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FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
EXTRAVIO DE CHEQUE
TIPICIDADE
Sumário
Pratica o crime de falsificação de documento, ainda que em autoria mediata e na forma de falsificação intelectual, o emitente de um cheque que, após a sua entrega ao respectivo beneficiário, comunica ao banco sacado que tal cheque havia sido extraviado, o que sabia não ser verdadeiro, levando o banco a recusar o seu pagamento e exarando no seu verso como fundamento da recusa "devolvido por ser cheque extraviado" e com essa sua conduta logrou causar um prejuízo àquele beneficiário do cheque e obter para si um benefício ilegítimo.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
No processo comum n. 75/92, 3 Secção, do Tribunal da Comarca de Mafra, sob acusação do Ministério Público foi A pronunciado como autor de um crime de falsificação qualificada de documento, previsto e punível pelo artigo 228 n. 1 alínea b) e n. 2 do Código Penal. Mas o Colectivo do Círculo, entendendo que a conduta acusada não preenche qualquer ilícito criminal, absolveu-o.
Do acórdão absolutório interpôs recurso a Digna Delegada do Procurador da República naquela comarca, com esta motivação conclusiva:
"I - O arguido, após preencher, assinar e entregar ao ofendido o cheque dos autos, comunicou ao banco sacado o falso extravio de tal cheque, com o intuito de obstar ao seu pagamento.
II - O arguido sabia que, na sequência de tal falsa declaração de extravio, os serviços bancários recusariam proceder ao pagamento do cheque e aporiam no seu verso a menção de "devolvido por ser cheque extraviado".
III - Tal menção é falsa por não corresponder à realidade e é juridicamente relevante, pois foi a causa do não pagamento do cheque.
IV - A aposição, pelos serviços bancários, de menção de "cheque extraviado", no verso do mesmo, torna tal documento falsificado, pois o seu conteúdo intelectual não corresponde à realidade, existindo desconformidade entre o documento e a declaração que se destina a exarar.
V - Com tal actuação o arguido logrou obter um benefício ilegítimo, consubstanciado no não pagamento do cheque, tendo igualmente prejudicado o ofendido, assim o despojando do montante do cheque que lhe entregara para pagamento e que lhe era devido.
VI - Não fora a falsa declaração de extravio do cheque e o banco teria pago o montante nele titulado, pois a conta bancária do arguido tinha provisão.
VII - O arguido foi autor mediato de falsificação do cheque pois induziu em erro os serviços bancários, assim os utilizando para fazer constar no cheque uma falsa menção de extravio e assim obstar ao seu pagamento.
VIII - O autor executou pois o facto por intermédio de outrem, como refere o artigo 26 do Código Penal.
IX - Nestes termos, provando-se a prática, pelo arguido como autor mediato, de um crime de falsificação de documento previsto e punido pelo artigo 228 n. 1 alínea b) e n. 2 do Código Penal, deveria o mesmo ter sido condenado pelo Tribunal Colectivo".
Com o provimento do recurso deverá, assim, revogar-se o acórdão impugnado e condenar-se A como autor desse crime.
Não houve resposta.
Os autos subiram depois a este Supremo Tribunal; e aqui se realizou, após sequência dos legais trâmites, a audiência de discussão e julgamento.
O Colectivo a quo declarou provados estes factos, estruturantes da acusação:
- Com data de 22 de Setembro de 1990 A preencheu, assinou e entregou a António Augusto Leite o cheque n. 3501114008 sobre a sua conta no Banco Totta & Açores, dependência da Malveira, no valor de trezentos e trinta e cinco mil escudos.
- Comunicou porém àquela dependência bancária, por via telefónica, em 21 desse mês, que o aludido cheque se havia extraviado,
- facto que ele, Martins, bem sabia não ser verdadeiro.
- Apenas efectuou tal comunicação para obviar ao respectivo pagamento.
- Assim, apresentado o cheque a pagamento em 27 de Setembro de 1990, veio ele a ser devolvido nessa mesma data, com fundamento em extravio.
- A declaração da devolução com esse fundamento foi aposta no cheque pelos competentes serviços bancários.
- Dando ao banco sacado a falsa informação do extravio do cheque que emitira e entregara ao ofendido, o A actuou livre e conscientemente, com o intuito de que o pagamento desse título fosse recusado por aquele motivo, sabendo que assim conseguiria - como conseguiu - tal recusa.
- Tinha o A conhecimento de que a sua conduta era proibida por lei.
Além destes factos somente ficou provado que o réu já pagou a quantia constante do referido cheque.
