FURTO
ROUBO
VIOLÊNCIA DEPOIS DA APROPRIAÇÃO
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
PRESSUPOSTOS
JOVEM DELINQUENTE
Sumário

I - O artigo 307 do Código Penal não tipifica na modalidade de roubo, pois os meios ofensivos aí previstos (por modo referencial ou indirecto) não se destinam a efectivar a subtração fraudulenta, mas sim a mantê-la ou a impedir que a justiça seja eficazmente accionada.
II - Cometerá pois (na primeira modalidade) o crime prevenido neste artigo quem, encontrado em flagrante delito de furto, se sirva de um, ou de algum desses meios com a finalidade de conservar ou restituír as coisas subtraídas; cometê-lo-á igualmente (na segunda modalidade) aquele que, em idênticas circunstâncias, intente eximir-se à acção da justiça, através do uso de tais meios.
III - A violência caracteristica do roubo tem de ser exercida para o fim da subtracção patrimonial, ou para garantir, depois desta, a impunidade do crime ou a detenção da coisa subtraída.
IV - Para que possa ser concedida a atenuação especial da pena de que fala o Decreto-Lei 401/82, há que verificar se há ou não vantagens para a reinserção social do jovem delinquente, vantagens essas que hão-de advir, não podendo ser presumidas.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Submetido a julgamento relativamente ao processo comum (colectivo) n. 37/92, 3 secção, do Tribunal da Comarca de Bragança, A foi condenado numa pena de dois anos e seis meses de prisão, como autor material de um crime de roubo previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 307, 296, 297 ns. 1 e 2 alínea c), 306 ns. 1 e 3 alínea b), 22, 23 e
74 n. 1 alínea b) do Código Penal; e como autor material de um crime de introdução em lugar vedado ao público, prevenido e sancionado pelo artigo 177, com referência ao n. 2 do artigo 176 do mesmo diploma, numa pena privativa de liberdade fixada em um mês e quinze dias.
Estas duas sanções foram juridicamente cumuladas, nos termos do disposto no artigo 78 do referido Código. E, em resultado dessa operação ficou o réu condenado numa pena unitária de dois anos, seis meses e quinze dias de prisão. Mas presumindo - em atenção à sua personalidade, à sua pouca idade e ao facto de ter reparado espontaneamente os danos ocorrentes - que a simples ameaça desta pena lhe baste para o reprovar e prevenir, o Colectivo do Círculo Judicial de Bragança suspendeu por três anos a respectiva execução.
A seu cargo ficou o pagamento de duas unidades de conta de "taxa de justiça" e custas acrescidas, com seis mil escudos de procuradoria e vinte e quatro mil escudos de honorários de defesa.
Inconformado, o réu veio até nós com o presente recurso. E da sua motivação extraiu as conclusões seguintes:
"1- A aplicação do artigo 307 do Código Penal pressupõe o emprego de violências ou ameaças após a subtracção de coisa móvel alheia.
2- Empregando o agente os meios referidos no artigo 307 quando surpreendido, para se eximir à acção da justiça, mas frustrando-se a subtracção da coisa alheia, não há tentativa de roubo, mas de furto, em concurso material com o crime contra a pessoa.
3- O regime especial dos jovens delinquentes, consignado no artigo 4 do Decreto-Lei n. 401/82, fundamenta-se na aplicação de um direito mais reeducador do que sancionador.
4- Não se verificando factos que façam concluir que um jovem de 19 anos, delinquente primário, tem já uma personalidade adversa à ressocialização, é seriamente de crer que a atenuação especial da pena funcionará como estímulo à reinserção social do jovem e ao seu afastamento de comportamentos desviantes.
5- O instituto de suspensão da execução da pena é ele próprio imbuído de um grande cunho ressocializador.
6- As razões que façam concluir pela suspensão da execução da pena de prisão levarão necessariamente a concluir pela atenuação da pena, prevista no regime especial para jovens delinquentes.
Decidindo como decidiu, violou o Tribunal Colectivo o artigo 307 do Código Penal e o artigo 4 do Decreto-Lei n. 401/82, de 23 de Setembro".
Em remate da motivação pede-se que, com o provimento do recurso, se condene o recorrente por, tentativa de furto, com especial atenuação da pena, por aplicação do regime especial para jovens delinquentes.
