RECUSA DE CUMPRIMENTO
PRESTAÇÃO
PRESCRIÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I - Como é óbvio, completado o prazo prescricional, o devedor fica com a faculdade de recusar o cumprimento da prestação.
II - Invocar a prescrição, que até ocorreu, não é mais do que lançar mão de uma faculdade concedida legalmente ao devedor para fazer operar a extinção da divida e não constitui abuso de direito por parte deste.

Texto Integral

Proc. 2608/08.7TJVNF-A.P1
Relator: Cândido Lemos – 1568
Adjuntos: Des. M. Castilho –
Des. H. Araújo –


ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


No .º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão e por apenso à execução para pagamento de quantia certa que a si e a outros move B………., com os sinais dos autos, veio C………. deduzir a presente oposição sob a forma de embargos de executado, pretendo que na procedência da mesma seja a execução declarada extinta em face da ilegitimidade do exequente, falta de título executivo, do endosso irregular, da inexistência da relação subjacente e do pagamento.
O exequente deduz contestação, pedindo a improcedência da acção e alegando quer a renúncia tácita da prescrição, quer o abuso de direito.
Foi então proferido saneador-sentença que julgou a oposição procedente e sem título a execução movida à opoente.
Inconformado o exequente apresenta este recurso de apelação e nas suas alegações formula as seguintes conclusões:
1ª- Os títulos dados à execução não estão prescritos.
2ª- A renúncia à prescrição é um facto notório, dado ter expirado o prazo da prescrição e só depois os executados terem alegado a prescrição;
3ª- O tempo decorrido entre as datas do vencimento dos títulos e a data da sua, douta, oposição, provam-no claramente;
4ª- A sua grave negligência ou culpa em não recolher ou exigir a devolução dos títulos, em tempo útil, demonstra-o;
5ª- Quem assim age, demonstra que deve ou renuncia a qualquer direito que pelos títulos pudesse ter;
6ª- Conduz a que terceiros confiem neles ou, pelo menos, não duvidem de que, quem os possui, é o seu verdadeiro titular e sobre eles mantém direito;
7ª- São levados a aceitar os mesmos sem reservas;
8ª- A renúncia, tanto pode ser expressa como tácita;
9ª- No caso dos autos foi, pelo menos, tácita;
10ª- Esta aparência é objectiva e, em face de terceiros, como tal, deverá ser reconhecida, oficiosamente, em direito, sob pena de se beneficiar o infractor;
11ª- A conduta dos executados configura um claro "venire contra factum proprium";
12ª- Constitui um clamoroso abuso de direito;
13ª- E excede, manifestamente, os limites que lhes são impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito;
14ª- No abuso de direito não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo;
15ª- Basta que, na realidade, exceda, objectivamente, os limites a que se alude na conclusão 13°;
16ª- De uma forma clara e nítida;
17ª- Os autos provam este excesso;
18ª- E que o direito pelo executado invocado não é legítimo;
19ª- A posição jurídica que os exequentes exercem nos presentes autos colide abertamente com a conduta que estes assumiram em relação aos títulos;
20ª- Esta sua posição enganou o exequente e levou-o a aceitar títulos que jamais pensou que pudessem ser impugnados;
21ª- A excepção do abuso de direito deveria ter sido conhecida, oficiosamente, pelo, douto, Tribunal. Isto, sempre, com o devido respeito;
22ª- O, douto, despacho saneador-sentença, está, com o devido respeito, deficientemente, elaborado, pese embora o mérito do, abundante e doutamente, debitado pela Meritíssima Senhora Juiz "a quo", que se reconhece;
23ª- Ao não conhecer das excepções invocadas da renúncia à prescrição e do abuso de direito, omitiu a Meritíssima Senhora Juiz "a quo" questões que competiam conhecer;
24ª- Ao conhecer, oficiosamente, a, invocada, excepção de caducidade, conheceu a Meritíssima Senhora Juiz "a quo" questão que lhe não competia conhecer;
25ª- Estas omissões e conhecimento constituem nulidades que determinam a nulidade do seu, douto, despacho-saneador sentença;
26ª- Pelas razões invocadas existem títulos executivos e a acção executiva possui causa de pedir;
27ª- E a oposição deveria ter improcedido.
Indica como violados os arts. 301°, "à contrario"; 302°, nos 1 e 2; 303°; 333°, n° 2; 315°; 325°, n°2 e 334° do C. Civil e arts. 659° e 668°, n° 1, al. d) do C.P.Civil.
Pugna pela revogação do saneador em crise, julgando-se a oposição improcedente.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Da instância vêm dados como provados os seguintes factos:
1- As letras dadas à execução foram sacadas por D………. e E………., L.da encontram-se aceites pela executada, delas constando como datas de vencimento “26.2.1997”, “26.05.1997” e “26.08.1997”.
2- No verso dessas letras constam as assinaturas da sacadora.
3- No requerimento executivo, sob a epígrafe “Título Executivo e Factos” consta: “os presentes títulos foram endossados ao exequente pelo sacador nele identificado, em virtude daquele ter assumido e pago, por este, várias obrigações bancárias pelos quais o sacador/endossante era responsável no âmbito da sua actividade profissional, tendo-lhe este endossado os títulos dados à execução, como meio de pagamento do débito que, assim, contraiu perante o exequente”.
Cumpre agora conhecer do objecto do recurso, delimitado como está pelas conclusões das respectivas alegações (arts. 684º nº 1 e 690º nº 1 do CPC).
São-nos colocadas duas questões:
- Renúncia da prescrição; e
- Abuso de direito.
Poderia pensar-me numa outra questão, referida na conclusão 23º, de conhecimento oficioso de uma “caducidade”, mas a verdade é que tal não corresponde à realidade do que se escreveu na decisão. Pura e simplesmente o Tribunal entende que a designação de “caducidade” se adequa mais à versão do art. 70º da LULL (pág. 29, linhas 3 e 4). Daí que também se afirme: “a prescrição (ou caducidade) do direito de accionar com fundamento nas letras de câmbio se verificou”.

