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VEÍCULO AUTOMÓVEL
PERDA A FAVOR DO ESTADO
EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
EFEITOS DA REINCIDÊNCIA
AMNISTIA
FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
FALSIFICAÇÃO DE MATRÍCULA DE VEÍCULO
FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO ESSENCIAL AO VEÍCULO
FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO AUTÊNTICO
AUTORIDADE
DOCUMENTO PARTICULAR
DOCUMENTO AUTÊNTICO
CHAPA DE MATRÍCULA
Sumário
I - As chapas de matrícula são idóneas para certificar os factos delas constantes, designadamente para individualizar e identificar os veículos a que pertencem. II - As chapas de matrícula não podem ser consideradas documentos autênticos (não reúnem os requisitos do artigo 363 do Código Civil). São, antes, documentos particulares, que têm que condizer com o que consta no livrete do veículo, estes sim, documento autêntico, emitido por uma autoridade pública nos limites da sua competência. III - Não pode equiparar-se a falsificação do livrete do veículo, exarado por uma autoridade pública, a falsificação de uma chapa de matrícula, que é um sinal identificativo, que qualquer pessoa pode comprar e não constituí uma extensão do livrete, com as mesmas garantias de autenticidade. IV - Não pode haver perda do veículo automóvel a favor do Estado, quando o crime estiver amnistiado. V - Todavia, por força dos artigos 42, n. 4 b) e n. 3,1 c), do Código da Estrada, a apreensão do veículo deve manter-se até que seja feita prova nos autos de que a situação da mesma está regularizada e seja instituído o respectivo livrete.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I - No Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, mediante acusação do Ministério Público, respondeu perante o Tribunal Colectivo, em processo comum, o arguido A, devidamente identificado nos autos, o qual, na procedência da acusação, foi condenado, como autor material de um crime de falsificação previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 228, ns. 1, alínea a) e 2 e 229, ns. 1 e 3 do Código Penal (de que são todos os artigos abaixo indicados sem menção do diploma a que pertencem), na pena de 18 meses de prisão e 30 dias de multa, à taxa de 500 escudos por dia, na alternativa de 20 dias de prisão, cuja execução foi declarada suspensa pelo período de 2 anos, e ainda na taxa de justiça e procuradoria.
Foi declarado perdido a favor do Estado o veículo falsificado, apreendido nos autos, e perdoado um ano de prisão e metade da multa da condenação, para a hipótese de vir a ser revogada a suspensão da execução da pena.
II - Recorreu desta decisão o arguido.
Na sua motivação concluiu, em síntese, o seguinte:
1 - As chapas de matrícula aplicadas a viatura automóvel não constituem documento autêntico ou documento com igual força, para o efeito do n. 2 do artigo 228, sendo certo que em direito penal não é permitido o recurso à analogia;
2 - Sendo o crime praticado pelo recorrente o previsto nos artigos 228, n. 1, alínea a) e 229, n. 3, está o mesmo amnistiado pela alínea k) do artigo 1 da Lei n. 23/91, de 4 de Julho e, consequentemente, extinto o respectivo procedimento criminal;
3 - Não se verificam os requisitos legais para se declarar perdido a favor do Estado o veículo apreendido, que deve ser restituído ao recorrente;
4 - Foram violados os artigos 313, n. 1, alínea a) do Código de Processo Penal, 63 do Código da Estrada, 1, alínea k) da Lei n. 23/91 e 228, n. 2, 107, n. 1 e 1, n. 3 do Código Penal.
Não houve resposta do Ministério Público.