Respondendo, o Digno Delegado do Procurador da República na Comarca de Bragança assim alegou conclusivamente:
"a) O artigo 307 do Código Penal não pressupõe, como elemento essencial, a apropriação efectiva de coisa alheia. b) Se assim é quando o agente pretende conservar ou não restituir a coisa, c) já quando o agente se pretende eximir à acção da justiça tal não será necessário. d) Essencial, em qualquer dos casos, é apenas que seja encontrado em flagrante delito de furto; e) e flagrante delito existe quando se está a cometer o crime ou se acabou de cometer. f) Os momentos que definem o flagrante ajudam a compreender melhor as duas situações tipificadas pelo artigo 307 do Código Penal. g) É, pois, punível o cometimento desta infracção na forma tentada. h) Hoje a frustração não existe autonomamente, sendo tratada de tentativa. i) A decisão recorrida integrou, a meu ver, correctamente a situação fáctica no direito aplicável. j) O colectivo postergou expressamente a aplicação do regime especial dos jovens delinquentes. k) Correctamente, atentos os dados de facto. l) Ademais que é um poder-dever ou poder funcional próprio, que, se fundamentado como é o caso, não merece reparo. m) A suspensão da execução da pena dá mais garantias de ressocialização e de prevenção, no caso. n) A decisão também por aqui não violou o direito aplicável. o) Deve confirmar-se, negando-se, consequentemente provimento ao recurso".
Subiram depois os autos, após cumprimento do disposto no artigo 413, n. 2, do Código de Processo Penal.
Seguidamente correram os vistos e, por fim, realizou-se com o legal formalismo a audiência de julgamento.
Cumpre-nos agora decidir.
II
O Colectivo do Círculo Judicial de Bragança declarou provado que:
- No dia 14 de Dezembro de 1991, por volta da uma hora, o A dirigiu-se à casa de habitação de B, sita em Bragança, com o propósito de se apropriar de objectos e valores que encontrasse.
- Começando por entrar num anexo da referida residência, onde existia um quarto de banho, aqui foi surpreendido pelo B.
- Para se libertar dele e se pôr em fuga, o A agrediu-o a soco e a pontapé, atingindo-o nas pernas e causando-lhe as lesões descritas no auto de exame directo de fls. 13, as quais lhe causaram, directa e necessariamente, cinco dias de doença sem incapacidade para o trabalho.
- Não obstante, o A foi segurado pelo B - que o entregou à Polícia de Segurança Pública. E não se apropriou do que quer que fosse.
- Agiu o Trindade com intenção de se apropriar de coisas móveis que sabia serem alheias, só o não tendo conseguido por ter sido surpreendido e agarrado pelo dono delas.
- Agrediu este para se eximir à acção da justiça.
- Quando entrou no referido anexo estava ciente de que tudo fazia sem autorização e contra a vontade do dono.
- Aproveitou-se da noite para mais facilmente concretizar seus intentos.
- Era seu propósito apoderar-se de objectos e dinheiro, para gastar em seu proveito.
- Não negou ter praticado os factos de que vem acusado, limitando-se a dizer que os não recorda.
- Era servente de trolha, auferindo cerca de sessenta mil escudos mensais.
- Está integrado num agregado familiar de humilde condição sócio-económica.
- Já fora julgado por crime de furto, mas ficou absolvido. Desde então tinha mantido conduta normal.
- O Manuel Macieira é modesto funcionário camarário.
Conforme se vê do assento de nascimento junto a fls.
15, A nasceu a 26 de Dezembro de 1971.
O Tribunal a quo declarou não provados quaisquer outros factos - nomeadamente que o Trindade se encontrasse manifestamente excedido em bebidas alcoólicas na ocasião da ocorrência sub indicio.
III
Visam-se neste recurso as seguintes questões nucleares:
- Cometeu o réu, em forma de tentativa, um crime previsto no artigo 307 do Código Penal, concorrendo com a autoria de um crime de introdução em lugar vedado ao público? Ou com a sua acusada conduta constituiu-se, em concurso, autor desta última infracção, de uma tentativa de furto qualificado e de um crime de ofensas corporais voluntárias? Deverá ele beneficiar de atenuação especial da pena, nos termos do artigo 4 do Decreto-Lei n. 401/82 de 23 de Setembro? E assim especialmente atenuada, deverá a pena ser suspensa na sua execução?
