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SEGREDO DE JUSTIÇA
Sumário
Com as alterações introduzidas na publicidade do processo penal, a Lei 48/2007 não operou a descriminalização do crime de violação do segredo de justiça cominado no artigo 371º do C.Penal.
Texto Integral
Rec.nº.3690/05.4TDPRT – .ºjuízo criminal do Porto
Violação do segredo de justiça – Sucessão de leis no tempo.
Acordam, em conferência, no tribunal da Relação do Porto:
Nos autos com processo comum singular, em referência, que correm termos no .ºjuízo criminal do Porto, foi proferida a seguinte decisão:
“Aos arguidos B………., director do C………. e D………., jornalista de profissão, são imputados, factos que consubstanciam a prática em co-autoria material de um crime de violação de segredo de justiça p.p. pelo artº 371º nº1 do Cod. Penal e artº 30º nº2 da Lei 2/99 de 13 de Janeiro, pelos factos que constam do despacho de pronúncia de fls.398 a 402 que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
O tipo legal previsto no art. 371º, nº 1, do CP, sob a epígrafe Violação do Segredo de Justiça, estatui que:
“Quem ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena até 2 anos de prisão ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada pela lei do processo.”
Consequentemente a definição da noção de segredo de justiça e a extensão deste deve ser procurada na legislação adjectiva.
O regime de segredo de justiça encontra-se regulado no art. 86, do CPP.
Dispunha o art. 86º, nº 1, do CPP, na redacção introduzida pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, que:
“O processo penal é, sobre pena de nulidade, público, a partir da decisão instrutória ou, se a instrução não tiver lugar, do momento em que já não pode ser requerida. O processo é público a partir do recebimento do requerimento a que se refere o art. 287º, nº 1, al. a), se a instrução for requerida apenas pelo arguido e este, no requerimento, não declarar que se opõe à publicidade”.
No nº 4 do citado artigo estatuía-se que:
“O segredo de justiça vincula todos os participantes processuais, bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo e conhecimento de elementos a ele pertencentes, e implica as proibições de:
a) Assistência à prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de acto processual a que não tenham o direito ou o dever de assistir;
b) Divulgação da ocorrência de acto processual ou dos seus termos, independentemente do motivo que presidir a tal divulgação.”
À data da prática dos factos descritos na acusação e pronúncia, vigorava o segredo de justiça em toda a fase de inquérito até ao momento em que não pudesse ser requerida a instrução.
Assim o acto processual mencionado na notícia publicada no C………. encontrava-se abrangido pelo segredo de justiça, já que apesar de ter sido já deduzida acusação ainda decorria o prazo legal para requerer a abertura de instrução.
Com as alterações introduzidas pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, que entrou em vigor a 15 de Setembro de 2007, o processo penal passou a observar a regra da publicidade -art. 86º, nº 1, do CPP.
A narração dos actos processuais ou reprodução dos seus termos pelos meios de comunicação social é um dos corolários dessa publicidade – artº86º, nº 6, al. b), do CPP.
Não estando os factos dos autos integrados na excepção à regra da publicidade prevista no nº 7, do art. 86º, do CPP (“a publicidade não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova”) temos que, presentemente, a matéria de facto vertida na douta acusação pública não se encontra submetida a segredo de justiça.
Dito de outro modo, os actos cuja prática é imputada aos arguidos na acusação não estão, à luz do actual regime legal, cobertos pelo segredo de justiça, sendo permitida a sua integral divulgação noticiosa através dos órgãos de comunicação social. Sendo a regra actualmente a da publicidade da fase de inquérito a conduta dos arguidos encontra-se, por isso, fora do âmbito da tutela penal assegurada pelo art. 371º, nº 1, do CP, não consubstanciando a prática de um qualquer ilícito.
A descrita evolução legislativa não configura, contudo, uma descriminalização.
A lei nova não suprimiu o segredo de segredo de justiça, retirou-lhe no entanto o carácter de regra, passando a ser a excepção, introduzindo-lhe novas exigências legais.
