PROVA PERICIAL
OBJECTO DA PERÍCIA
Sumário

Ao fixar o objecto da perícia, o juiz só deverá indeferir o proposto pelas partes nos respectivos quesitos, designadamente o que tenha sido apresentado pela parte contrária àquela que requereu a perícia, se, as questões levantadas por esta na formulação dos quesitos que apresentou, se revelarem inadmissíveis ou irrelevantes para o apuramento da verdade, funcionando aqui, como elemento a considerar, o que foi levado à base instrutória.

Texto Integral

Acordam na Secção Cível (1ª Secção), do Tribunal da Relação do Porto:

*

I – Na sequência do decretamento da providência cautelar de restituição da posse que correu termos no Tribunal Judicial de Boticas, com o n.º ./07.7 TBBTC, a Assembleia de Compartes B………. intentou acção contra a Assembleia de Compartes C………., sendo que, no âmbito desta, na fase de instrução do processo, foi proferido despacho judicial, nos seguintes termos: “Nomeio como peritos .... . ... devem prestar compromisso nos termos do disposto no art.º 581º, nº3, do C ... . O objecto da perícia consta de fls. 87 e 88, indeferindo-se as questões de fls. 105 e 106, atento que a A. não requereu tal prova. ...”.

Inconformada, a A., interpôs recurso de agravo, tendo apresentado as respectivas alegações, onde, nas conclusões, defende que:
1. A acção foi proposta na sequência do decretamento da providência cautelar de restituição provisória da posse que correu termos no Tribunal Judicial de Boticas com o n.º ./07.7 TBBTC, requerida pela R. para acautelar os seus direitos sobre uma determinada parcela de terreno baldio, localizada entre as freguesias de B………., concelho de Boticas, e C………., concelho de Ribeira de Pena, identificada em 16, 17 e 18 da P.I..
2. Na fase de instrução do processo, a R. requereu no seu requerimento de prova, a prova pericial, indicando desde logo o seu perito bem como, os respectivos quesitos.
3. O Meritíssimo Juiz a quo admitiu a requerida prova pericial e ordenou a notificação nos termos do artigo 568.º n.º 2 do CPC. Ora, face a isto, a A., ora recorrente, indicou Perito para realização da diligência, diferente do indicado pela R., e bem assim, apresentou os seus quesitos. É então que, no despacho a fls. 111 o Meritíssimo Juiz a quo e em nosso entender correctamente nomeia os três peritos para realização da perícia colegial. Neste mesmo despacho o Meritíssimo Juiz a quo fixa o objecto da perícia mas agora em total violação do disposto no artigo 578.º do CPC. O fundamento do indeferimento dos quesitos apresentados pela A. é no mínimo sui generis: “atento que o A. não requereu tal prova”.
4. Ora, salvo melhor opinião, tal fundamento não cabe na previsão legal do n.º 2 do artigo 578.º do CPC que dispõe especificamente que: Incumbe ao Juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respectivo objecto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-a a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade.
5. Da leitura do despacho ora em crise resulta claro que o Meritíssimo Juiz não fez qualquer análise das questões colocadas pela A., não as considerou inadmissíveis nem tão pouco irrelevantes. Apenas e só alicerçou a sua decisão no facto de a A. não ter requerido a perícia, facto com o qual não podemos concordar pois nada impede a A. de colocar, sem mais, qualquer questão aos peritos, muito antes pelo contrário.
6. O despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz a quo viola assim os mais basilares princípios do direito designadamente o princípio do contraditório e é um claro entrave à descoberta da verdade material.
