ESTABELECIMENTO COMERCIAL
PENHOR MERCANTIL
ADMISSIBILIDADE
Sumário

I - A constituição de penhor sobre o direito ao trespasse e arrendamento ter-se-à de entender como a constituição do penhor sobre o próprio estabelecimento comercial.
II - O estabelecimento comercial pode ser objecto de penhor comercial.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. O arguido A, devidamente identificado nos autos, foi julgado no Tribunal da comarca de Évora, em processo de querela, e condenado pela prática de um crime previsto e punível pelos artigos 1, parágrafo 1 do Decreto-Lei n. 29833, de 17 de Agosto de 1939, e 296, 297, n. 1, alínea a) e 299 do Código Penal na pena de 20 meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa pelo período de dois anos.
Inconformado com esta decisão, o arguido recorreu para a Relação de Évora, mas esta confirmou o julgado.
De novo inconformado, recorreu ele para este Supremo Tribunal, alegando, em síntese e com interesse para a decisão, o seguinte:
- O arguido celebrou com o Banco Fonsecas & Burnay um contrato de penhor mercantil tendo por objecto, para além do mais, o direito ao trespasse e arrendamento do estabelecimento comercial de que era titular;
- Este contrato, celebrado nos termos do Decreto-Lei n. 29833, de 17 de Agosto de 1939, gozava da tutela penal do furto, em caso de descaminho do objecto penhorado;
- O arguido denunciou unilateralmente o contrato de arrendamento do imóvel em que se situava o estabelecimento comercial, sendo por essa conduta condenado;
- Tal contrato deve ser entendido como penhor do estabelecimento comercial e a legislação vigente não permite a constituição de penhor sobre o estabelecimento comercial, sendo, portanto, o contrato nulo, não podendo ser tomado como base de incriminação;
- Ainda que o contrato fosse válido, a norma incriminadora do Decreto-Lei n. 28333 não seria aplicável, porquanto este diploma ressalva da sua aplicação, e logo da garantia penal do furto, o penhor de coisas imateriais, e o estabelecimento é um bem imaterial;
- Assim, a conduta do recorrente não é subsumível ao tipo de crime por que foi condenado ou a qualquer outro, pelo que deve ser absolvido, em revogação do acórdão recorrido.
Contra-alegou o Excelentíssimo Procurador da República no sentido do improvimento do recurso.
Neste Supremo Tribunal, o Excelentíssimo Procurador - Geral Adjunto subscreveu a posição sustentada pelo Ministério Público na 2 instância.

2. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
É a seguinte a matéria de facto fixada pela Relação: a) Em 21 de Novembro de 1980, entre o arguido e o Banco Fonsecas & Burnay, E.P., com sede em Lisboa, representado por Francisco António Simões, foi celebrado o contrato de penhor mercantil cuja fotocópia constitui fls. 6 e 7, cujos precisos termos se dão aqui por reproduzidos, tendo sido constituido esse penhor pelo arguido, para além do mais, sobre o direito de trespasse e arrendamento do seu estabelecimento comercial (bar) situado em Évora, no prédio n. 9 - Alcárcova de Baixo; b) Foi fixado em 1200000 escudos o valor máximo para a responsabilidade a garantir; c) Em 21 de Março de 1984, o arguido denunciou unilateralmente o contrato de arrendamento do aludido estabelecimento sobre o qual recaiu o penhor mercantil a favor do Banco Fonsecas & Burnay, E.P.; d) Não obstante o arguido estar ciente de que o empenhado ficara em seu poder e que era considerado quanto ao direito pignoratício possuidor em nome alheio, não o podendo alienar, modificar, destruir ou desencaminhar sem autorização escrita do credor; e) Ao alienar o empenhado, o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, sem que tivesse obtido qualquer autorização escrita por parte do Banco, bem sabendo que não podia dispor do empenhado como dispôs; f) E não desconhecendo que, desta forma, causava ao Banco Fonsecas & Burnay, E. P. um prejuízo de montante não inferior a 1200000 escudos; g) Sabia perfeitamente o arguido que a sua conduta era criminalmente punida; h) Confessou parcialmente os factos, é de modesta condição económica e social e tem dois filhos menores a seu cargo, sustentando-se a si e a eles com o seu vencimento de empregado da indústria hoteleira; i) O Banco citado recebeu de terceiros a quantia de 2800 contos por conta da dívida do arguido, e nada mais quer dele; j) À data de 21 de Março de 1984, o dito estabelecimento encontrava-se inactivo e o arguido tinha recebido a noticia do senhorio de que este lhe poderia mover uma acção de despejo por falta do pagamento de rendas atrasadas e por encerramento do estabelecimento; l) É abastada a condição económica do ofendido.
3. O contrato de penhor mercantil celebrado entre o Banco Fonsecas & Burnay e o arguido perante o Notário de Évora, diz assim, na parte útil:
"Para garantir ao Banco o pontual pagamento de todas e quaisquer dívidas e responsabilidades que os primeiros outorgantes (apenas foi primeiro outorgante o arguido, e não também a sua mulher, como constava do instrumento original) ou qualquer deles tenha ou venha a ter perante o mesmo Banco, até ao montante de 1200000 escudos, de juros contados à taxa máxima legal e das despesas judiciais e extra judiciais de cobrança, os primeiros contraentes constituem a favor do Banco penhor mercantil sobre o direito ao trespasse e arrendamento do estabelecimento comercial de bar instalado no prédio urbano, em rés-do-chão, sito na cidade de Évora..., direito... ao qual é atribuído o valor de 1000000 escudos, e ainda sobre os bens constantes da linha anexa...
Os bens empenhados pertencem exclusivamente aos primeiros outorgantes e ficam em seu poder, nos termos do Decreto-Lei n. 29883, de 17 de Agosto de 1939, pelo que, em obediência ao disposto no parágrafo único do artigo 2 daquele diploma, seguidamente se transcrevem os parágrafos 1 e 2 do seu artigo 1:

Parágrafo 1 - Se o objecto empenhado ficar em poder do dono, este será considerado quanto ao direito pignoratício possuidor em nome alheio, e as penas do furto ser-lhe-ão impostas se alienar, modificar, destruir ou desencaminhar o objecto sem autorização escrita do credor e bem assim se o empenhar novamente sem que no novo contrato se mencione a existência do penhor ou penhores anteriores que, em qualquer caso, preferem por ordem de datas.

Parágrafo 2 - Tratando-se de objecto pertencente a uma pessoa colectiva, o disposto no parágrafo anterior aplicar-se-á àqueles a quem incumbe a sua administração".
Tem razão o recorrente quando afirma que "a constituição de penhor sobre o direito ao trespasse e arrendamento se terá de entender como a constituição de penhor sobre o próprio estabelecimento comercial".
Vai neste sentido a doutrina mais representativa por si citada e a jurisprudência deste Supremo Tribunal (v. Do Estabelecimento Comercial, Barbosa de Magalhães, 171 e seguintes; Vaz Serra, R.L.J., 102, 76 e acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Fevereiro de 1981,
Boletim do Ministério da Justiça n. 304-348).
Todavia, nem essa doutrina nem a jurisprudência apoiam o entendimento do recorrente no sentido de que a lei não permite o penhor do estabelecimento comercial, por, designadamente, se tratar de coisa imaterial, expressamente excluída da aplicação do Decreto-Lei n. 29883, no seu artigo 3.

São de entendimento contrário ao do recorrente Orlando de Carvalho, in Direito Civil (Direito das Coisas), 151 e seguintes e "Critério e Estrutura do Estabelecimento Comercial, I, O problema da empresa como objecto de negócios, notas 71 e 72; Fernando Olavo, in Direito Comercial, I, 263; a Revista dos Tribunais, 71, página 344; Barbosa de Magalhães, loc. cit., 171 e o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Janeiro de
1955, que admitiu o penhor do estabelecimento Industrial, in "Direito", ano 87, 338, com comentário de Galvão Teles.
De notar que também o legislador já teve ocasião de se pronunciar sobre a questão que nos preocupa.
No preâmbulo do Decreto-Lei n. 248/86, de 25 de Agosto, que criou o estabelecimento mercantil individual de responsabilidade limitada, e depois de analisar as alternativas doutrinárias possíveis, acabou por considerar aquele estabelecimento mercantil "um conjunto organizado de meios através dos quais o comerciante explora a sua empresa", conceito ao qual subjaz a ideia de que o estabelecimento não é uma coisa imaterial.
E tanto assim que o artigo 21, n. 1 do mesmo Decreto-Lei expressamente dispõe que sobre o aludido estabelecimento mercantil individual pode "constituir-se um usufruto ou um penhor, produzindo este os seus efeitos independentemente da entrega do estabelecimento ao credor", sendo este último período um claro aproveitamento do regime excepcional do artigo 1 do Decreto-Lei n. 29883, ao permitir que o objecto empenhado fique na posse do devedor.
Tudo aponta, portanto, no sentido de que o estabelecimento comercial pode ser objecto de penhor mercantil, sendo válido o contrato celebrado entre o arguido e o falado Banco.
4. Sendo assim, e tendo o arguido denunciado unilateralmente o contrato de arrendamento do aludido estabelecimento comercial sobre o qual recaiu o penhor mercantil, com essa conduta destruindo ou inutilizando, livre, voluntária e conscientemente, e sem autorização do credor pignoratício, o direito de arrendamento e de trespasse que dera em penhor, não pode duvidar-se de que praticou o crime por que foi condenado nas instâncias, acima referenciado.
Não vem impugnada, nem merece reparo, a condenação infligida pela apontada infracção criminal, sobre a qual - como bem nota o Excelentíssimo Magistrado recorrido - incidirão oportunamente, e se a pena houver de ser cumprida, os perdões das Leis ns. 16/86, de 11 de Junho e 23/91, de 4 de Julho.
Improcedem, pois, todas as conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do elevado nível destas.

5. Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido.
Pagará o recorrente 8000 escudos de imposto de justiça (artigo 6, n. 2 do Decreto-Lei n. 387-D/87) e 2000 escudos de procuradoria.
Lisboa, 6 de Maio de 1993.
Sousa Guedes,
Alves Ribeiro,
Cardoso Bastos.
Decisões impugnadas:
- Acórdão de 90.06.05 do 1 juízo, 2 secção do Tribunal Judicial de Évora;
- Acórdão de 92.06.02 do Tribunal da Relação de Évora.