III - É a seguinte a matéria de facto que - não estando ferida de qualquer vício - se considera fixada pelo Tribunal Colectivo:
- Em data indeterminada, mas que se sabe ter ocorrido nos meses de Novembro ou Dezembro de 1989, na cidade de Viseu, o arguido adquiriu a um filho de B, por 175000 escudos, a viatura "Alfa Romeo" descrita e examinada a folhas 23 dos autos;
- Tal viatura não tinha chapas de matrícula, já que o vendedor disse que tinha de as levar para a Suiça, país de origem daquele automóvel;
- A fim de poder circular com o "Alfa Romeo", o arguido foi a um sucateiro chamado "Casa das Sucatas de ....", propriedade de um seu familiar - C, e sediada em Lavandeira - Mangualde;
- Após ter arrancado a um "Morris Marina", que estava na sucata, as respectivas chapas de matrícula GT, o arguido colocou-as nos locais apropriados - à frente e na traseira - do "Alfa Romeo", o que fez na cidade de Viseu;
- Após essa operação, circulou durante vários meses com aquela viatura;
- Ao colocar no "Alfa Romeo" as chapas de matrícula GT, visou o arguido dar aparência enganosa de que o veículo era de nacionalidade portuguesa e tinha sido registado em Portugal;
- Deste modo, pôs em perigo a credibilidade merecida por tais documentos - chapas de matrícula - pelas pessoas em geral e pelas próprias autoridades;
- As chapas de matrícula são idóneas para certificar os factos delas constantes, designadamente, para individualizar e identificar os veículos a que pertencem;
- Ao agir do modo descrito, o arguido prejudicou o Estado Português;
- Em todo o processo referido, o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era legalmente punida;
- O arguido confessou os factos de forma espontânea e relevante e mostra-se arrependido; é casado, tendo cinco filhos entre as idades de 16 anos o mais velho e 16 meses o mais novo; é torneiro mecânico, auferindo 75000 escudos mensais líquidos, vive em casa arrendada; a sua mulher tem uma pequena fábrica de confecções que tem estado sem laborar, reabrindo há pouco tempo;
- O arguido, que é de modesta condição social, tinha na altura dificuldades económicas.
IV - O primeiro problema que se coloca é o de saber se o acórdão recorrido procedeu a uma correcta subsunção jurídico-penal dos factos, pois da sua solução está dependente a invocada amnistia da Lei n. 23/91.
A alínea a) do n. 1 do artigo 228 dispõe:
"Quem, com intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado, ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo ... fabricar documentos falsos, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outrem para elaborar um documento falso, será punido com prisão até 2 anos e multa até 60 dias".
Prescreve o n. 2:
"Se os factos referidos nas alíneas a) e c) do número anterior disserem respeito a documento autêntico ou com igual força ... a pena será de prisão de 1 a 4 anos e multa até 90 dias".
Quanto ao conceito de documento, vejamos o artigo 229:
"1 - Entende-se por documento a declaração compreendida num escrito, inteligível para a generalidade ou um certo círculo de pessoas que, permitindo reconhecer o seu emitente, é idónea a provar um facto jurídicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente.
2 - ...
3 - A documento é igualmente equiparável o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar um facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta."
Assim, não restam dúvidas de que a chapa de matrícula do veículo automóvel é um documento, como sinal nele posto para provar, através dos números e letras nela inscritos, que se encontra matriculado.
Mas será um documento autêntico?
Reza o n. 2 do artigo 363 do Código Civil:
"Autênticos são os documentos exarados com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo da actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares."
Ora, estabelece o artigo 41 do Código da Estrada que "todos os veículos automóveis ... estão sujeitos a matrícula, donde constem as características que os permitem identificar."
E o artigo 44, n. 2 do mesmo diploma dispõe que "as direcções de viação ... atribuirão ao veículo um número de matrícula, que será averbado no original e no talão do verbete do despacho", regulando depois o n. 5 do mencionado artigo o averbamento da matrícula no livrete (que é o certificado de matrícula - artigo 42), o n. 10 os requisitos da substituição e o n. 11 os do cancelamento da matrícula; além disso, o artigo 42, n. 4, alínea b) determina a apreensão do livrete quando as características do veículo a que respeitem não confiram inteiramente com as nele mencionadas.
