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ESCUSA
TRAMITAÇÃO
Sumário
O incidente de escusa de segredo profissional rege-se pelos seguintes princípios: 1- O incidente está dividido em duas fases, uma referente à questão da legitimidade da escusa, outra referente à questão da justificação da escusa. 2- Só o Tribunal de 1ª instância é competente para decidir sobre a legitimidade da escusa. 3- Só o Tribunal superior é competente para decidir sobre a justificação da escusa. 4- A intervenção do Tribunal superior é oficiosa e tem lugar sempre que o juiz de 1ª instância tenha decidido que a escusa é legítima.
Texto Integral
Processo n.º 378-B/1999.P1
Agravante: B……….
C………., Lda
Agravado: D……….
(Tribunal Judicial de Amarante – ..º Juízo)
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I-RELATÓRIO
C………., Lda e B………. e MULHER interpuseram recurso de agravo da decisão proferida pelo Tribunal a quo que indeferiu as nulidades processuais que arguiram.
Os Agravantes formularam as seguintes conclusões de recurso:
1 — foi suscitada por testemunha inquirida em audiência a sua escusa em depôr por entender que tal depoimento violaria os seus deveres profissionais.
2 — o tribunal entendeu que tal depoimento era importante para o apuramento da verdade e que, portanto, se justificava impor esse depoimento através do procedimento correspondente;
3— tal procedimento, previsto nos artigo 135.° do C.P.P.. e aplicável ao processo civil por força do disposto no artigo 519.° n.° 4 do código respectivo, tem duas fases distintas.
4— a primeira em que o juiz decide se a escusa é, ou não, legitima.
5 — se entender que é ilegítima determina a tomada de depoimento por despacho que é recorrível;
6 — se entender que tal escusa é legítima, decide nesse sentido depois de ouvido o organismo profissional competente.
7 - decisão que, como todas, não pode deixar de ser fundamentada;
8 - decidida a legitimidade da escusa cabe ao tribunal superior decidir se ela é, ou não, justificada e, em consequência determinar se a testemunha deve depôr.
9 - no caso dos autos não existe decisão que julgue legítima a escusa da testemunha;
10 — não o é o despacho proferido no decurso da audiência de 14 de Abril de 2008; quanto ali se decide é diligenciar no sentido de ser levantado o sigilo profissional da testemunha.
11 — quanto à legitimidade da escusa da mesma nada se diz, nem podia dizer por faltar um passo processual obrigatório: ouvir o organismo profissional respectivo.
12 — de igual e pelas mesmas razões nada se decide quanto a tal legitimidade no “requerimento” de fls. 785 e 786;
13-o mesmo sucedendo com o despacho de fls. 806.
14 - a prolação de decisão quanto à legitimidade da escusa é acto imposto por lei.
15 — e a sua omissão constitui nulidade nos termos da norma do n.° 1 do artigo 201.° do c. p. c.
16 - porque assim não decidiu o despacho agora agravado violou a referida norma e ainda as dos artigos 135.° do c. p. penal e do n.° 4 do artigo 519.° do c. p. c.,
17 — pelo que deve ser revogada e substituída por outra que julgue verificar-se a invocada nulidade.
quando assim se não entenda, o que não se concede
18 — a entender-se que existe decisão que julgue legítima a escusa, deve então julgar-se ser ela nula por falta de fundamentação.
19 — efectivamente, em nenhum momento ou em nenhum local foi fundamentada tal decisão
20 — e muito menos depois de conhecido pela sra. juíza o teor e as razões do parecer da ordem dos médicos.
21-Porque a existir tal decisão ela não está fundamentada nem de facto nem de direito, está ferida de nulidade nos termos da previsão da norma da alínea A) do n.º1 do art.º 668.º do CPC
22- Não tendo decidido assim, o despacho recorrido violou expressamente aquela norma pelo que deve ser revogado.
Em contra –alegações, os Agravados defendem que deve ser indeferido o agravo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II-OS FACTOS
Resultam dos autos os seguintes elementos, com relevo para a decisão:
1-No decurso da audiência de julgamento em que se procedia à inquirição da testemunha Dr.ª E………., cuja inquirição fora oficiosamente ordenada pelo Tribunal, invocou aquela o dever de sigilo profissional, para se escusar de responder às perguntas que lhe foram colocadas, relativamente à situação clínica de D. F………., entretanto falecida.