7. Estipula o artigo 388.º do CC “A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem …” É então um direito das partes poderem oferecer ou requerer quaisquer provas (lícitas) que entendam necessárias para provar os factos que alegam em sustentação dos direitos afirmados ou para contra prova dos factos alegados pela contraparte que ponham em crise esses direitos, pelo que não podem ser indeferidos os quesitos oportunamente apresentados pela A. numa perícia colegial, pelo simples facto de não ter sido a A. a requerer tal prova pericial. Tudo isto decorre do princípio do contraditório e do direito de defesa.
8. Determina ao artigo 515º do CPC, o tribunal deve atender a todas as provas produzidas, provenham ou não da parte que deva produzi-las (decorrência do princípio da aquisição processual). E se é direito da parte requerer a realização de exames periciais, a parte que os não requereu pode, nos termos do artigo 578.º do CPC, pronunciar-se sobre o objecto proposto, propondo a sua ampliação ou restrição, sendo que incumbe ao Juiz, determinar o respectivo objecto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes. Desde que esse objecto se enquadre no âmbito da matéria em discussão na causa, quanto a factualidade ainda não assente, relevante para o exame e boa decisão da causa, as questões colocadas pela A. não podem ser indeferidas, a não ser que se tenham por inadmissíveis ou irrelevantes (artigo 578º n.º 2 do CPC).
Nenhuma dessas razões consta expressa ou se indiciam subjacentes à decisão que indeferiu os quesitos apresentados pela A..
9. Mais ainda porque o processo civil é dominado pelos princípios do contraditório e igualdade das partes (artigos. 3º e 3º-A, do CPC), indispensáveis à garantia do direito de defesa e ao apuramento da verdade. Nos termos do n.º 3 do artigo 3º do CPC “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, princípio do contraditório,…”, o que constitui uma garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento do litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O contraditório é visto, assim, não só numa perspectiva de defesa contra pretensão alheia mas também de influência no desfecho da causa, quer na fase da alegação, da exposição dos motivos da pretensão ou da oposição aos interesses da outra parte, como nas fases subsequentes do processo, em tudo quanto possa contender com a sua posição e interesses. Esse princípio, no que respeita ao direito à prova, exige que “às partes seja, em igualdade, facultada a proposição de todos os meios probatórios potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos (principais ou instrumentais) da causa”. Em posição de igualdade, é a faculdade das partes propor quaisquer as provas (lícitas) que entendam necessárias ao apuramento da realidade dos factos da causa como a pronunciar-se sobre a admissão das provas propostas pela parte contrária e, bem assim, a pronunciar-se sobre a apreciação de todas as provas produzidas no processo, reconhecendo-se a ambas as partes idênticas a possibilidades de utilização dos meios processuais em defesa das suas posições. Ac.TRP Proc. N.º 0635835, de 21 de Março de 2007.
10. Por fim, de referir que se impõe que todas as garantias processuais legalmente previstas sejam respeitadas, sob pena de violação do direito constitucionalmente reconhecido do acesso ao direito e aos tribunais e a um processo equitativo – art.º 20.º, n.º s 1 e 4, da CRP.
11. Pelo que, se requer o provimento do recurso e a revogação do despacho recorrido por violação do artigo 578.º n.º 2 do CPC.

