propriedade de fogos destinados a habitação ou de prédios urbanos que comportem um ou mais fogos desse tipo sem que faça perante o notário competente a exibição da correspondente licença de utilização, à qual se fará sempre menção no respectivo acto formal".
Com a exigência da exibição da licença de utilização e a obrigatoriedade da sua expressa menção na escritura de transmissão da propriedade de fogos destinados à habitação terá o legislador pretendido, com plena justificação, desencorajar a construção clandestina - A. Neto, Inquilinato, 5ª ed., p. 375.
Tal DL 445/74 foi revogado pelo DL 148/81, de 04/07, o qual, no seu art. 13º passou a aí contemplar a proibição dos contratos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos destinados a habitação sem prova da licença de habitação ou de construção, assim rezando o mesmo: "Não podem ser celebrados contratos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos destinados a habitação sem que se faça perante o notário prova suficiente da existência da correspondente licença de construção ou de habitação, quando exigível, da qual se fará sempre menção na escritura."
Tendo-se aproveitado o ensejo da publicação de tal diploma, para mantendo a preocupação do combate à construção clandestina, se desbloquear a transmissão da propriedade dos fogos destinados à habitação sempre que se mostre legalizada a respectiva construção, através da prova, em alternativa, da licença de construção ou da licença de habitação no momento da transmissão - preâmbulo do ora aludido DL 445/74.
Assim, embora o […] DL 281/99 tivesse tido a preocupação fundamental, segundo assinalado no seu preâmbulo, de superar os efeitos nefastos do diferendo interpretativo que o exigido licenciamento vinha causando, procurando, dentro dos limites razoáveis da segurança do comércio jurídico, desbloquear a transmissão dos prédios urbanos, dúvidas não restarão que se manteve a preocupação, com a manutenção da exigência da prova do licenciamento, nas condições aí melhor previstas, de obviar à construção clandestina, com todos os efeitos perniciosos que a mesma, a todos os níveis - desde, nomeadamente, a segurança até ao ordenamento territorial, passando por razões estéticas também - claramente pode provocar.
E, naturalmente, que a proibição em causa se dirige, em primeira linha, às transmissões dos prédios urbanos, as quais, na grande generalidade dos casos são alvo de escritura pública. […] Não podendo tal proibição deixar de abranger as escrituras de justificação relativas ao trato sucessivo e previstas no nº 1 do art. 116º do CRP - cfr. epíteto do mencionado art. 4º do DL 281/89, em inteira consonância com o deste mesmo preceito legal.
Assim, desde 1951 existe a preocupação de tentar evitar construção clandestina, através da exigência da demonstração da existência de uma licença de utilização. E desde 1974 deixaram de poder ser celebradas escrituras de transmissão de prédios urbanos para habitação sem prova da existência desta licença ou, mais genericamente, de licenciamento devido.
Ora, se esta exigência legal não se estendesse às escrituras de justificação notarial (a todas), ela não teria eficácia – e daí a existência da norma do art. 4 do Dec. Lei 281/99.

Como diz o acórdão da RC de 16.3.2004:

“De contrário, fácil seria desvirtuar o […] empenhamento da lei em obviar à construção clandestina.
Pois, tendo o justificante logrado obter a prova do seu arrogado direito de propriedade sobre o prédio urbano não licenciado, poderia fazer a sua primeira inscrição no registo e a da constituição do encargo que aquele onera, in casu, a hipoteca. Não cumprido o contrato de mútuo, por tal meio garantido, viria o credor intentar a correspondente execução. Sendo o [prédio] urbano aí vendido judicialmente ou até adjudicado ao exequente, por exemplo. Para ele, ou para terceiro, se transmitindo o prédio, sem necessidade de qualquer escritura pública e da exibição da prova do licenciamento devido. E assim sucessivamente, sendo fértil a imaginação humana para contornar a proibição legal. Mas, não pode ser, a lei não pode querer ter distinguido situações em tudo idênticas nos seus resultados. Sendo, assim, in casu, exigível a licença de utilização - ou de construção, se caso disso for - como na sentença recorrida se refere, para todos os casos de justificação notarial previstos no citado art. 116º”.