2-O Tribunal, após analisar o preceituado nos artigos 67.º e 68.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, concluiu pela legitimidade dessa escusa.
3-Porém, atenta a importância do depoimento da referida testemunha para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, o Tribunal a quo requereu ao Tribunal da Relação do Porto, ao abrigo do disposto no art.º 135.º do Código de Processo Penal, que decida da prestação do testemunho da Dr.ª E………., com quebra do sigilo profissional.
4-Foi ouvida a Ordem dos Médicos, cujo parecer consta de fls.797-802 dos autos.
5-O Tribunal da Relação proferiu acórdão no qual decidiu pela quebra do segredo profissional e ordenou a prestação do depoimento da testemunha.
6-No dia 16 de Março de 2009, reaberta a audiência, com vista à inquirição da testemunha Dr.ª E………., foi pedida a palavra pelos Mandatários da Ré C………., Lda e dos Intervenientes e no uso da mesma apresentaram requerimento do seguinte teor:
“A ré e os intervenientes acabam de tomar conhecimento que está nos autos um acórdão do Tribunal da Relação do Porto que decide, aparentemente, que a testemunha Dra. E………. deve violar o seu segredo profissional e depor nesta audiência.
Acabaram também de saber pela mesma via informal que está nos autos um parecer da Ordem dos Médicos, subscrito pelo respectivo Conselho Deontológico no sentido de que a dita testemunha não deve violar o seu segredo profissional e portanto não deve depor.
O incidente de levantamento do segredo profissional segue, mesmo em processos civis e por expressa cominação legal, a tramitação aplicável em processo penal.
Não foi dada às partes oportunidade de se pronunciarem sobre a matéria submetida ao Tribunal da Relação.
Ora, tal omissão, salvo devido respeito por melhor opinião, constitui violação do princípio processual do contraditório.
Acresce que, de uma leitura rápida dos autos, a ré e os intervenientes concluíra que não foi dada vista do processado na Relação ao M° P° como obriga a lei processual penal.
Se porventura tal ocorreu, e não se aperceberam, não foi cumprido o art° 416°, do CPP em que é obrigatório dar conhecimento às partes do parecer do M°P.º.
O acórdão proferido não foi ainda notificado às partes que têm interesse directo e inultrapassável na decisão proferida, porque é ou pode ser relevante para a decisão final a tomar.
Tal acórdão não foi notificado e uma vez que o seja é, no entender da ré e dos intervenientes, recorrível, quer colocada a questão no âmbito do processo penal quer, o que só por excesso se admite, no âmbito do processo civil.
De qualquer forma, a falta de notificação da decisão judicial proferida na Relação às partes constitui nulidade e a falta das notificações tem como consequência não ter aquele acórdão transitado.
Nestes termos, vêm arguir as nulidades invocadas para serem conhecidas e requerem lhes seja notificado o acórdão proferido, nos termos legais, para terem perfeito conhecimento do por ele decidido.”
7-Dada a palavra ao Ilustre Mandatário dos autores, pelo mesmo foi dito:
Salvaguardando o devido respeito que é todo, parece aos autores não haver razão no requerimento anteriormente formulado pelos réus.
É como um segredo de pau e chinelo, toda a gente sabe do acórdão não o tendo.
Sempre, com todo o respeito, lembram os autores que este processo vai a caminho dos 14 anos de duração e com a existência ou não do presente acórdão que aqui se discute afigura-se aos autores com alguma probabilidade de razão que outro tempo voltará a passar se for deferida a pretensão dos réus.
De qualquer modo fica à consideração da Mma Juíza”
8-Pela Mma Juiz foi proferido o seguinte despacho:
Ao abrigo do disposto no art° 3° do CPC, designadamente do disposto no n° 3 do citado preceito, determina-se, para os devidos e legais efeitos, a notificação de imediato do acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto constante de fls. 811 e 812, a todos os intervenientes processuais, designadamente autores, ré e intervenientes bem como, atenta a posição ora assumida pelos Ilustres Mandatários da ré e intervenientes, do processado constante de fls. 789 a 810.
