PARTILHA
CONTRATO-PROMESSA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
CONVENÇÃO ANTENUPCIAL
REGIME DE BENS DO CASAMENTO
PRINCÍPIO DA IMUTABILIDADE
ÂMBITO
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
Sumário

I - O contrato-promessa, conquanto diferente do contrato prometido, tende para o mesmo resultado final. Não equivale ao contrato prometido, mas garante-o muitas vezes.
II - O preceito do artigo 830 n. 1 do Código Civil é aplicável aos contratos-promessa em geral.
III - O princípio da imutabilidade das convenções ante-nupciais e do regime de bens resultante da lei abrange, não só as cláusulas constantes das convenções ou as normas do regime legalmente fixado, relativas à administração ou disposição de bens, mas também a situação concreta dos bens dos cônjuges que interessa às relações entre eles.
IV - Daí não poderem os cônjuges realizar entre si contratos de compra e venda.
V - Assim, é nulo o contrato-promessa de partilha dos bens do casal enquanto os cônjuges se não acharem divorciados, mesmo que na altura da celebração do contrato se encontre já pendente acção de divórcio e que este venha a ser decretado imediatamente a seguir por mútuo consentimento.
VI - Não invalida um contrato-promessa de partilha a circunstância de ele não conter o reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
A, divorciada, empregada doméstica, instaurou a presente acção de processo ordinário, que correu termos no 4 Juízo Cível da Comarca de Lisboa, contra seu ex-marido B, estofador, pedindo que, na sua procedência, se condenasse ele a pagar-lhe, a título de indemnização entre eles acordada, a quantia de 10000000 escudos, acrescida de juros a partir da citação.
Funda o pedido no incumprimento por parte do réu de um contrato-promessa de partilhas entre ambos celebrado em 16 de Fevereiro de 1987, por virtude do qual a escritura se deveria fazer no prazo máximo de 60 dias a contar do trânsito em julgado da sentença que decretou o seu divórcio, o qual se verificou em 5 de Março de 1987.
O réu contestou e reconveio pela forma inserta a folhas 19 e seguintes.
Depois de referir que para a outorga da escritura se tornava necessária a interpelação de uma parte pela outra - o que se não verificou, de onde o não poder haver incumprimento do contrato-promessa -, argui a nulidade do contrato-promessa, por celebrado na circunstância do casamento dos interessados e violar o princípio da imutabilidade das convenções ante- -nupciais.
Ao reconvir, pretende que se declare a nulidade do contrato-promessa ou a sua anulabilidade por usurário.
A autora replicou, concluindo como na petição e pela improcedência da reconvenção "nos termos do artigo 193-2, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil" com a alegação de ser imposta.
Concedido às partes o apoio judiciário na "modalidade da dispensa do pagamento de preparos e custas", foi proferido o despacho saneador, em que, após se ter julgado válido o contrato-promessa, deste modo improcedendo nesta parte o pedido reconvencional, se ordenou o prosseguimento dos autos com vista ao apuramento dos factos conducentes à anulabilidade ou não do mesmo contrato-promessa ao abrigo do preceituado no artigo 282 do Código Civil, por usura, conforme o também pedido em reconvenção.
Na mesma oportunidade se procedeu à elaboração da especificação e questionário, de que a autora reclamou com parcial êxito.
O réu já havia recorrido do despacho saneador, recorreu igualmente da sentença que, na procedência da acção, o condenou no pedido, ao mesmo tempo que absolveu a demandante do pedido reconvencional de que não conhecera até então.
O Tribunal da Relação de Lisboa julgou, todavia, improcedente um e outro recurso.
É do acórdão da Relação que o réu traz agora o presente recurso de revista.