Assim, não se pode aceitar que, nestas situações, os justificantes, através deste mecanismo previsto no artigo 116º, pudessem registar e habitar num prédio sem que tivessem feito a prova da sua habitabilidade, à revelia das regras do direito do urbanismo e do ordenamento do território- até porque tal admissibilidade os colocaria numa situação privilegiada em relação aos outros proprietários que tivessem cumprido as referidas exigências administrativas.
Repare-se que, nos presentes autos, os Recorrentes alegaram que adquiriram o prédio (rústico) por doação verbal (não cumprindo as formalidades legais).
Não se preocuparam em inscrever, desde logo, no registo esse prédio rústico.
E, além disso, iniciaram (e concluíram) a construção da casa de habitação sem curar de saber se poderiam obter, oportunamente, a respectiva licença de utilização.
Permitir, assim, que estas “irregularidades” pudessem ser sanadas pela celebração da escritura de justificação notarial, não foi certamente o propósito do legislador, e levaria, em última análise, a que ninguém cumprisse a exigência de licenciamento, pois que tal falta poderia facilmente ser suprida através da escritura de justificação… (9).
Cumpre, aliás, referir que, quando o art. 4º se refere a que tal exigência é aplicável às escrituras de justificação na parte que lhe for aplicável, “… não tem o sentido de ressalvar, dentro dos três tipos de escritura de justificação, um ou dois deles…” – v. o ac. da RC de 2.3.2011 (10).
Por outro lado, importa também atender a que, como decorre do exposto, qualquer uma das situações de justificação previstas no art. 116º do CRP não titulam nunca qualquer transmissão da propriedade, uma vez que ela consiste, essencialmente, em declarações do justificante que, pode ou não, invocar uma anterior transmissão.
Esta posição que aqui se assume é também aquela que é defendida pelos Serviços do Registo Predial quer nos presentes autos, quer em outras situações equivalentes sobre as quais já anteriormente se haviam pronunciado (11) - por ex. numa deliberação do Conselho Técnico da Direcção Geral dos Registos e Notariado tomada no proc. CN 27/2000 DSJ-CT, homologada por despacho do director-geral de 23/05/2002, publicada no Boletim dos Registos e do Notariado n.º 6/2002 (que pode ser vista em http://www.irn.mj.pt/), onde se refere o seguinte:
“No citado diploma legal inexiste norma definidora do seu âmbito. Pelo que será, a nosso ver, algo temerário afirmar-se que a lei dispõe exclusivamente sobre a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas por escritura pública. Tanto mais que, a ser exactamente esse o âmbito (exclusivo) do diploma, a norma do art. 4º, ora em discussão, não faria qualquer sentido, porquanto, como bem salienta o consulente, nas três hipóteses de justificação relativa ao trato sucessivo previstas no art. 116º do CRP a justificação não titula qualquer transmissão (ainda que de transmissão se tratasse, ela já teria ocorrido, pelo que agora apenas haveria que «justificá-la», ou seja, «invocá-la» fundadamente). Como é consabido, a justificação (notarial, judicial, e, actualmente, para-judicial) visa a obtenção de um documento comprovativo do direito (justificado) para efeitos de registo. No nosso sistema registral, o registo assume uma função confirmativa ou consolidativa do direito real (ou equiparado). Nesta perspectiva, o legislador é soberano no estabelecimento dos requisitos de admissibilidade e de legitimidade para o acesso dos factos a registo através da justificação. A nosso ver, com a citada norma (art. 4º do D.L. nº 281/99) o legislador – por motivações que ao caso não importa aprofundar, mas que se prendem basicamente com a defesa do consumidor – quis condicionar a justificação (notarial ou para-judicial) de direitos sobre prédios urbanos à comprovação da existência da correspondente licença de utilização, criando assim um novo requisito de admissibilidade. É este o sentido que descortinamos na norma em discussão.”

Dos 7 votos desse conselho, apenas um votou contra, dizendo:
“Aderindo à argumentação expendida pelo consulente, deliberaria no seguinte sentido:

1. Estão excluídas da exigência da apresentação da prova da existência do alvará de licença de utilização as escrituras de justificação notarial de prédios urbanos, que sejam alicerçadas com base em usucapião, uma vez que se está perante uma situação de aquisição originária e, por isso, incompatível com qualquer ideia de transmissão.