Não há contra – alegações.

II – Corridos os vistos, cumpre decidir.

É, em principio, pelo teor das conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (artºs 684º, nº3, 690º, nº3, 660º, nº2 e 713º, nº2, todos do CPC, diploma a que pertencem os demais normativos a citar, desde que se mostrem desacompanhados de outra qualquer indicação).

Portanto, face às conclusões expressas pela Recorrente, supra transcritas, temos a decidir uma questão, que é a de saber:
- se as questões formuladas pela parte contrária, àquela que requereu a perícia, podem, ou não, ser indeferidas, pela simples razão de não ter sido requerida por ela, a indicada prova.
É o que iremos ver.

Os factos relevantes, para este fim, são os já acima descritos, bem como os seguintes:
- Aquando da apresentação dos meios de prova, a R., Assembleia de Compartes C………., para além da prova documental e testemunhal, requereu a realização de Prova Pericial Colegial, com recurso a GPS para localização georeferênciada, para resposta aos quesitos anexos, desde já indicando como Perito ...;
- Notificada, a A ./Recorrente, a fls 105 e 106 (dos autos) juntou requerimento onde indicou perito e apresentou os seus quesito.
*
Debrucemo-nos sobre o suscitado.
Como é sabido, a perícia é um meio de prova a que a parte ou/e o tribunal pode lançar mão quando se revele necessário recorrer ao conhecimento técnico de outrem – os peritos -, que, segundo Chiovenda, são pessoas chamadas a expor ao juiz não só as observações dos seus sentidos e as suas impressões pessoais sobre os factos observados, como também as induções que devam extrair-se objectivamente dos factos observados e daqueles que se lhes ofereçam como existentes (Código de Processo Civil anotado, vol IV (Reimpressão), Coimbra ed. 1981, pág. 167), para decidir as questões de facto essenciais para a decisão, sendo que, ao juiz, caberá sempre a última palavra, de acordo com o principio da livre apreciação da prova. A sua convicção, será formada segundo a competência ou incompetência efectiva do perito e a seriedade, diligência e rectidão que ele revelar no desempenho do encargo, ou segundo os efeitos que o laudo apresentar (ob. cit., pág.184), o que não significa, naturalmente, que possa decidir contra as provas produzidas, mas sim que o juiz não está adstrito na apreciação da prova, a critérios ou normas jurídicas predeterminadas; avalia e pesa as provas em inteira liberdade, segundo a sua consciência ou o seu próprio juízo. Portanto, é dever do juiz tomar em consideração o laudo dos peritos; mas é poder do juiz apreciar livremente esse laudo e portanto atribuir-lhe o valor que entenda dever dar-lhe, em atenção à análise critica dele e à coordenação com as restantes provas produzidas (mesma ob., pág. 185 e 186).
Posto isto, e embora à primeira vista possa parecer que está um pouco à margem da questão levantada, não é assim, dado que, é ao juiz que compete não só dar o valor adequado ao trabalho resultante da perícia, como, ab initio, decidir da pertinência da mesma e fixar o seu objecto, tendo em vista o quadro factual apresentado pelas partes, levado ao questionário, que lhe cumpre decidir.
Assim, uma vez requerido este meio de prova, dever-se-á respeitar o contraditório e, por fim, incumbe ao juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respectivo objecto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade, sendo este o fim último a atingir, de acordo com o quadro factual traçado.
Então, o que se verifica no caso presente é que, a R., na sequência da notificação que lhe foi feito para os fins estabelecidos pelo art.º 512, nº1, veio requerer a indicada prova pericial, com a formulação das perguntas/quesitos que, em seu entender, deveriam ser alvo disso. Ora, se a parte contrária, neste caso a Recorrente/A., foi ouvida como refere o art.º 578º, nº1, é porque o Tribunal a quo não considerou tal diligência impertinente nem dilatória. Daí que, o requerimento apresentado pela Recorrente mencionado no despacho recorrido, deva ser considerado como a expressão processual da faculdade estabelecida na última parte do mencionado dispositivo legal. De acordo com esta, a parte contrária pode não só aderir ao objecto proposto pela outra parte, delimitado pelo conteúdo dos quesitos apresentados, como pode, ainda, propor a sua ampliação ou a sua restrição.
É assim.
Só depois, o juiz deverá ordenar a realização da dita diligência, determinar o respectivo objecto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade (nº2, do último art.º citado).
Ou seja, ao fixar o objecto da perícia, o juiz só deverá indeferir o proposto pelas partes nos respectivos quesitos, designadamente o que tenha sido apresentado pela parte contrária àquela que requereu a perícia, se, as questões levantadas por esta na formulação dos quesitos que apresentou, se revelarem inadmissíveis ou irrelevantes para o apuramento da verdade, funcionando aqui, como elemento a considerar, o que foi levado à base instrutória (cujo conteúdo, no caso, desconhecemos).
São esses os fundamentos a atender – inadmissibilidade ou irrelevância das questões -, para a recusa dos quesitos apresentados pela parte contrária, e não aquele utilizado no despacho recorrido, - “... atento a que a A. não requereu tal prova”, que, nitidamente, é violador dos direitos conferidos à parte contrária – a Recorrente, pelo nº2, parte final, do art.º 578º, nº1.
Portanto, há que dar razão à Recorrente.
*
III- Pelo exposto, acordam em julgar provido este recurso e, consequentemente, revogam o despacho recorrido na parte em que indeferiu as questões de fls. 105 e 106, atento que a A. não requereu tal prova, cabendo ao Tribunal a quo proceder à sua substituição por outro, de acordo com o acima exposto.

Custas pela Recorrida.
*

Porto, 24 de Novembro, de 2009
Maria da Graça Pereira Marques Mira
António Guerra Banha
António Francisco Martins (Dispensei o visto)