Retomemos os factos essenciais:
Movido pelo intuito de se apropriar dos bens que encontrasse, o réu penetrou num anexo da habitação de B; mas quando este o encontrou ainda nada tinha subtraído. O Macieira pretendeu, então, capturá-lo para o entregar à Polícia. Mas o A, intentando libertar-se dele e conseguir a fuga, agrediu-o a soco e pontapé por forma a causar-lhe lesões necessariamente determinativas de doença sem incapacidade para o trabalho, com duração de cinco dias.
O Tribunal a quo, considerando a entrada furtiva como começo de execução do crime projectado, nele englobou a ofensa corporal contra o dono da casa - por destinada ao impedimento da captura para entrega à autoridade policial - conferindo-lhe, sob a forma de tentativa, a tipicidade complexa do artigo 307 do Código Penal. E em concurso ideal heterogéneo - dada a diversidade de bens jurídicos protegidos - considerou, ainda, cometido um crime de introdução em lugar vedado ao público.
Observe-se, desde logo, que o apontado artigo 307 não tipifica uma modalidade de roubo: pois os meios ofensivos aí previstos (por modo referencial ou indirecto) não se destinam a efectivar a subtracção fraudulenta, mas sim a mantê-la ou a impedir que a justiça seja eficazmente accionada. Assim, cometerá (sob a primeira vertente) o crime previsto neste artigo quem, encontrado em flagrante delito de furto, se sirva de um ou de alguns desses meios com a finalidade de conservar ou de não restituir as coisas subtraídas; e também o cometerá (sob a segunda vertente) aquele que em idêntica circunstância intente eximir-se - ou eximir os seus comparticipantes - à acção da justiça através do uso de tais meios.
No caso em apreço o agente tentava a comissão de um furto, tendo já praticado (segundo a regra do artigo 22, n. 2 alínea c) do Código Penal) um acto executivo desse crime - a entrada na casa onde se encontravam os bens que pretendia subtrair. Não chegou, todavia, a apossar-se de qualquer desses bens; e portanto está necessariamente excluída a primeira modalidade do ilícito em exame (ou seja, a que tem por objecto da violência a conservação ou não restituição das coisas subtraídas). - Mas porque o réu, apesar de nada ter furtado ofendeu corporalmente quem procurava agarrá-lo, para assim obstar a que este o conduzisse à Polícia, terá - sob espécie de tentativa - preenchido a tipicidade desse ilícito?
Tratando directamente a hipótese, Nélson Hungria (em "Comentários ao Código Penal Brasileiro", volume VII, página 61) coloca no emprego da violência o momento consumativo e por isso se pronuncia claramente pela negativa: "ou a violência é empregada, e tem-se a consumação, ou não é empregada, e o que se apresenta é o crime de furto. A violência característica do roubo tem de ser exercida para o fim da subtracção patrimonial ou para garantir, depois desta, a impunidade do crime ou a detenção da coisa subtraída.
Se o agente é surpreendido e perseguido quando, sem violência pessoal, estava a apoderar-se da coisa, frustrando-se a tirada, mas vem a empregar violência contra seus perseguidores, para assegurar a fuga, não há tentativa de roubo, mas de furto, em concurso material com o crime contra a pessoa".
Sequazes desta tese, Leal Henriques e Simas Santos (em anotação ao artigo 307 do nosso Código Penal) lucidamente referem que "a violência sucessiva à apropriação relevante para os fins deste artigo é exclusivamente a exercida após a efectiva subtracção.
Isso mesmo dispõe explicitamente este artigo quando condiciona a relevância dos meios empregues à circunstância de os mesmos se dirigirem à "conservação" ou à "não restituição" das coisas subtraídas". (Note-se que o tema do artigo 307 vem definido, em epígrafe, como "violência depois de apropriação - sugestiva da interpretação que estes autores lhe deram).
Neste posicionamento está, aliás, a generalidade da doutrina. (Com o recorrente podemos citar Carlos Codeço, em "O Furto no Código Penal e no Projecto", página 19). E a ele aderimos, por irrecusável, dados os termos em que o crime de roubo impróprio vem tipificado.