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Renúncia da prescrição.
Refere o art. 302º do CC:
1. A renúncia da prescrição só é admitida depois de haver decorrido o prazo prescricional.
2. A renúncia pode ser tácita e não necessita de ser aceita pelo beneficiário.
Acrescenta-se no art. 217º: “A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.”
Por outro lado consta do art. 70º da LULL: “todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento.”
Ora a questão não estará na ocorrência da clara prescrição, mas na invocação da renúncia tácita daquela.
Entende o apelante que tal se verificou pelo facto de a executada invocar ter pago as letras ao sacador e não as ter exigido deste, apesar disso.
Salvo o devido respeito, não é esse o nosso entendimento.
É sabido que haverá renúncia tácita quando se provarem factos que, com toda a probabilidade, revelem o propósito, por parte do titular desse direito, de dispor do benefício que a prescrição tenha criado.
Como se salienta no Acórdão da RL de 19/5/94 – CJ 1994, III, p. 98/9 – “há renúncia tácita, quando a pessoa a favor de quem correu o prazo prescricional pratica um facto incompatível com a vontade de se socorrer da prescrição”. E a título de exemplo, seguindo Vaz Serra, o referido acórdão menciona “o pagamento da dívida prescrita, o pedido de moratória do pagamento, a promessa de pagar tão depressa quanto possível (...) e o reconhecimento da dívida”.