Quem, com intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado, ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, fizer constar falsamente de documento autêntico ou com igual força, testamento cerrado, letra de câmbio, documento comercial transmissível por endosso ou qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 244, facto juridicamente relevante, será punido com prisão de um a quatro anos e multa até noventa dias. É o que se preceitua, além do mais, no artigo 228 do Código Penal.
No caso em exame o réu emitiu sobre o seu depósito no Banco Totta & Açores um cheque de trezentos e trinta e cinco mil escudos (incorporado a fls. 5) e entregou-o a B. Pretendendo, todavia, obstar ao seu pagamento, comunicou ao banco sacado que o referido título tinha sofrido extravio - facto que sabia não ser verdadeiro. E assim alcançou a finalidade pretendida: pois tendo sido o cheque apresentado à cobrança, o banco recusou-a; e no dorso desse título exarou, com data de 27 de Setembro de 1990, a declaração do fundamento da recusa: "devolvido por ser cheque extraviado".
Em questão está um título de crédito à ordem ("transmissível por endosso"), definível como "documento" segundo o conceito do artigo 229, n. 1, do Código Penal e não compreendido no artigo 244 do mesmo diploma. A declaração falsa (ou declaração de um facto falso, obstativo do pagamento) foi dolosamente induzida pelo réu: pois o sacado não a emitiria sem a comunicação do extravio.
Na conduta daquele está plasmada, necessariamente, a intenção de causar prejuízo ao beneficiário do cheque - já que foi seu objectivo impedir que ele recebesse o respectivo montante; e também, concomitantemente, a intenção de alcançar para si um benefício (a permanência desse montante no seu património), benefício esse ilegítimo por violador do direito de crédito do tomador do título.
O facto que, por sua indução, se fez constar do documento está desconforme com a realidade, pois não houve extravio mas sim entrega para cobrança. E é causal da recusa - portanto juridicamente relevante.
Verifica-se, pois, a existência de uma falsificação intelectual, cometida pelo réu em autoria mediata - indeferindo para o efeito, dada a tipicidade do artigo 228, que a declaração falsa seja referente a um facto que não entra na normal finalidade do documento (mas que dele passou a fazer parte, por inserção obrigatória, nos termos do artigo 40, ns. 2 e 3, da Lei Uniforme.
Como autor mediato de um crime de falsificação qualificada de documento, prevenido pelo artigo 228, ns. 1 alínea b) e 2 do Código Penal, está o réu sujeito a uma pena de um a quatro anos de prisão adicionada de multa, a fixar dentro dos limites de dez a noventa dias, sob taxa variável entre duzentos e dez mil escudos.
A concretização deste sancionamento (segundo as regras do artigo 72) será efectuada em função da culpa, com atendimento das circunstâncias estranhas à tipicidade - considerando-se nomeadamente os factores graduativos estabelecidos no segundo parágrafo do mesmo artigo - e tendo-se em conta as exigências de prevenção.
Ora a culpabilidade não é sobressaliente; mas o montante do cheque em questão, já relativamente elevado, confere à ilicitude uma graduação ligeiramente supramediana.
Nenhuma condenação vem averbada no certificado do registo criminal (junto a fls. 30), daí se depreendendo a situação de primodelinquência do réu. E a seu favor milita a circunstância (muito relevante) do integral ressarcimento do ofendido.
Neste contexto, entendemos dever aplicar-se-lhe, por adequada, uma pena de um ano de prisão e, em complemento, vinte e sete dias de multa à taxa de mil e duzentos escudos (perfazendo, pois, o quantitativo de trinta e dois mil e quatrocentos escudos), alternada em dezoito dias de privação de liberdade.
Sobre este sancionamento incidirão, porém, as disposições graciosas do artigo 14, n. 1 alíneas b) e c), da Lei n. 23/91, de 4 de Julho - ficando assim perdoada a pena de prisão e também metade do valor da multa.
Em razão do exposto concede-se provimento ao recurso.
Nesta conformidade se revoga o acórdão recorrido e se condena A, como autor mediato do referido crime de falsificação qualificada de documento, numa pena de um ano de prisão - que se declara totalmente perdoada, ao abrigo do disposto no artigo 14, n. 1 alínea b), da mencionada Lei 23/91 - e em vinte e sete dias de multa à taxa de mil e duzentos escudos ou, em alternativa desta, dezoito dias de prisão. Também se declara o perdão de metade do valor da multa, por injunção do preceituado na alínea c) do n. 1 do referido artigo 14.
A cargo do réu fica o pagamento dos honorários de defesa fixados na instância - dez mil escudos.
O recurso não é tributado.
Lisboa, 25 de Março de 1993
Guerra Pires,
Lopes de Melo,
Coelho Ventura,
Sousa Guedes.
Decisão impugnada:
Acórdão de 92.03.11 da 3 Secção do Tribunal Judicial de Mafra.