2. Só nas escrituras de justificação para reatamento do trato sucessivo, em que se mostre necessário proceder à reconstituição de títulos intermédios que envolvam a transmissão, inter vivos, de prédios urbanos, para fazer a necessária aglutinação com as inscrições constantes do registo predial, é que será necessário fazer a prova a que alude a conclusão n.º 1 ou, eventualmente, a prova da sua dispensabilidade, nos termos consentidos por lei.”
No mesmo sentido da deliberação, vai o estudo de Neto Ferreirinha (12) onde se refere que: “parece, assim, ter sido intenção do legislador exigir que nas escrituras de justificação que tenham por objecto prédios urbanos se mencione a autorização (ou o alvará) da licença de utilização ou então que os prédios foram construídos ou inscritos na matriz antes da entrada em vigor em vigor do RGEU […]” (13).
Deve concluir-se, assim, que é só o art. 1º, nº 1 do Dec. Lei 281/99 que fala em transmissões. O art. 4º do Dec. Lei fala em justificações e não distingue entre os diversos tipos de escrituras de justificação.
Ou seja, a lei primeiro diz que nas escrituras de transmissão tem que se fazer menção à licença; e depois estende tal exigência às escrituras de justificação, genericamente, sem fazer qualquer distinção, pelo que se tem que concluir que se aplica a todas.
Daí que não se pode deixar de concordar com o que ficou dito na sentença que aqui constitui o objecto do presente Recurso:
“Afigura-se-nos correcto e ajustado o entendimento de que a exigência estabelecida no mencionado artigo 4º se aplica a todas as modalidades de justificação de direitos, previstas no artigo 116º do Código do Registo Predial, e, portanto, aplica-se não só aos casos de reatamento de trato sucessivo como também os de estabelecimento de trato (aquisição originária), como é o caso em apreço. O aludido preceito não distingue consoante se trate de reatamento do trato sucessivo ou do seu estabelecimento.”
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De referir, finalmente, que os preceitos fiscais invocados pelos Recorrentes também não trazem qualquer argumento que tenha alguma pertinência para o presente caso (contendem apenas com o apuramento do valor tributável do prédio usucapido).
Nesta conformidade, julga-se que, ponderados os argumentos de cada uma das posições, é esta última que deve prevalecer.
Uma última nota para referir que o facto de noutras situações ter sido admitida a efectivação do registo (na Conservatória aqui em causa, ou noutra Conservatória), nenhuma influência pode ter para o presente caso, já que, tal como sucede na Jurisprudência, não existe aqui qualquer sistema de precedentes (como por exemplo existe no sistema anglo-saxónico).
Assim, aquela alegação não pode “… valer como uma espécie de “fonte de direito” ou de critério normativo para casos futuros, ou, sequer, como indicio de acerto de qualificação como que formado por maioria…”.
Aliás, tal como sucede na Jurisprudência, também, em sede de Registos, existe um mecanismo de uniformização das decisões o qual “… obtém-se, normalmente, a partir de orientações interpretativas ou de despachos superiores, destinados a serem aplicados a todos os casos do mesmo tipo…” (14).
Não existe, assim, “qualquer violação de um dos mais elementares princípios da justiça, que é o da segurança jurídica”.
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Pelo exposto, julga-se o Recurso totalmente improcedente.
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Sumário:

“A exigência de prova da licença de utilização, feita no art. 1º, nº 1 do Dec-Lei n.º 281/99, de 26/07, é aplicável a todos os tipos de escrituras de justificação notarial, previstas no art. 116º, nº 1 do CRP.”
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IV- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta totalmente improcedente.