Como decorre do requerimento ora em apreciação, afigura-se-nos que as nulidades ali invocadas, designadamente as respeitantes à tramitação da questão da quebra do sigilo profissional do Tribunal da Relação do Porto, se afiguram por agora extemporâneas, porquanto as partes ainda não teriam sido notificadas de tal tramitação e nessa medida o prazo para a arguição de eventuais nulidades quanto a tal processado ainda não teria começado a decorrer.
Nessa medida, e por forma a assegurar ao longo do processado o cumprimento do principio do contraditório e designadamente acautelar a possibilidade das partes serem surpreendidas por decisões relativamente às quais não tiveram oportunidade de se pronunciarem, princípios estes acautelados no já citado art° 3.º, n° 3 do CPC, concede-se neste momento a palavra aos Ilustres Mandatários da ré e intervenientes para esclarecerem se efectuada que seja a notificação ora determinada, de imediato estão em condições de tomarem posição quanto às peças processuais cujas cópias lhes irão ser entregues neste momento, ainda que com a suspensão dos trabalhos por algum tempo ou se não prescindem de prazo para o efeito, sendo que assim ficará prejudicada a possibilidade de inquirição no dia de hoje da testemunha Sra. Dra. E………., que aqui se encontra presente.
9-Pelos Ilustres Mandatários da ré e dos intervenientes foi dito:
“Não tendo ainda procedido à leitura minuciosa das peças processuais a que se refere o douto despacho precedente, necessitam de prazo nunca inferior a 12 dias para se poderem pronunciar com perfeito e pleno conhecimento de causa sobre as aludidas peças processuais, o que se requer lhes seja concedido.”
10-Dada a palavra ao Ilustre Mandatário dos autores pelo mesmo foi dito nada ter a opor.
11-Pela Juiz foi proferido o seguinte despacho:
“Face ao requerimento que antecede defere-se o requerido prazo de 12 dias e designa-se para a continuação do julgamento o próximo dia 11 de Maio de 2009, às 13:30 horas, data esta agendada tendo em atenção o prazo concedido às partes para se pronunciarem e ainda acautelando a possibilidade de virem a ser suscitadas questões por aquelas que impliquem a prolação de decisões respeitantes às mesmas.”
12-E veio a ser apresentado o requerimento de fls. 841-847 dos autos, no qual se requeria:
Que se julgasse falso o documento de fls. 785 e 786 dos autos e, por consequência, nulo e de nenhum efeito.
Que se julgassem procedentes as demais arguidas nulidades que consistiam em:
A primeira na omissão de prolação de despacho a declarar a legitimidade da escusa de prestação de depoimento
A segunda na prolação de despacho a ordenar a remessa dos autos ao Tribunal da Relação sem a prévia prolação de despacho a declarar a legitimidade da escusa.
13-Notificada a parte contrária, pronunciou-se pelo indeferimento do requerido:
14-Seguidamente foi proferido o despacho de fls.891-894 que julgou improcedente a arguição das invocadas nulidades.
E foi do teor deste despacho que foi interposto o presente recurso.
III-O DIREITO
Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição, a questão que importa apreciar é a de saber se foi cometida a nulidade invocada em consequência de não ter sido proferido despacho a declarar legítima a escusa da prestação de depoimento.
Nos termos do art.º 519.º n.º 3 do Código de Processo Civil (CPC), a recusa em prestar a colaboração pedida ao Tribunal, designadamente através de depoimento, é legítima se importar violação do sigilo profissional. E deduzida escusa com este fundamento, “é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.[1]
O incidente de escusa do segredo profissional rege-se pelos seguintes princípios:
1-O incidente está dividido em duas fases, uma referente à questão da legitimidade da escusa, outra referente à questão da justificação da escusa.
2-Só tribunal de primeira instância é competente para decidir sobre a legitimidade da escusa.
3-Só o tribunal superior é competente para decidir sobre a justificação da escusa.
4-A intervenção do tribunal superior é oficiosa e tem lugar sempre que o juiz de primeira instância tenha decidido que a escusa é legítima.