Podem enunciar-se assim as duas conclusões:
1) Uma vez fixado o regime de bens de um casamento, não é possível alterá-lo fora dos casos previstos na lei - artigo 1714 do Código Civil;
2) O contrato-promessa de partilha celebrado entre os cônjuges no decurso da acção de divórcio por mútuo consentimento que tenham pendente é nulo, por violar o princípio da imutabilidade do seu regime de bens;
3) Do incumprimento do contrato-promessa de partilha a que se referem os autos não podem emergir, pois, quaisquer sanções para o promitente faltoso;
4) Decorrido o prazo previsto para a outorga do contrato definitivo, o promitente faltoso recai em mora;
5) Havendo mora do réu, não há que falar em incumprimento definitivo da sua parte, enquanto se não proceder à sua interpretação para cumprir;
6) Titulando um contrato-promessa de partilha um verdadeiro contrato-promessa de compra e venda, são-lhe aplicáveis as normas e requisitos de que depende a validade deste e, portanto, a formalidade do reconhecimento presencial da assinatura dos promitentes - artigo 410 - 3 do Código Civil;
7) Como o contrato-promessa de partilha celebrado entre as partes não contém o reconhecimento presencial das suas assinaturas, é ele nulo nos termos do artigo 220 do Código Civil;
8) Deve, por isso, revogar-se o acórdão recorrido, declarar-se a nulidade do contrato-promessa celebrado entre os dois interessados e julgar-se improcedente a acção.
A parte contrária defende a manutenção do julgado.
Obtidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
1 - São os seguintes os factos dados como assentes: a) Por sentença de 16 de Fevereiro de 1987, transitada em julgado em 5 de Março de 1987, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento da autora A e do réu B - documento de folha 7 e 8; b) Com a data de 16 de Fevereiro de 1987 - a da segunda conferência em que foi proferida a sentença de divórcio - a autora e o réu celebraram um contrato-promessa de partilhas - o documentado a folha 5 e 6, que ambos assinaram -, por via do qual, após referirem ter "chegado a acordo quanto aos bens que constituem o património do casal, bem como à forma como irão proceder à partilha dos mesmos", estipularam, além do mais:
A) que à A "serão adjudicados os seguintes bens: a) a fracção autónoma designada pela letra R, correspondente do 4 andar, letra C, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em Lisboa, na Rua Maria Broune, Lote 1, descrito na Sexta Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n. 11790 do Decreto-Lei B-37; e b) todos os bens móveis que se encontram naquela que foi a casa de morada de família, identificada na antecedente alínea a); e
B) que ao B, "será adjudicada a posição no contrato-promessa de compra e venda, outorgado em 5 de Janeiro de 1976, que é respeitante à promessa de compra de um lote de terreno, designado pelo lote 441, a destacar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira, sob o n. 15376, a folha 163 do Livro B-39".
C) Por virtude do contrato-promessa da partilha vindo de mencionar, ficou a caber à A: a) a responsabilidade pelo "pagamento do capital e juros ainda em dívida, do empréstimo concedido pelo Crédito Predial Português, garantido por hipoteca sobre a fracção identificada" na antecedente alínea a), empréstimo esse com o n. 47015; e b) a obrigação de pagar ao outro outorgante a quantia de 40000 escudos, a título de tornas, em quatro prestações mensais de 10000 escudos, vencendo-se a primeira 30 dias após a outorga da escritura de partilhas.
D) A autora pagou ao réu os 40000 escudos de tornas logo a seguir à sentença de divórcio;
E) A escritura de partilhas devia ter sido celebrada no prazo de 60 dias após o trânsito da sentença de divórcio, ou seja, até 5 de Maio de 1987;
F) "O R. prontificou-se a assumir o encargo da preparação e marcação da escritura pública das partilhas para a data exarada no contrato-promessa (5 de Maio de 1987)" - resposta ao quesito 1;
G) A casa de habitação, que é de renda limitada, está hipotecada ao Crédito Predial Português;
H) O réu recusou-se a fazer a escritura de partilhas;
I) A autora tem vindo a pagar o empréstimo relativo à casa desde 16 de Julho de 1987;
J) O contrato-promessa foi elaborado e dactilografado pelo réu e foi assinado na presença dos advogados da autora e do réu; e
L) Os outorgantes do contrato-promessa de partilhas estabeleceram uma cláusula penal de dez milhões de escudos para o caso de incumprimento do mesmo.