Por outro lado, a inscrição do número de matrícula dos veículos automóveis ... será feita em chapa fixada de forma inamovível, ou pintada directamente no veículo, nas condições referidas no artigo 37, n. 1 do Regulamento do Código da Estrada.
V - Ora, é sabido que são as empresas importadoras ou vendedoras dos veículos automóveis quem procede à pintura das matrículas ou à aposição das respectivas chapas (condizentes com o número inscrito no livrete), que se compram em qualquer estabelecimento comercial do ramo e não em qualquer repartição estadual.
Qualquer proprietário de um automóvel, desde que obedeça aos cânones legais do artigo 37 do mencionado Regulamento, pode substituir as chapas ou a pintura dos números de matrícula, desde que estes continuem condizentes com os que constam do livrete.
Fácil é concluir que as chapas de matrícula não podem ser consideradas documentos autênticos. São antes, e tão-somente, documentos particulares, que têm de condizer com o que consta do livrete do veículo, este sim um documento autêntico, emitido por uma autoridade pública nos limites da sua competência.
Não pode equiparar-se a falsificação do livrete do veículo, exarado por uma autoridade pública, e, portanto, subsumível ao n. 2 do artigo 228, à falsificação de uma chapa de matrícula, que é um sinal identificador que qualquer pessoa pode comprar e não constitui, de forma alguma, uma extensão do livrete, com as mesmas garantias de autenticidade.
Enquanto que o livrete não pode ser alterado ou substituído por outro nas direcções de viação a não ser em casos muito contados e estritamente fixados na lei (ver artigo 42 do Código da Estrada), já as chapas de matrícula - repete-se -, por motivos de deterioração ou outros, podem livremente ser substituídas por outras, desde que os números inscritos condigam com os do livrete e as características das chapas obedeçam às normas do falado artigo 37 do Regulamento do Código da Estrada.
As chapas de matrícula são, sem dúvida, e para utilizar a linguagem do artigo 229, n. 3, sinais materiais feitos e postos no veículo automóvel para provar um facto jurídicamente relevante; mas não feitos e postos por qualquer autoridade provida de fé pública, nos limites da sua competência (artigo 363, n. 2 do Código Civil); logo, não são documentos autênticos.
VI - Sendo assim, o crime praticado pelo arguido A não é o previsto no artigo 228, ns. 1, alínea a) e 2, mas tão-somente o crime previsto no artigo 228, n. 1, alínea a) (referido ao artigo 229, ns. 1 e 3), o qual se encontra abrangido pela amnistia concedida pela lei n. 23/91, no seu artigo 1, alínea k).
Por consequência, nos termos do artigo 126, n. 4 (e uma vez que o arguido não é reincidente), deve declarar-se extinto o procedimento criminal contra o arguido.
VII - No que toca à perda do veículo a favor do Estado, é evidente que a mesma não poderá manter-se sendo o crime amnistiado.
Todavia, por força dos artigos 42, n. 4, alínea b) e 43, n. 1, alínea c) do Código da Estrada, a apreensão do veículo deve manter-se até que seja feita prova nos autos de que a situação do mesmo está regularizada e seja restituído o respectivo livrete.
VIII - Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão recorrido, declarando-se, nos termos sobreditos, extinto o procedimento criminal contra o arguido e revogado o perdimento do veículo a favor do Estado, o qual, todavia, só será restituído ao recorrente depois de este fazer prova de que a respectiva situação está regularizada.
Sem tributação.
Fixam-se em 15000 escudos os honorários ao Excelentíssimo Defensor nomeado em audiência.
Lisboa, 15 de Abril de 1993.
Sousa Guedes,
Alves Ribeiro,
Cardoso Bastos,
Sá Ferreira.
Decisão impugnada:
Acórdão de 92.06.12 do Tribunal Judicial de Viseu, 3 Juízo, 2 Secção.