FORNECIMENTO DE COMBUSTÍVEL
LEI DE DEFESA DO CONSUMIDOR
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
ÂMBITO
ALCANCE
Sumário

I – O contrato que tem por objecto o fornecimento de combustível é um contrato de compra e venda a que são aplicáveis as normas do DL nº 67/03, de 06.04 (na redacção anterior ao DL nº 84/08, de 21.05), bem como as normas da Lei nº 24/96, de 31.07 – Lei de Defesa do Consumidor – (na redacção introduzida pelo DL nº 67/03).
II – Mesmo classificando tal contrato como de prestação de serviço, continuam a ser-lhe aplicáveis as normas da Lei nº 24/96 (cfr. art. 2º deste diploma) e, atendendo a que é um contrato de fornecimento de um bem de consumo (combustível) sempre lhe serão também aplicáveis as normas do DL nº 67/03, por força do disposto no nº2 do art. 1º deste segundo diploma.
III – O art. 4º do DL nº 67/03 e o art. 12º da Lei nº 24/96 fazem recair sobre o fornecedor de bens ou de serviços uma responsabilidade objectiva pelos danos causados pelos defeitos dos referidos bens ou serviços.
IV – Essa responsabilidade objectiva restringe-se aos direitos à reparação e substituição da coisa, à redução do preço e à resolução do contrato; para a efectivação do direito à indemnização pelos demais danos (positivos) sofridos pelo consumidor (cfr. art. 12º, nº1 da Lei nº 24/96), já se exige a responsabilidade subjectiva, ainda que com culpa presumida, aplicando-se aqui o regime geral da responsabilidade contratual previsto no CC (arts. 483º, nº1, 798º e 799º) e impendendo sobre o consumidor o ónus de prova da desconformidade do bem (art. 342º, nº1, do CC).

Texto Integral

Proc. nº 452/08.0TJPRT.P1 – 3ª Secção (Apelação)
Rel. Deolinda Varão (385)
Adj. Des. Freitas Vieira
Adj. Des. Cruz Pereira


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B………. instaurou acção declarativa de condenação, com processo segundo o Regime Experimental instituído pelo DL 108/06, de 08.06, contra C………., LDA.
Pediu que seja a ré fosse condenada a:
A) Reparar o veículo automóvel que identifica, colocando o mesmo na situação anterior à ocorrência de alegada avaria causada por acção da ré;
B) Na impossibilidade de reparação do veículo, a pagar ao autor o montante de € 5.000,00, a título de danos patrimoniais;
C) Reembolsar o autor do montante de € 150,00, a título de despesas suportadas com coima, remoção/bloqueamento e aparcamento do referido veículo;
D) Pagar ao autor o montante de € 2.550,00, a título de aluguer de veículo de substituição, devido até à data de instauração da acção, acrescido de montante a liquidar, até ao trânsito em julgado da sentença.
Como fundamento, alegou, em síntese, que a ré cumpriu defeituosamente contrato que teve por objecto o abastecimento de combustível a um seu veículo, traduzido no facto de ter introduzido gasóleo no respectivo depósito, quando o veículo em questão está apenas apto a consumir gasolina; em consequência do referido incumprimento, o veículo do autor sofreu avaria mecânica, avaria essa que, por sua vez, causou ao autor os prejuízos que discrimina e quantifica.
A ré contestou, impugnando os factos alegados pelo autor e alegando factos tendentes a demonstrar que a avaria do veículo ocorreu por culpa do autor.
Percorrida a tramitação subsequente, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu a ré do pedido formulado pelo autor.