Com a sua descrita conduta cometeu, pois, o réu em autoria material, sob a forma de tentativa, um crime de furto qualificado previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 296, 297, ns. 1 e 2 alínea c),
22, ns. 1 e 2 alínea c), 23, n. 2 e 74, n. 1 do Código Penal; e em concurso real com esta infracção cometeu, também, um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punível pelo artigo 177, n. 1 (cujo procedimento não depende de queixa - referência ao n. 2 do artigo 176, circunstância noite); e, ainda, um crime de ofensas corporais voluntárias simples, prevenido pelo artigo 142 do mesmo diploma.
Para a concretização das penas há que atender, nos termos do artigo 72 do mencionado Código, à intensidade da culpa e ao grau da ilicitude, considerando-se todas as circunstâncias não integrantes da tipicidade que deponham a favor do agente ou contra ele; e ter-se-ão ainda em conta as exigências preventivas.
Ora a tentativa de furto qualificado é punível numa escala de um ano a seis anos e oito meses (adoptando-se para o limite mínimo a solução propugnada por Maia Gonçalves, que frequentemente vem sendo seguida pela jurisprudência - cfr. acórdão proferido por este Supremo Tribunal em 17 de Fevereiro de 1983, publicado no B.M.J. n. 324, página 440). E assim, sendo o réu delinquente primário, com cerca de vinte anos de idade
à data da comissão do crime, e tendo ressarcido os danos que causou, entendemos que à autoria desse crime deve corresponder a pena de dois anos de prisão. Para sancionamento do ilícito prevenido pelo artigo 177 do
Código Penal - ao qual corresponde, em abstracto, prisão de um a três meses - será em nosso critério adequada, atentas as apontadas circunstâncias, a sua fixação em um mês e dez dias. E relativamente às ofensas corporais, dentro dos limites tabelares das penas disjuntivamente previstas no artigo 142 (um mês a dois anos de prisão ou multa de dez a cento e oitenta dias) deverá optar-se pela sanção privativa de liberdade - dada a conjuntura da sua prática, potencializadora da ilicitude - e fixar-se em oito meses a medida dessa sanção.
Cumuladas juridicamente estas penas parcelares, segundo as regras do artigo 78 do Código Penal, achamos adequada a aplicação de uma pena unitária de dois anos e seis meses de prisão.
Quanto à pretendida atenuação especial ao abrigo do disposto no artigo 4 do Decreto-Lei n. 410/82, de 23 de Setembro, não lhe encontramos justificação: as necessárias vantagens que para a reinserção social do condenado haveriam de advir não podem ser presumidas - têm de demonstrar-se positivamente; e tal demonstração não se extrai do ocorrente condicionalismo. Tenha-se, ademais, presente que à data da comissão dos crimes já a idade do réu era de cerca de vinte anos - a perfazer decorridos doze dias.
Adequada será - reconhecendo, neste ponto, razão ao Tribunal a quo - a suspensão da execução da pena por período de três anos.
IV
Em razão do exposto concedemos parcial provimento ao recurso (no sentido de se entender que a actuação do recorrente não preenche a tipicidade do artigo 307 e que a pena unitária de prisão deve ser - ainda que ligeiramente - diminuída). E julgando o recorrente autor, em concurso real - consoante se deixou exposto -, de um crime de furto qualificado tentado, de um crime de ofensas corporais simples e de um crime de entrada em lugar vedado ao público, condenamo-lo nas penas parcelares de dois anos, oito meses e um mês e dez dias de prisão, respectivamente. Em cúmulo jurídico dessas penas, aplicamos-lhe a unitária de dois anos e seis meses de prisão - cuja execução fica suspensa por três anos.
Na parte não alterada por este acórdão deixa-se confirmada a decisão sob recurso.
O recorrente pagará "taxa de justiça", no montante de três unidades de conta, e correspondentes custas, com a procuradoria fixada em um quarto desse valor.
A seu cargo fica, também, o pagamento de honorários de defesa oficiosa, fixados em quinze mil escudos.
Lisboa, 15 de Abril de 1993
Guerra Pires,
Lopes de Melo,
Coelho Ventura,
Sousa Guedes.
Decisão impugnada:
Acórdão de 92.03.23 do Tribunal Judicial de Bragança.