Não ocorreu uma despenalização, continuando a existir o tipo legal de crime de violação do segredo de justiça, p. e p. pelo art. 371º, nº 1, do CP.
Contudo o actual regime, ao comprimir as circunstâncias em que tal violação pode ocorrer, consagra um regime mais favorável já que os novos elementos especificadoras introduzidos no tipo previsto no art. 371º, nº1, do CP, que resultam reflexamente da entrada em vigor da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, restringem o âmbito de aplicação da norma. (Cfr, neste sentido, Ac. Relação de Coimbra de 11/06/08).
Concluindo, verifica-se uma redução da extensão do âmbito de protecção penal do crime de violação do segredo de justiça.
Atento o exposto, nos termos do art. 2º, nº 4, do CP, por aplicação retroactiva do regime legal mais favorável aos arguidos, previsto no art. 371º, nº1, do CP, com remissão para a actual redacção do art. 86º, do CPP, deverá ser declarada extinta a responsabilidade criminal de B………. e D………, determinando-se o correspondente arquivamento dos autos.
DECISÃO:
Pelo exposto, determino declarar extinta, por descriminalizada, a responsabilidade criminal dos arguidos B………. e D………. .
Abra vista ao Ministério Publico e, nada opondo, ordena-se o subsequente arquivamento dos autos.
Sem efeito o julgamento para hoje designado. Notifique.
Desconvoque. D.N”.
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Inconformado, o Ministério Público interpôs e motivou o presente recurso, concluindo:
«1- Os arguidos encontram-se acusados e pronunciados pela prática, em co-autoria material, do crime de violação de segredo de justiça, ilícito previsto e punível pelo artº371º nº1 do Código Penal e artº30º nº2 da Lei 2/99 de 13 de Janeiro.
2- Embora o crime de violação de segredo de justiça se encontre previsto no artº371º nº1 do Código Penal, contém conceitos cujo esclarecimento e conteúdo exigem a remissão para as normas processuais penais, nomeadamente, para os artºs 86º, 88º e 89º do CPP.
3- Os factos ocorreram, em 2005, antes da entrada em vigor da Lei 48/2007 de 29 de Agosto que, alterando a redacção do artº86º do CPP, veio introduzir a regra da publicidade, em todo o processo penal (ressalvadas algumas e substanciais excepções, durante a fase de inquérito).
4- Porém, as alterações legislativas introduzidas pela referida lei 48/2007 de 29 de Agosto, particularmente, ao texto do artº86º do CPP, que afastou a regra do segredo de justiça durante a fase de inquérito, não operaram a descriminalização das condutas praticadas pelos arguidos porquanto,
5- “… só se pode falar de descriminalização… quando a lei nova passe a entender como lícita ou, pelo menos, como «indiferente para o direito penal» uma conduta que, de acordo com a legislação vigente ao tempo da respectiva prática, se qualificava de ilícita e, portanto, se considerava punível, o que não é o caso, uma vez que se mantém tutelado o segredo de justiça embora com carácter de excepção.
6- A conduta dos arguidos integra, no âmbito da nova lei, um acto ilícito punível de espécie análoga, … atentatório do mesmo bem jurídico, tutelado no direito vigente ao tempo em que aquela foi cometida.
7- A conduta do agente que divulga o teor de acto de processo penal coberto por segredo de justiça, por respeitar a processo que se encontrava numa fase em que, ao tempo e por imposição legal, vigorava esse regime, não deixou de constituir ilícito punível nos quadros da lei nova.
8- Pelo que… a conduta dos arguidos traduzida na divulgação do teor de actos processuais penais respeitantes a inquérito que se encontrava em segredo de justiça, … não se encontra descriminalizada.
9- Mas ainda que assim se não entenda, sempre haverá lugar à qualificação dos factos como crime de desobediência simples (previsto e punido pelo artº348º do CP) e atento o disposto no artº88º nº2 do CPP, cuja redacção se mantém inalterada, sendo certo que, mesmo que o processo não se encontre a coberto do segredo de justiça, não está autorizada a reprodução de peças processuais… até à sentença em 1ª instância…”.