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Custas pelos Recorrentes (artigo 527.º, nº 1 do CPC);
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Guimarães, 18 de Janeiro de 2018

(Dr. Pedro Alexandre Damião e Cunha)
(Dra. Maria João Marques Pinto de Matos)
(Dr. José Alberto Moreira Dias)

1. Como se refere no Parecer Técnico e/ou jurídico do IRN (confirmado por despacho- fls. 58): “sendo inequívoco que a casa de habitação que compõe o prédio urbano registando já estava implantada no solo à data da outorga da escritura de justificação, parece-nos liquido e incontroverso que estamos perante um único direito de propriedade e perante uma única coisa, devendo por essa razão, a usucapião ser- como foi, aliás- invocada relativamente a este direito de propriedade, com o objecto existente à data da invocação, pese embora a titularidade sobre o bem retroagir ao tempo do inicio da posse e a data da invocação da usucapião terem ocorrido modificações no objecto. Aliás, como bem salienta a Senhora Conservadora recorrida, se a justificação tivesse por objecto um prédio rústico, não havia qualquer necessidade de a Senhora Notária ter consignado na escritura o seu entendimento de que não era exigível a licença de utilização do prédio, no seguimento da doutrina jurisprudencial contida no ac. da RG de 23.4.2003. Para além de nada adiantar relativamente à composição do dito prédio rústico, afirmando-se, inclusive desconhecer o artigo em que o mesmo estaria inscrito na matriz predial rústica. Dúvidas não restam que o objecto da justificação notarial aqui em causa é um prédio urbano…”.
2. É esse também o sentido do Parecer dos Serviços do Registo Predial (Parecer Técnico e/ou jurídico do IRN) que se mostra junto aos autos a fls. 59 e seguintes: “Ora, sendo inequívoco que a casa de habitação que compõe o prédio urbano registando já estava implantada no solo à data da outorga da escritura de justificação, parece-nos líquido e incontroverso que estamos perante um único direito de propriedade e perante uma única coisa, devendo, por essa razão, a usucapião ser – como foi, aliás – invocada relativamente a este direito de propriedade, com o objecto existente à data da invocação, pese embora a titularidade sobre o bem retroagir ao tempo do início da posse e entre a data do início da posse e a data da invocação da usucapião terem ocorrido modificações no objecto”.
3. (relator: Leonel Serôdio), não publicado (mas a que tivemos acesso).
4. (relator: Pedro Martins), in dgsi.pt onde se concluiu que: “A exigência de prova da licença de utilização, feita no art. 1 nº1 do Dec.-Lei n.º 281/99, de 26/07, é aplicável também às escrituras de justificação notarial, previstas no art. 116 nº1 do CRP.”; no mesmo sentido, v. o ac. da RC de 16.3.2004 (relator: Serra Baptista), in dgsi.pt que tem o seguinte sumário: “1. A escritura de justificação notarial pode servir par suprir a falta do título necessário para a primeira inscrição no registo predial. 2. É, porém, exigível a licença de utilização (ou de construção) para todos os casos de justificação notarial previstos no art. 116º do CRP. 3. Devendo o conservador recusar o registo definitivo da primeira inscrição se não constar da escritura de justificação notarial a existência da licença de utilização (ou de construção se for caso disso) para o prédio dela objecto”.
5. Moutinho Guerreiro, in “Notas sobre Justificações” (estudo integrado no livro “Temas do Registo e do Notariado”), págs. 47 e 48, disponível na internet.
6. Neto Ferreirinha, in “A justificação notarial para fins do registo predial”, disponível na Internet (trabalho apresentado no Congresso de direitos Reais que decorreu na Faculdade de Direito de Coimbra no âmbito da comemorações dos 35 Anos do Código Civil), págs. 2 e 3. No mesmo sentido, Moutinho Guerreiro, in “Notas sobre Justificações” (estudo integrado no livro “Temas do Registo e do Notariado”), págs. 48 e 49 e Isabel Pereira Mendes, in “CRP Anotado”, p. 275 e ss..
7. Por exemplo, no art. 117º-A do CRP estabelece-se o seguinte: “ (Restrições à admissibilidade da justificação)- 1 - A justificação de direitos que, nos termos da lei fiscal, devam constar da matriz só é admissível em relação aos direitos nela inscritos ou relativamente aos quais esteja pedida, à data da instauração do processo, a sua inscrição na matriz.(…)”.