2 - Os factos acabados de descrever permitem-nos concluir que a autora e o réu, no decurso da acção de divórcio que tinham pendente com vista à dissolução do seu casamento por mútuo consentimento, subscreveram um "contrato-promessa de partilhas", por via do qual se comprometeram a outorgar", no prazo máximo de 60 dias, a contar da data do trânsito em julgado da sentença" que decretasse o divórcio, uma escritura da partilha dos seus bens pela forma que logo definiram: a) uma casa e todos os bens móveis que, nela se encontravam para a interessada esposa, embora com a obrigação de pagar o capital e os juros ainda em dívida referentes ao empréstimo contraído com a aquisição do imóvel; e b) a posição adquirida através de um contrato-promessa de compra e venda, celebrado em 5 de Janeiro de 1976, tendo por objecto um lote de terreno em Vila Franca de Xira, e a quantia de 40000 escudos, esta a título de tornas a pagar pela mesma, para o outorgante marido.
3 - A primeira questão que se põe é a de saber se um tal "contrato - promessa de partilhas" dos bens do casal é ou não nulo.
O Meritíssimo Senhor Juiz da primeira instância houve este contrato por inteiramente válido; logo no despacho saneador, com o fundamento de o mesmo não violar "o princípio da imutabilidade do regime de bens, já que, para além das razões determinantes da sua imperatividade só terem razão de ser durante a constância do casamento, o direito atribuído à contraparte traduz-se numa pretensão pelo que é desnecessário acautelar eventual prejuízo de um dos cônjuges face ao possível ascendente que o outro possa exercer", e, na sentença final, por não provados os factos constitutivos do direito invocado pelo demandado com base na "usura".
Daí a improcedência do pedido reconvencional.
De igual modo procedeu a Relação com o fundamento de, muito embora a lei não permita a partilha dos bens entre cônjuges, "enquanto no estado de casados... por ofensivo do princípio da imutabilidade das convenções nupciais", lhes não vedada, todavia, ela a que se obrigassem "às respectivas prestações, a partir do momento em que se encontrassem divorciados... consoante o convencionado".
Quid iuris?
4 - O "contrato-promessa" ou "contrato-promessa de contratar" ou de celebrar certo contrato é, como todos sabem, um contrato diferente do contrato que se promete fazer. Quer, no entanto, o contrato-promessa se entenda como "preliminar" ou "preparativo" do contrato que se quer celebrar "Noções Fundamentais de Direito Civil, I/476, de A. Varela e Vaz Serra in RLJ n. 102 página 191, quer como um "verdadeiro contrato" - como realmente é, com vida e objectivo bem definidos -, quer já como uma primeira fase do contrato a celebrar - e esta nos parece ser a ideia de Frederico de Castro
(Da promessa de contrato, no Anuário de Derecho Civil, 1950, página 1172 e seguintes), ao considerar o contrato-promessa já como uma primeira fase do próprio contrato prometido -, uma coisa é certa: é a de que o contrato-promessa, enquanto diferente do contrato prometido, tende para um mesmo resultado final.
O contrato-promessa ou contrato-promessa de contratar é um contrato, cujo objectivo é uma prestação de facto, de natureza obrigacional. Não equivale ao contrato prometido. Mas garante-o muitas vezes, não só pelas sanções estabelecidas para o contraente faltoso (artigo 442-2 do Código Civil), como também por em alguns casos se poder obter a execução do mesmo nos termos do disposto no artigo 830-1 do Código Civil, cujo preceito é aplicável aos contratos-promessa em geral (Vasco Xavier in Revista de Direito e Estudos Sociais, XXVII, página 21 e A. Varela in Das Obrigações em Geral, 2 edição, I/248, além de outros).