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Na sua resposta, os arguidos concluíram pelo não provimento do recurso.
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Subindo os autos, o Senhor Procurador-geral adjunto exarou proficiente parecer de provimento do recurso e tramitação dos autos para julgamento.
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Observado o disposto no atº417º nº2 do Cód. Proc. Penal, não houve resposta.
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Apreciando e decidindo:
Este Tribunal conhece de facto e de direito, nos termos do art°428° do C.P.P., sendo determinado o âmbito do presente recurso, exclusivamente de direito, pelas questões suscitadas, pelo recorrente, nas respectivas conclusões.
A Digna recorrente, propugnando a revogação da decisão, suscita as seguintes questões:
I- A lei 48/2007, de 29 de Agosto não operou a descriminalização do crime de violação de segredo de justiça, previsto e punido no artº371º nº1 do Cód. Penal, pelo que devem os autos prosseguir para julgamento;
II- Subsidiariamente, sempre «haverá lugar à qualificação dos factos como crime de desobediência simples (previsto e punido pelo artº348º do CP) e atento o disposto no artº88º, nº2 do CPP, cuja redacção se mantém inalterada…».
Dissecando a lei:
À data dos factos objecto do despacho de pronúncia, em 2005, dispunha o artº371º nº1 do Código Penal:
“Quem ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei do processo”.
Sendo tal norma penal em branco, o seu conteúdo, âmbito material e correspectivos elementos do tipo são descritos nos artigos 86º a 89º do Código de Processo Penal.
Assim, na sua pertinência e à data dos factos e respectiva pronúncia, em 2005, dispunha o artº86º nº1 do Código Penal, na redacção da lei 59/98, de 25/08:
“O processo penal é, sob pena de nulidade, público, a partir da decisão instrutória ou, se a instrução não tiver lugar, do momento em que já não pode ser requerida. O processo é público a partir do recebimento do requerimento a que se refere o artigo 287º, nº1, alínea a), se a instrução for requerida apenas pelo arguido e este, no requerimento, não declarar que se opõe à publicidade”.
Por isso que, os factos imputados aos arguidos no decurso do inquérito e objecto da pronúncia, se encontravam então abrangidos, ope legis, pelo segredo de justiça e a sua inobservância punida nos termos do citado artº371º do Código Penal, reportado ainda ao disposto no nº4 do artº86º do Código de Processo Penal, sem exigência ou verificação de qualquer pressuposto formal, concretamente, de validação judicial.
Porém, a partir da revisão e alteração operada pela Lei nº48/2007, de 29 de Agosto, o artigo 86º nº1 do Código Processo Penal passou a ter a seguinte redacção:
“O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei”.
Não obstante, tal regra de publicidade pode ser comprimida na fase de inquérito e dar lugar à sujeição do processo, durante a fase de inquérito e a impulso de qualquer dos sujeitos processuais e mesmo do Ministério Público, a segredo de justiça, nos termos previstos no artº86º nº2 e nº3 do Cód. Proc. Penal, mas sempre por decisão do competente juiz de instrução.
Com o que é forçosa a conclusão de que sendo antes o segredo de justiça, a regra, ope legis, durante a fase de inquérito, passou agora a ser a excepção, mas ainda assim, sempre determinada por decisão judicial.
Tal decisão judicial não preenche ou constitui, porém, qualquer elemento do tipo legal de crime de violação de segredo de justiça, antes constitui, tão só, após a revisão e alteração do artº86º do Cód. Proc. Penal operada pela Lei nº48/2007, de 29 de Agosto, um mero pressuposto ou condição de procedibilidade, de natureza processual penal, do crime de violação do segredo de justiça.
Assim sendo, a materialidade aparente de tal norma processual, sendo de aplicação imediata, nos termos do artº5º do Cód. Proc. Penal, é-o sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior, uma vez que não enforma o tipo legal de crime de violação de segredo de justiça da pronúncia dos arguidos, cominado no artº371º nº1 do Cód. Penal vigente à data da prática dos factos, cujo regime se mantém idêntico ao actualmente em vigor, após a alteração operada pelas Leis nº48/2007, de 29 de Agosto e 59/007, de 4 de Setembro, ainda que agora dependente de decisão judicial.