Ora, a renúncia tácita à prescrição prevista no art. 302º nºs 1 e 2 do CC reporta-se a um comportamento do devedor que denote o seu reconhecimento do direito após ter decorrido o prazo de prescrição.
A renúncia à prescrição pressupõe pois o reconhecimento da obrigação, depois de decorrido o prazo de prescrição. Trata-se de um comportamento incompatível com a recusa do cumprimento do direito prescrito ou com a oposição ao exercício de tal direito – ver art. 304º nº 1 do CC.
Para além disso o Acórdão uniformizador de 5/5/1994, processo 083149, disponível em www.dgsi.pt refere: A renúncia da prescrição permitida pelo artigo 302º do Código Civil só produz efeitos em relação ao prazo prescricional decorrido até ao acto de renúncia, não podendo impedir os efeitos do ulterior decurso de novo prazo.
Mesmo a renúncia não funciona eternamente, sendo necessário determinar o momento em que esta se verifica e em que se inicia nova contagem de prazo.
Ora, nenhum facto consta como assente, de onde se possa retirar a ideia de “renúncia” à prescrição, isto é, de onde se possa concluir que a executada pretende pagar as letras para além do decurso do prazo dos três anos, durante o qual o aceitante poderia exigir-lhe esse pagamento.
Bem próximo da “renúncia” está o reconhecimento da dívida, outra das situações em que a prescrição também não funciona.
Fundamento específico da prescrição é a negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período legalmente estabelecido, a qual faz presumir ou a renúncia ao direito ou, pelo menos, torna aquele indigno de protecção jurídica, a inércia negligente.
Como escreve Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Civil, vol. II, pág. 92, (citando Azzariti e Scarpello] - “Quando aquele contra quem pode ser exercido reconhece a existência do direito ameaçado de prescrição, dá um sinal manifesto da vitalidade do direito, que justifica a rotura do prazo prescricional. Para fins da interrupção é irrelevante o modo como o reconhecimento se manifesta, quer este consista numa declaração explícita, quer num acto que, à luz do entendimento comum, implique a admissão da existência do direito”.
O reconhecimento pode, assim, ser expresso ou tácito, o que nos remete para a distinção entre declaração expressa e declaração tácita do artº 217 do C.Civil.
Contudo, neste caso, houve maior cautela na admissão da declaração tácita. Só há reconhecimento tácito quando este “resulte de factos que inequivocamente o exprimam”.
O efeito do reconhecimento produz-se por força da lei, portanto, “ope legis”, e não por ser querido pelo seu autor. Estamos perante um acto jurídico simples e não perante um negócio jurídico.
Segundo Vaz Serra, in Prescrição extintiva e caducidade”, BMJ 106, pág. 220, o reconhecimento qualifica-se como uma declaração de ciência, em que o seu autor afirma ter conhecimento da existência do direito do credor. Não será, pois, de exigir, para que o reconhecimento tenha eficácia interruptiva, a intenção de interromper a prescrição, bastando uma conduta puramente factual: “Tenha ou não tenha essa intenção, a verdade é que reconhece o direito da parte contrária e, portanto, é legítimo entender que deseja cumprir a obrigação, não devendo poder prevalecer-se do prazo prescricional já decorrido, e que o titular, por confiar no reconhecimento, não precisa de interromper, por seu lado, a prescrição”.
Sobre os efeitos da interrupção da prescrição dispõe-se no art. 326º do C. Civil que: “1. A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo, sem prejuízo do disposto nos n.º 1 e 3 do artigo seguinte. 2. A nova prescrição está sujeita ao prazo da prescrição primitiva, salvo o disposto no artigo 311.”
Donde, nem reconhecimento da dívida, nem renúncia à invocação da prescrição se verificam no caso dos autos.
A prescrição, para ser eficaz, tem de ser invocada pelo interessado, mediante recusa do cumprimento da prestação ou oposição ao exercício do direito prescrito. Enquanto não houver recusa ou oposição mantém-se a natureza e características da obrigação prescrita e não pode ser repetida a prestação realizada espontaneamente, mesmo que realizada na ignorância da prescrição – arts. 303º e 304º- 1 e 2 C. Civil.
Mas no caso dos autos, ao pedido de pagamento das letras, a executada deduz a sua oposição invocando, entre outros, o argumento da prescrição, que se considera evidente (as letras são com vencimento em 1997 e a execução é de 2008).
O exequente clama pela renúncia tácita da invocação da prescrição, sendo que nenhum facto aponta donde se possa infirmar tal ideia, não podendo esta concluir-se do facto de a exequente ter invocado o pagamento ao sacador, sem deste ter exigido a entrega dos títulos.
Salvo o devido respeito, quem tem obrigação de entrega do título pago é o sacador; se fica com ele e o usa, enganando terceiros, age com manifesta má fé. Ao contrário do afirmado, o reconhecimento da prescrição não será “benefício para o infractor”, pois que nenhuma infracção existe por parte da executada.
Mantém-se, pois, a relevância dada à prescrição na decisão em crise.
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Abuso de Direito.
O apelante vem afirmar que a executada ao invocar a prescrição das letras, actuou com manifesto abuso de direito, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé e em flagrante contradição com uma sua conduta anterior.
O instituto do abuso do direito está consagrado no art. 334 do Cód. Civil:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Como escreve Rabindranath Capelo de Sousa, [Em Teoria Geral do Direito Civil, volume I, p. 212] “Quando uma pessoa excede clamorosamente os limites normativos decorrentes da boa fé, não está a exercer qualquer direito subjectivo, que nesse caso pura e simplesmente não existe, porque o próprio âmbito axiológico-normativo desses direitos não cobre tal situação”.
Pois bem. Completado o prazo prescricional, o devedor fica com a faculdade de recusar o cumprimento da prestação.
O exercício dessa faculdade não é, em regra, contrário à boa fé. [F. A. Cunha de Sá, Meios de Extinção das Obrigações, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles, volume I, p. 259.
Conforme decidiu o Ac. do STJ de 12-3-1996, BMJ, 455-451, “A invocação da prescrição não pode integrar, só por si, abuso de direito”].
Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil anotado, vol. I, pág. 299, “que o exercício de um direito só poderá ser ilegítimo quando houver manifesto abuso, ou seja, quando o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, traduzindo uma clamorosa ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante.”
O Prof. Baptista Machado, in “Obra dispersa”, vol I, pág. 415 e segs ensina que o efeito jurídico próprio do instituto do abuso de direito só se desencadeia quando se verificam três pressupostos:
1. Uma situação objectiva de confiança: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura;
2. Investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos se a confiança legítima vier a ser frustrada;
3. Boa fé da contraparte que confiou: a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa fé e tenha agido com cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico.
Um dos comportamentos que tem sido apontado como variante do abuso de direito, por violação manifestamente excessiva dos limites impostos pelo princípio basilar da boa fé, é o denominado “venire contra factum proprium”, podendo definir-se como o exercício de uma posição jurídica contrária ao comportamento anteriormente assumido pelo exercente.
Como é óbvio, completado o prazo prescricional, o devedor fica com a faculdade de recusar o cumprimento da prestação.
Invocar a prescrição, que até ocorreu, não é mais do que lançar mão de uma faculdade concedida legalmente ao devedor para fazer operar a extinção da dívida.
Nada se apurou, no comportamento da executada, que inculca-se no exequente a ideia de que aquela não pretendia usar da prescrição para evitar o pagamento (ou o novo pagamento) das letras dadas à execução.
Não se vê hipótese de enquadra a situação no instituto em causa.
DECISÃO:
Nestes termos se decide julgar totalmente improcedente a apelação.
Custas pelo apelante.

PORTO, 17 de Novembro de 2009
Cândido Pelágio Castro de Lemos
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Henrique Luís de Brito Araújo