8. Isabel Pereira Mendes, in “CRP Anotado”, p. 275 e ss e “Estudos sobre o Registo Predial”, p. 109. Segundo Neto Ferreirinha, in “A justificação notarial para fins do registo predial”, pág. 1: “O adquirente que não disponha de documento para prova do seu direito pode obter a primeira inscrição no registo por meio de acção de justificação judicial ou, tratando-se de domínio privado a favor do Estado, de justificação administrativa regulada em legislação especial. Pode ainda, para esse efeito, lançar mão da escritura de justificação notarial ou obter decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto no Código do Registo Predial.”.
9. Como refere Isabel Pereira Mendes, in “A primeira inscrição no registo predial português” (trabalho integrado no livro “Estudos sobre registo Predial”), pág. 111 “Os “paliativos” para remediar a falta de título para os actos do registo, tais como as escrituras de justificação notarial… têm dado origem a autênticas “perversões do sistema” (e mais à frente, pág. 112) “Quantas vezes as justificações são utilizadas para realizar verdadeiros loteamentos clandestinos? (exemplificando como tal vem sendo efectuado) ”.
10. (relator: Pedro Martins), in dgsi.pt.
11. V. ainda, no mesmo sentido, os pareceres do Conselho Técnico do processo n.º R.P. 39/2010 SJC-CT onde se conclui o seguinte: “VI – Acresce que, invocada a usucapião, porque a aquisição do direito de propriedade se reporta ao momento do início da posse, quando aquela respeite a um lote de terreno para construção ou à edificação nele implantada, devem constar do título as menções sobre loteamentos urbanos exigidas pela lei em vigor no momento em que a posse se iniciou e, portanto, a usucapião se verificou. Do mesmo modo, quando o título comprovativo da justificação disser respeito a um prédio urbano, funciona como mais um dos requisitos de admissibilidade do mesmo, a comprovação da existência da correspondente licença de utilização”; e 39/2011 onde se conclui que: ”III. A exigência estabelecida no art. 4º do DL 281/99 de 26/7, aplica-se a todas as modalidades de justificação previstas no art. 116º do CRP, porquanto o preceito legal não distingue consoante se trate de reatamento do trato sucessivo ou do seu estabelecimento”. V. também- com interesse para a satisfação futura dos interesses dos Recorrentes- a deliberação do P.º n.º R.P. 119/2010 SJC-CT - Averbamento à descrição (construção). Edifício a averbar já implantado no solo quando foi outorgada a escritura de justificação notarial em que foi invocada a usucapião do direito de propriedade. Benfeitoria. Acessão: “Comprovando-se, em sede de qualificação do pedido de averbamento à descrição, que o edifício a averbar já estava implantado no solo quando foi outorgada a escritura de justificação notarial em que foi invocada a usucapião do direito de propriedade, é legítimo questionar a natureza do implante, ou seja, se estamos perante uma benfeitoria ou uma acessão, devendo ser recusado o averbamento de construção, nos termos do disposto no art. 69º, nº 2, do C.R.P., se tal questão não estiver esclarecida no processo registal”- disponíveis no site do Instituto dos registos e do notariado irn.mj.pt.
12. Neto Ferreirinha, in “A justificação notarial para fins do registo predial”, pág. 6.
13. No mesmo sentido, v. Isabel Ferreira Quelhas Geraldes/ Olga Maria Barreto Gomes, in “Justificação Relativa ao Trato Sucessivo - Escritura de justificação / processo de justificação registal”, págs. 56 a 58. Em termos mais dubitativos, Moutinho Guerreiro, na obra citada, pág. 51 refere o seguinte: “cumpre ainda referir que nunca será através da justificação – por escritura ou através do processo – que se pode obter um título que viole qualquer comando legal, como é o caso típico das prescrições administrativas relativas ao loteamento urbano. Para evitar tais violações o notário e o conservador têm de estar atentos a estes condicionalismos, verificando se os diversos pressupostos legais inerentes às transmissões dos imóveis – e, é claro, referimo-nos aos correspondentes à lei vigente ao tempo em que se processou a aquisição – são ou não cumpridos. Um desses condicionalismos é, relativamente aos prédios urbanos, a licença de utilização, muito embora seja questionável essa exigência, mormente no caso de ser invocada a usucapião…”.
14. V. Parecer Técnico e/ou jurídico do IRN, pág. 5 (62 dos autos).