5 - Assente que o preceituado no artigo 830-1 do Código Civil se aplica a todos os contratos-promessa em geral e, portanto, também ao "contrato-promessa de partilhas" a que se referem os autos, há que ver se o mesmo é ou não um contrato nulo, ou, o que equivale ao mesmo, ver se as partes o poderiam ou não celebrar no decurso da acção de divórcio que tinham pendente, isto é, estando ainda no estado de casados um com o outro.
O tribunal da Relação, depois de referir que a partilha dos bens não era legalmente possível na pendência do casamento, por ofensiva do "princípio da imutabilidade das convenções nupciais", julgou - como dissemos já - válido o contrato-promessa de partilha. E isto por - se bem compreendemos o seu pensamento - as prestações a que as partes se obrigaram só terem de ser satisfeitas "no prazo de 60 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença" a proferir, ou seja, após o decretamento do divórcio.
Não cremos, porém, que se tenha decidido bem.
Expliquemos porquê.
6 - Referiu-se acima que o contrato-promessa, conquanto diferente do contrato prometido, tende para um mesmo resultado final. O "contrato-promessa de partilhas", apesar de não envolver ainda qualquer partilha de bens, tende, pois, para ela. E por tal forma relevante no caso concreto, que logo as partes estabeleceram o que era de atribuir a cada um, com tornas e tudo.
Sendo, no entanto, assim, de concluir parece ser também que, concluindo a Relação pela impossibilidade legal de os cônjuges procederem à partilha dos seus bens, enquanto no estado de casados, outra não pode ser a solução quanto à outorga de um "contrato-promessa de partilhas" susceptível de levar, embora por via indirecta, ao mesmo resultado. É o que resulta da consagração do "princípio da equiparação" que se estabelece no artigo 410 do Código Civil, segundo o qual são de aplicar ao contrato-promessa, como regra - e dizemos, como regra, dado o aí estipulado quanto à forma e ao que, por sua razão de ser, se lhe não deva considerar extensivo -, "as disposições legais relativas ao contrato prometido".
Equivale isto a dizer que, não sendo válida a partilha dos bens constitutivos do património de um casal enquanto os seus membros se acharem unidos pelo casamento, por violadora do princípio da "imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultante da lei" a que se refere o artigo 1714 do Código Civil, por violadora do mesmo princípio se tem de haver a celebração de um contrato-promessa feito com o mesmo objectivo enquanto os cônjuges se não encontrarem divorciados, visto aos requisitos e efeitos do contrato-promessa (A. Varela in Das Obrigações em
Geral, 2 edição, Volume I/248 e 249) serem de aplicar, sob o aspecto em exame, as mesmas disposições legais.
7 - Um outro argumento se pode, todavia, invocar no mesmo sentido.
É o seguinte:
Durante os trabalhos preparatórios do actual Código Civil, discutiu-se, conforme nos dão conta P. de Lima e A. Varela (Código Civil Anotado, 4/359), qual o caminho a seguir no domínio das relações patrimoniais entre os cônjuges: se o perfilhado no Código Civil de Seabra, que consagrada o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais (artigo 1105 do Código de 1867) importado do Código de Napoleão e que se propagou à generalidade das legislações latinas, se o inverso vindo do Código alemão, por este se mostrar conforme ao princípio básico da liberdade negocial dos cônjuges.
Seguiu-se, como ninguém ignora, o que vinha sendo seguido pela legislação portuguesa: o da imutabilidade do regime de bens, quer este seja estipulado por convenção antenupcial, quer supletivamente, quer por forma imperativa (artigo 1714, 1717 e 1720 do Código Civil). Prevaleceram, "no juízo global sobre a matéria", as razões justificativas do princípio da inalterabilidade, quais sejam: a) a de afastar o risco de um dos cônjuges se aproveitar do ascendente psicológico eventualmente adquirido sobre o outro para obter uma alteração do regime que lhe fosse favorável; b) e de evitar que as convenções antenupciais, tantas vezes correspondentes e verdadeiros pactos de família, se pudessem alterar, após a celebração do casamento, por simples decisão dos cônjuges; e c) a da necessidade de salvaguardar os interesses de terceiros, cujas expectativas na manutenção do regime convencionado ou fixado por lei também poderiam vir a ser defraudadas, caso o mesmo se pudesse alterar livremente (Pires de Lima e A. Varela in Código Civil Anotado, IV/360 e A. Varela in Direito da Família, edição de 1982, página 357).