O autor recorreu, formulando as seguintes
Conclusões

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A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II.
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
O autor é dono do veículo de passageiros de marca Honda, modelo ………., com motor a gasolina e com a matrícula VL-..-.. . (1º pi)
A ré é uma sociedade por quotas que tem por objecto reparações gerais de veículos automóveis, recolhas, estação de serviço e venda de combustíveis. (1º contestação)
No âmbito da sua referida actividade, a ré explora um posto de abastecimento de combustíveis sito na Rua ………., …-…, ….-… Porto. (2º pi)
Para o referido posto de venda de combustíveis, a ré contratou dois empregados que trabalham por turnos, sob a sua direcção. (2º contestação)
Em data e hora não exactamente apuradas de Maio de 2007, o autor apareceu no referido posto de venda de combustíveis da ré, com um bidão de cinco litros na mão (antigo receptáculo de água), dirigiu-se ao funcionário (abastecedor) da ré, pedindo que lhe vendesse € 5,00 de gasóleo. (6º contestação)
Concretizada a solicitada venda, o autor saiu do referido posto de abastecimento, com o dito combustível dentro do referido bidão, ausentando-se para destino desconhecido pela ré. (7º contestação)
Um ou dois dias depois, o autor apareceu de novo no referido posto de abastecimento, com o veículo automóvel acima mencionado, que era transportado em cima de um reboque. (8º contestação)
Dirigindo-se ao funcionário abastecedor, disse-lhe: “O senhor meteu gasóleo no bidão e o meu carro avariou”. (9º contestação)
De imediato o funcionário da ré respondeu “meti o que o senhor mandou e pagou”. (10º contestação)
Durante a discussão, surgiu um outro funcionário da ré, que procurando resolver o problema, retirou o gasóleo do carro do autor, limpou o depósito e meteu-lhe gasolina. (11º contestação, parte)
Após esta operação, o autor saiu do posto de abastecimento da ré, conduzindo o carro que aparentava funcionar normalmente. (12º contestação)
No dia seguinte, por volta das 13.30 h, o autor apareceu novamente no posto de abastecimento da ré, conduzindo o referido automóvel que encostou à bomba de gasóleo. (13º contestação)
Saiu do carro, dirigiu-se ao abastecedor (Sr. D……….) que lhe tinha metido gasóleo no bidão, e começou a discutir com o mesmo. (14º e 15º contestação)
O outro funcionário abastecedor, que estava a sair do seu turno e desconhecendo o problema da discussão, verificando que a mesma já estava a “azedar”, com a intenção de acalmar os ânimos, voltou-se para o autor e perguntou o que queria. (16º e 17º contestação)
O autor respondeu “meta € 5,00 de gasóleo”. O que foi feito. (18º contestação)
O autor saiu com o carro do posto de abastecimento da ré. (19º contestação)
No dia seguinte, de manhã, o autor voltou com o carro num reboque. (20º contestação)
Descarregado o carro na oficina da ré, um mecânico da mesma retirou o gasóleo do depósito, limpou-o e colocou nele gasolina, saindo o carro a funcionar. (21º contestação)
No mesmo dia, ao meio da tarde, o autor voltou ao posto de abastecimento, trazendo novamente o referido veículo automóvel num reboque. (22º contestação)
Ao proceder à descarga do veículo, o mecânico da ré verificou que dentro do referido automóvel se encontrava a “polie” da cambota e as respectivas correias, peças que pertenciam ao mesmo veículo. (23º contestação)
Perante tal facto, disse ao autor:
“A troca de gasolina por gasóleo não provoca a retirada da “polie” e das correias; Para reparar a troca de combustíveis não era necessário tirar a “polie”; A avaria que o carro apresenta nada tem a ver com a troca de combustível”. (24º contestação)
O autor começou a discutir, insistindo que a avaria era derivada da troca de combustível. (25º contestação)
No sentido de acabar com a discussão, um gerente da ré deu ordens ao mecânico para colocar a “polie” no seu lugar. O que foi feito, nada sendo debitado ao autor. (26º contestação)
O autor levou o carro. Porém, dado o motor estar desalinhado, pois quem tirou a “polie” o danificou, o motor fazia um barulho anormal. (27º contestação)
No dia seguinte, o autor regressou com o referido automóvel à oficina da ré e exigiu a sua reparação. (28º contestação)
Tendo a ré recusado e solicitado ao autor que retirasse o carro da oficina. O que o autor recusou. (29º contestação)
Após discussão, a ré chamou a PSP que aconselhou o autor a retirar o carro e a reclamar no livro de reclamações. (30º contestação)
O autor retirou o carro da oficina e colocou-o sobre o passeio, à frente da oficina da ré. (31º contestação)
De seguida preencheu o livro de reclamações. (32º contestação)
Foi-se embora e deixou o carro em cima do passeio. (33º contestação)
Alguns dias depois, a PSP procedeu ao reboque do carro do autor. (34º contestação)
O veículo do autor avariou em momentos e circunstâncias não exactamente apuradas. (36º contestação)
O autor exerce a actividade de vendedor ambulante. (14º pi)
O autor utilizava no exercício da sua actividade o referido veículo. (14º pi)
Em virtude da avaria do seu referido veículo, o autor viu-se obrigado a recorrer ao aluguer de uma viatura, pagando € 25,00 por dia, todos os Sábados, Domingos e Segundas-feiras de cada mês, situação que se mantinha à data de instauração desta acção (19.02.08). (15º pi)
O autor recebeu uma notificação, respeitante a uma contra-ordenação, datada de 23.05.07, no valor de € 30,00. (16º pi)
Pela remoção/bloqueamento e aparcamento do seu veículo, o autor pagou o montante de € 120,00. (19º pi)

O Tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos:
- Que o autor tenha pagado o abastecimento e € 20,00 de gasolina; (3º pi)
- Que tenha sido colocado gasóleo no lugar de gasolina sem que o autor se tenha apercebido; (4º pi parte)
- Que o veículo do autor tenha avariado em consequência de ter sido abastecido com gasóleo; (6º pi)
- Que a contra-ordenação referida no artº 16º da pi, se tenha fiado a dever à falta de cuidado no estacionamento por parte da ré e que o veículo tenha ficado a cargo desta; (17º e 18º pi)
- Que o funcionário da ré referido no artº 11º da contestação tenha metido € 20,00 de gasolina. (artº 11º contestação)
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III.
A questão a decidir – delimitada pelas conclusões da alegação do apelante (artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do CPC) – é a seguinte:
- Se, face à factualidade provada, deve a acção ser julgada procedente.

A presente acção destina-se a efectivar a responsabilidade contratual por cumprimento defeituoso, emergente de dois contratos celebrados entre a autora e a ré.
Na sentença recorrida, classificaram-se os referidos contratos como contratos de prestação de serviço.
Entendemos que o contrato que tem por objecto o fornecimento de combustível é um contrato de compra e venda, atenta a definição que é dada pelo artº 874º do CC[1].
Sendo os contratos celebrados entre o autor e a ré contratos de compra e venda, são-lhes aplicáveis as normas do DL 67/03 de 06.04 (na redacção anterior ao DL 84/08 de 21.05), bem como as normas da Lei 24/96 de 31.07 – Lei de Defesa do Consumidor – (na redacção introduzida pelo DL 67/03).
De qualquer forma, mesmo classificando tais contratos como de prestação de serviço, continuam a ser-lhes aplicáveis as normas da Lei 24/96 (cfr. artº 2º deste Diploma) e, atendendo a que são contratos de fornecimento de um bem de consumo (combustível) sempre lhes serão também aplicáveis as normas do DL 67/03, por força do disposto no nº 2 do artº 1º deste segundo Diploma.
Diz o artº 2º, n 1 do DL 67/03 que o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda.
Segundo o nº 2 daquele preceito, presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:
a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.
Diz, por seu turno, o nº 3 do preceito citado que não se considera existir falta de conformidade, na acepção do presente artigo, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor.
Finalmente, diz-se no nº 4 do mesmo preceito que a falta de conformidade resultante de à instalação do bem de consumo é equiparada a uma falta de conformidade do bem, quando a instalação fizer parte do contrato de compra e venda e tiver sido efectuada pelo vendedor, ou sob sua responsabilidade, ou quando o produto, que se prevê que seja instalado pelo consumidor e a má instalação se dever a incorrecções existentes nas instruções de montagem.
O artº 4º do DL 67/03 e o artº 12º da Lei 24/96 fazem recair sobre o fornecedor de bens ou de serviços uma responsabilidade objectiva pelos danos causados pelos defeitos dos referido bens o serviços.
Tem-se entendido que essa responsabilidade objectiva se restringe aos direitos à reparação e substituição da coisa, à redução o preço e à resolução do contrato; para a efectivação do direito à indemnização pelos demais danos (positivos) sofridos pelo consumidor (cfr. artº 12º, nº 1 da Lei 24/96), já se exige a responsabilidade subjectiva, ainda que com culpa presumida, aplicando-se aqui o regime geral da responsabilidade contratual previsto no CC (artºs 483º, nº 1, 798º e 799º)[2].
De qualquer forma, a prova da desconformidade do bem impende sobre o consumidor (artº 342º, n 1 do CC); cabe também ao consumidor provar os factos que integram alguma das presunções previstas nas diversas alíneas do nº 2 do artº 2º do DL 67/03: verificado algum daqueles factos, presume-se a desconformidade, cabendo ao fornecedor ilidir tal presunção (artº 344º, nº 1 do CC), designadamente provando alguma das circunstâncias previstas no nº 3 do artº 2º do DL 67/03.