A dissecada alteração legislativa ao artº86º nº1 do Cód. Proc. Penal ocorre quando já se mostrava encerrado o inquérito e mesmo após o encerramento da instrução, momento em que também os autos já não se encontravam cobertos pelo segredo de justiça, na anterior redacção do mesmo normativo processual penal, mas estando já consumado o crime imputado aos arguidos.
Não ocorre, pois, uma verdadeira e própria sucessão de leis penais no tempo quanto ao preenchimento e punição do tipo de crime de violação de segredo de justiça, determinante da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável e proibição de aplicação retroactiva da lei mais gravosa para os arguidos, nos termos do artº2º nº4 do Código Penal.
Na verdade, os factos imputados aos arguidos ocorreram em 2005, muito antes da entrada em vigor da Lei nº48/2007, de 29 de Agosto, pelo que nenhum alcance obstrutivo pode ter esta na validade da respectiva pronúncia, com a redacção dada ao referido artº86º do Cód. Proc. Penal.
Ontem, como hoje, a conduta dos arguidos é punida, aliás com a mesma moldura penal abstracta, continuando a ser o mesmo tipo de ilícito punido no regime do Cód. Penal em vigor e revisto pela citada Lei.
Assim e ao contrário do decidido, a pronunciada conduta dos arguidos não se mostra descriminalizada pelo Cód. Penal revisto pela Lei nº48/2007 de 29 de Agosto.
À semelhança do também expendido no Ac. STJ, de 20/6/84, proc. nº 37290, JP, p.18, transcrito pelo Prof. Germano Marques da Silva no seu Curso de Processo Penal, I, pág.108: «A exigência actual da queixa do ofendido para a acção penal do crime imputado à ré é uma mera condição de procedibilidade regida pela lei processual penal, e a que são aplicáveis, portanto, as normas que regulam a aplicação temporal das leis processuais e a sua lei reguladora é a do tempo do acto. A lei que actualmente exige a queixa do ofendido no crime da ré não tem que ser considerada no processo em curso. Nenhuma nova lei processual pode afectar a validade dos actos processuais validamente praticados segundo a lei da época em que o foram. O que significa que a acusação do Mº.Pº., tendo sido validamente deduzida, validamente tem de subsistir sejam quais forem as leis processuais supervenientes».
Ou como também aduz o Ministério Público no seu parecer, «a alteração das normas (qualquer que seja a natureza destas) que completam o conteúdo das normas incriminadoras não modifica a necessidade de protecção dos interesses subjacentes, apenas os actualiza e quando deixem de integrar o conteúdo dessas normas, esse facto não traduz uma alteração da política legislativa em matéria criminal, nem traduz uma menor necessidade de protecção daqueles interesses, pelo que a alteração não beneficia o arguido que violou tais interesses; a necessidade da protecção criminal do segredo de justiça mantém-se e mantém-se a previsão de situações de proibição que dão sentido ao conceito “acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça”, qualquer que seja o acto».
Como tal, fica necessariamente prejudicada a questão da propugnada alteração da qualificação dos factos como crime de desobediência simples, manifestamente ilegal, uma vez fixado pela pronúncia, o objecto do processo…
Concluindo, a Lei nº48/2007 de 29 de Agosto não operou a descriminalização do crime de violação de segredo de justiça cominado no artº371º do Cód. Penal, com a alteração da publicidade conferida ao processo penal nos termos do artº86º do Cód. Proc. Penal, após a sua entrada em vigor, nem esta configura um qualquer conflito instrumental de aplicação de leis penais no tempo, a dirimir nos termos do artº2º nº4 do Cód. Penal em vigor.
Decisão:
Acordam os juízes, desta Relação, no provimento do recurso, em revogar o despacho em apreço, o qual deverá ser substituído por outro de normal tramitação dos autos, se inexistentes outras questões, para julgamento.
Sem tributação.
Porto, 25/11/2009
Ângelo Augusto Brandão Morais
José Carlos Borges Martins