Dentro dos limites da lei - diz-se no artigo 1698 do Código Civil - os esposos podem fixar livremente, em convenção antenupcial, o regime de bens do casamento que lhes aprouver, mas, uma vez fixado ele - pouco ou nada importando, se por convenção antenupcial, supletivamente ou de forma imperativa -, impõe-se-lhes o mesmo nos termos do artigo 1714 vindo de citar.
8 - "O princípio da imutabilidade abrange, não só as cláusulas constantes da convenção ou as normas do regime legalmente fixado, relativas à administração ou disposição de bens - ensina A. Varela no seu Direito da
Família, obra cit. -, mas também .... a situação concreta dos bens dos cônjuges que interessa às relações entre estes. Daí - continua o insigne mestre - o não poderem os cônjuges "realizar entre si contratos de compra e venda, ....".
Ora, o contrato-promessa de que nos vimos ocupando, enquanto destinado à outorga de uma partilha já definida em todos os seus pormenores, equivale, se não a um verdadeiro contrato-promessa de compra e venda, visto ambos os cônjuges se apresentarem como titulares de um património comum, pelo menos a um contrato com a potencialidade para com base nele se vir a alterar a situação concreta dos bens do casal, na medida em que, ao especificarem o que era de adjudicar a um e a outro, com a indicação do valor das tornas e pagamento do passivo, se não escusaram os seus titulares de negociar entre si os bens que a ambos pertenciam, o que, a concretizar-se a partilha nos termos estabelecidos ou a ser objecto de execução específica, não deixaria de conduzir à violação do princípio da imutabilidade do regime de bens do casamento fixado entre os dois interessados. E é isso tanto mais de salientar quanto é certo que, no caso "sub júdice", mesmo sem a outorga do contrato prometido, já a autora, ao dar pagamento às tornas acordadas e vir pagando o passivo relativo à casa desde Julho de 1987, satisfez parte da sua prestação.
9 - Ignora-se o que levou os cônjuges a outorgar o contrato-promessa que subscreveram. Mas sendo por demais evidente que, uma vez decretado o divórcio, lhes assistiria sempre o direito de requerer inventário para partilha dos bens (artigo 1404-1 do Código de Processo Civil), através de cujo processo lhes seria fácil obter a divisão do seu património como lhes aprouvesse, custa um pouco a admitir que, ao fazê-lo, o hajam subscrito ambos os cônjuges em plena liberdade e, portanto, sem que um deles se propusesse fazer valer, nas circunstâncias, o seu ascendente sobre o outro.
Quer sim, quer não, uma coisa nos parece, todavia, certa: é a de que, sendo esta uma das razões que levaram à adopção do princípio da inalterabilidade do regime de bens a que se refere o citado artigo 1714 do
Código Civil, os cônjuges, enquanto no estado de casados, se acham impedidos de partilhar os seus bens e, por isso mesmo, de subscrever qualquer contrato-promessa de partilhas a isso conducente.
Fazê-lo, mesmo que um tal procedimento seja levado a cabo a contento de ambos, é subscrever um contrato-promessa que, por contender com o princípio da imutabilidade do seu regime de bens, se não pode deixar de haver como nulo.
10 - É um facto que um "contrato-promessa de partilhas" feito entre os cônjuges não altera o seu regime de bens, como diz a recorrida. E exacto é também que, quando celebrado para só ser cumprido após a dissolução do casamento, de nada valerá ele se o casamento perdurar.
De constar é, porém, que, não podendo os cônjuges proceder à partilha dos seus bens enquanto casados, se compreenderá mal que lhes seja lícito fazê-la por uma forma estabelecida na vigência do casamento por a isso se terem obrigado na mesma altura.