No que se reporta ao primeiro contrato celebrado entre o autor e a ré, está provado que o autor se apresentou no posto de venda de combustíveis da ré, com um bidão de cinco litros, se dirigiu ao funcionário abastecedor e lhe pediu que lhe vendesse € 5,00 de gasóleo.
Mas se provou que, uma vez concretizada a venda, o autor saiu do posto de abastecimento, com combustível que lhe foi fornecido dentro do bidão, ausentando-se para destino desconhecido pela ré.
Temos assim que a ré vendeu ao autor o combustível que aquele lhe pediu para vender (gasóleo), colocando-lho dentro de um bidão que o próprio autor levou consigo.
Aqueles factos não têm enquadramento em nenhuma das alíneas do nº 2 do artº 2º do DL 67/03.
Designadamente, para que se pudessem enquadrar na al. b), cabia ao autor provar que informou a ré do destino que pretendia dar ao gasóleo.
Não ocorre assim qualquer presunção de desconformidade do combustível vendido e o autor não legou quaisquer outros factos dos quais se pudesse concluir por aquela desconformidade.
Por outro lado, ainda que o autor tivesse informado a ré de que o gasóleo se destinava a ser usado num veículo movido a gasolina, sempre se verificariam as circunstâncias mencionadas nos nºs 3 e 4 do artº 2º: o autor tinha conhecimento de que o gasóleo não podia ser usado naquele tipo de veículo pelo que, a existir falta de conformidade, não resultou esta da natureza do combustível em si, mas do uso que lhe foi dado pelo próprio autor.

No que se refere ao segundo contrato, está provado que o autor apareceu novamente no posto de abastecimento da ré, conduzindo o seu veiculo automóvel, encostou este à bomba de gasóleo, saiu do mesmo e começou a discutir com o funcionário abastecedor que lhe tinha metido gasóleo no bidão uns dias antes.
Mais se provou que o outro funcionário abastecedor, que estava a sair do seu turno e desconhecia o problema da discussão, se voltou para o autor e perguntou o que queria, tendo-lhe o autor respondido “meta € 5,00 de gasóleo” – o que foi feito.
A solução não é diferente da que acima enunciámos para o primeiro contrato: apesar de aqui a ré ter colocado o gasóleo directamente no depósito do veículo do autor, não provou o autor que tivesse informado o funcionário da ré de que o veículo funcionava a gasolina.
Além de que também se verifica a situação prevista no nº 3 do artº 2º: foi o autor quem pediu que o seu veículo fosse abastecido com gasóleo, bem sabendo que ele funcionava a gasolina.

Do exposto se conclui que, não tendo o autor provado que lhe tivesse sido fornecido um bem ou sido prestado um serviço defeituoso, não se pode prevalecer de nenhum dos direitos conferidos pelos citados artºs 4º do DL 67/03 e 12º da Lei 24/96, que não foram violados pela sentença recorrida.
Da mesma forma que não se vislumbra na conduta da ré qualquer violação das normas de protecção ao consumidor final de produtos de petróleo, consagradas nos artºs 5º e 6º do DL 31/06 de 15.02, invocado pelo autor nas suas conclusões.
Pela mesma ordem de razões, também não foram violados os direitos do autor, enquanto consumidor, consagrados no artº 60º da CRP – também invocado nas conclusões de recurso.

Improcedem assim as conclusões do autor, restando confirmar a sentença recorrida.
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IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência:
- Confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
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Porto, 29 de Outubro de 2009
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Evaristo José Freitas Vieira
José da Cruz Pereira

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[1] Neste sentido, ver o Ac. desta Relação de 16.11.00, www.dgsi.pt, citado pelo autor nas suas alegações.
[2] Cfr. Calvão da Silva, Compra e Venda De Coisas Defeituosas, 2ª ed., págs. 123 a 125.