Assim, em termos esquemáticos, o incidente estrutura-se do seguinte modo:
a)Pedido de escusa.
b)Averiguações necessárias da autoridade judiciária competente, consoante a fase processual, sobre a questão da legitimidade da escusa, incluindo a audição do organismo representativo da profissão.
c)Decisão do juiz
i)O juiz declara a ilegitimidade da escusa e ordena a prestação de depoimento (despacho recorrível pelo requerente da escusa) ou
ii)O juiz declara a legitimidade da escusa e ordena oficiosamente a subida ao tribunal de recurso para decisão sobre a questão da justificação da escusa (despacho irrecorrível)
d)Decisão do tribunal superior (recorrível)
i)Injustificada a escusa: o tribunal declara injustificada a escusa e ordena a prestação do depoimento
ii)Justificação da escusa: o tribunal declara justificada a escusa.[2]
Vejamos antes de mais, se no caso sub judice, se verificou algum atropelo no cumprimento da lei, designadamente se foi omitida a decisão que julgue legítima a escusa da testemunha.
Ora tal decisão existe e consta da exposição em que a M.ª Juíza a quo expressamente refere: “analisando o preceituado nos artigos 67.º e 68.º do Código Deontológico da ordem dos Médicos, concluímos pela legitimidade dessa escusa.”
Não se verifica, portanto, a invocada omissão.
De qualquer modo, ainda que não tivesse sido expressamente proferida tal decisão, para que tal omissão constituísse nulidade era necessário que essa irregularidade pudesse influir no exame ou na decisão da causa, conforme estipula o art.º 201.º n.º 1 do CPC. Ora, no caso concreto, tal não acontece. Perante a escusa da testemunha em testemunhar, invocando o sigilo profissional e ao ordenar a remessa dos autos ao Tribunal da Relação, nos termos do art.º 135.º do Código de Processo Penal, o Tribunal não omite qualquer acto que influa no exame e decisão da causa, pois a remessa dos autos ao Tribunal da Relação tem como pressuposto que o tribunal de 1.ª instância considera legítima a escusa e trata-se de decisão irrecorrível.
Improcedem, neste ponto as conclusões dos Agravantes.
Porém, a entender-se que existe decisão, como efectivamente acaba de ser decidido, os Agravantes invocam ainda a nulidade da decisão por falta de fundamentação.
É certo que nos termos do art.º 158.º do CPC “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.” Ora, a “decisão” sobre a legitimidade da escusa em depor não tem a natureza das decisões a que se refere o supracitado preceito. Não existe um pedido controvertido sobre o qual o Tribunal tenha de elaborar um raciocínio jurídico, perante pretensões opostas, tendo de optar por uma delas e justificar tal opção. Neste caso, o tribunal tem apenas de verificar a conformidade da escusa da testemunha em depor, com a existência de um dever de sigilo profissional. Em rigor, essa decisão em que o juiz declara legítima a recusa da testemunha em depor, pelo facto de estar vinculada ao sigilo profissional, não é susceptível de ofender qualquer direito processual das partes ou de terceiros, pelo que apresenta a natureza de um despacho de mero expediente[3] que não necessita de fundamentação. Por ser um despacho de mero expediente, também é irrecorrível (art.º 679.º do CPC).
Na verdade, a decisão/ declaração do juiz relativamente à legitimidade da escusa da testemunha, não prejudica a posição processual de nenhuma das partes. A decisão que parece “prejudicar” os ora recorrentes foi aquela que determinou a inquirição oficiosa da testemunha, ou aquela em que o Tribunal da Relação, dispensando o sigilo profissional ordenou a inquirição dessa mesma testemunha (decisão de que os ora agravantes também recorreram).
Improcede portanto a conclusão dos recorrentes no sentido da nulidade do despacho por falta de fundamentação.
Não se vislumbra assim que tenha sido cometida qualquer nulidade.
IV-DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto, negar provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.
Custas pelos Agravantes.
Porto, 30 de Novembro de 2009
Maria de Deus Simão da Cruz Silva Damasceno Correia
Maria Adelaide de Jesus Domingos
Ana Paula Pereira de Amorim
__________________________
[1] Vide art.º 519.º n.º 4 do CPC.
[2] Vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/10/2009,N.º convencional JTRP00042992 www.dgsi.pt e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo penal, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Maio, 2008, pp. 361-363 e 366-368.
[3] J. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pp.249-250