Compreende-se e admite-se que os cônjuges, uma vez divorciados, procedam à partilha dos seus bens conforme o acordado na constância do casamento, mas não já que, ao fazê-lo, os partilhem com a ideia de a isso estarem juridicamente obrigados.
Uma partilha feita nestas condições não é uma partilha feita livremente, mas uma partilha feita de harmonia com uma vontade vinculada, no sentido de declarar numa altura em que os outorgantes não eram livres de se manifestar nos termos seguidos e, portanto, validamente.
11 - A pretensão de o "contrato-promessa de partilhas" em causa ser nulo por não conter o reconhecimento presencial das assinaturas dos seus outorgantes, não tem o menor fundamento.
Desde logo, por o reconhecimento presencial da assinatura do promitente ou promitentes só ser exigível nos casos de promessa relativa à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir e, na hipótese, o imóvel que ficou de ser adjudicado ao recorrente não passar de um lote de terreno.
E, a seguir, por quanto ao contrato-promessa na parte respeitante à celebração do contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre a fracção autónoma já constituída que se acordou vir a caber à esposa, ser o recorrente que, no contexto do contrato, figura como promitente-vendedor, jamais podendo, por isso, invocar ele a omissão dos requisitos em falta, por não ter alegado que uma tal omissão se deva culposamente à mulher (artigo 410-3), parte final, do Código Civil).
12 - Nulo o "contrato-promessa de partilhas", nula se tem de considerar a cláusula penal estabelecida para o seu incumprimento.
13 - Sintetizando e concluindo: a) Os cônjuges, enquanto se mantiverem no estado de casados, não podem outorgar um "contrato-promessa de partilhas", tendo em vista a divisão dos bens do casal; e b) A outorga de um tal contrato na constância do casamento, por infringir o princípio da imutabilidade que se indica no artigo 1714 do Código Civil, de carácter imperativo, produz um contrato nulo, mesmo que na altura se encontre já pendente uma acção de divórcio entre eles e que o divórcio venha a ser decretado logo a seguir por mútuo consentimento.
14 - Chegados à conclusão de que o "contrato-promessa" referido nos autos é nulo, nenhuma necessidade há de ver já se o incumprimento do contrato por banda do recorrente é de qualificar como de simples mora ou de incumprimento com carácter definitivo, bem como os efeitos resultantes de uma e ou outra das situações.
15 - A declaração de nulidade do contrato-promessa tem como efeito retroactivo a restituição de tudo o que haja sido prestado com base nele (artigo 289-1 do Código Civil), o que o recorrente não deixou de solicitar, dizendo que, em consequência da atendibilidade no pedido reconvencional, deviam "as partes ser restituídas ao "status quo ante", ou seja, "statu quo" (por "in statu quo ante").
16 - No sentido da solução por que se opta - o da nulidade do "contrato-promessa de partilhas" celebrado na constância do casamento - podem citar-se os acórdãos deste Supremo de 18 de Fevereiro de 1988 e 27 de Abril de 1989 publicados no Boletim do Ministério da Justiça n. 374/474 e 386/468, respectivamente.
17 - Em função do exposto, e por se considerar violado o disposto no citado artigo 1714 do Código Civil, acorda-se em revogar o acórdão recorrido e, por conseguinte, concedendo a revista, a) em julgar improcedente a acção, deste modo absolvendo o réu do pedido; e b) em julgar procedente a reconvenção, assim declarando nulo o "contrato-promessa de partilhas" celebrado pelas partes em 16 de Fevereiro de 1987, com a natural consequência de o recorrente ter de restituir à recorrida o valor das tornas que dela recebeu e ambos os interessados terem de ser restituídos à situação em que se encontravam antes da outorga do contrato-promessa.
Custas da acção e da reconvenção - neste Supremo Tribunal e nas Instâncias - pela autora recorrida.
Lisboa, 26 de Maio de 1993.
José Magalhães;
Ferreira Dias;
Faria de Sousa.