CIRE
INSOLVENTE ARRENDATÁRIO
MANUTENÇÃO DO ARRENDAMENTO
QUALIFICAÇÃO
RENDA
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário

I – Optando o administrador da insolvência pela manutenção do contrato de arrendamento em que o insolvente é arrendatário, as rendas vencidas desde a declaração da insolvência constituem dívidas da massa insolvente (art. 51º, nº1, als. d) e f) do CIRE).
II – A acção intentada pelo senhorio com vista à resolução do contrato de arrendamento e à cobrança dessas rendas corre por apenso ao processo de insolvência, nos termos do art. 89º, nº2 do mesmo diploma legal, sendo o tribunal onde este corre materialmente competente para o efeito.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:



I.
B………., S.A. intentou a presente acção com processo sumário (despejo) contra C………., Lda, sociedade insolvente, representada pelo seu administrador, pedindo se declare resolvido o contrato de arrendamento e se decrete o despejo imediato do arrendado identificado no art. 2.º da p.i., condenando-se a Ré insolvente a entregá-lo à A. livre de pessoas e bens, e a pagar-lhe a quantia de € 2.127,96, de rendas vencidas e as vincendas à razão de € 417,25 cada, deduzida da retenção legal na fonte (IRC).
Alegou que é dona do prédio urbano identificado no art. 1.º da p.i., no qual deu de arrendamento à Ré, há mais de 30 anos, uma loja destinada a comércio, cuja renda é hoje de € 417,25, quantia sobre a qual a Ré procede à retenção na fonte do montante de € 62,59, entregando à A. € 354,66.
No dia 28.10.2008 a Ré foi declarada insolvente, tendo-lhe sido nomeado administrador da insolvência.
A A. reclamou na insolvência créditos sobre a massa no valor de € 1.063,98, acrescido de juros, referente a rendas não pagas.
O administrador da massa não denunciou o contrato de arrendamento, mantendo as obrigações contratuais do arrendamento (art. 108.º/ do CIRE).
Cabia ao administrador da massa efectuar mensalmente o pagamento das rendas que se vencessem após a declaração de insolvência, o que não foi feito, encontrando-se em dívida as rendas vencidas desde 01.11.08 a 01.04.09, no montante de € 2.127,96, já deduzida a retenção legal na fonte.
A falta de pagamento das rendas é fundamento da resolução do contrato de arrendamento (art.s 14.º do NRAU, 1038.º-a), 1083.º/2 e 3 e 1047.º do CC).

A Ré foi citada na pessoa do administrador da insolvência, não tendo contestado.

Foi proferida sentença na qual se consideraram confessados os factos articulados na petição inicial, por força do preceituado no art. 484.º, n.º 1, do CPC e, atento o disposto no art. 15.º do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, aderiu-se à fundamentação de facto e de direito expendida na petição inicial, e julgou-se a acção provada e procedente e:
- declarou-se resolvido o contrato de arrendamento objecto da acção;
- condenou-se a Ré a entregar o imóvel arrendado à Autora, desocupado e no estado próprio de uma prudente utilização até à data de trânsito em julgado da sentença;
- condenou-se a Ré no pagamento à Autora da quantia de € 2.127,96 (dois mil cento e vinte e sete euros e noventa e seis cêntimos), deduzida da retenção na fonte que seja devida no momento do pagamento (IRC);
- condenou-se a Ré no pagamento à Autora das quantias mensais equivalentes à renda, no valor de € 417,25, que se vencerem no dia do mês em que se venciam as rendas, desde a data da propositura da acção até à entrega efectiva do locado, deduzida da retenção na fonte que seja devida no momento do pagamento (IRC).

II.
Inconformada, a Ré recorreu, concluindo:

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A apelada contra-alegou, pedindo a confirmação da sentença.

Cumpre decidir.

Questões suscitadas na apelação:
- nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à incompetência do Tribunal a quo e competência do Tribunal do Comércio que decretou a insolvência, de conhecimento oficioso;
- resolução do contrato de arrendamento só opera se o administrador da insolvência optar pela denúncia (art. 109.º do CIRE);
- erro na forma do processo;
- pedido de apensação da acção ao processo de insolvência;
- princípio da igualdade dos credores.

III.
Os factos com interesse são os que supra se deixaram descritos quanto aos fundamentos da A. e ainda:
No dia 22.05.2009, o administrador da insolvência dirigiu ao Sr. Juiz do ..º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, onde foi declarada a insolvência da Ré em 20.10.2008, o requerimento certificado a fls. 63, dando conhecimento da instauração desta acção em 06.05.2009, e pedindo a requisição da mesma, suportando-se dos art.s 85.º/2 e 86.º/3 do CIRE.

IV.
A primeira questão suscitada pela apelante é a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia quanto à competência territorial do tribunal para esta causa que, no seu entender, é o Tribunal do Comércio de Gaia, onde foi declarada a sua insolvência.
A competência territorial para o processo de insolvência está regulada no art. 7.º do CIRE, embora seja de salientar que o art. 8.º do Diploma Preambular (DL 53/2004, de 18.03) alterou o art. 89.º/1-a) da LOFTJ, passando a restringir a competência do tribunal de comércio para o processo de insolvência aos casos em que o devedor seja uma sociedade comercial ou a massa insolvente integre uma empresa, pelo que, nos demais casos, a competência pertence ao tribunal comum (Menezes Leitão, Cód. da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 4.ª ed., p. 57).
Mas uma coisa é a competência territorial para o processo de insolvência e outra para uma acção de despejo contra uma sociedade declarada insolvente, cujo fundamento é a falta de pagamento das rendas a contar a declaração da insolvência, visto o administrador não ter denunciado o contrato de arrendamento.
Apesar de entendermos que não se está, propriamente, perante uma incompetência relativa (territorial), começaremos por analisar o tema sob esse aspecto.
O conhecimento oficioso da incompetência relativa encontra-se circunscrito às hipóteses versadas nos n.ºs 1 e 2 do art. 110.º do CPC.
A apelante invoca a alínea c) do n.º 1, que estabelece que ela deve ser conhecida pelo tribunal, oficiosamente, naturalmente desde que os autos forneçam os elementos necessários, nas causas que, por lei, devam correr como dependência de outro processo.
Assim, para concluir pela obrigação de conhecimento oficioso desta incompetência, necessário se torna saber se ela ocorre, isto é, se este despejo devia correr como dependência do processo de insolvência.
A declaração de insolvência tem efeitos processuais que atingem processos que, sendo exteriores ao processo de insolvência, são relevantes para a massa insolvente e que têm subjacente o princípio da par conditio creditorum, dirigido a impedir que algum credor possa, por via distinta do processo de insolvência, obter uma satisfação mais rápida ou mais completa, em prejuízo dos restantes credores.
Daí que haja lugar à apensação desses processos (artºs 85º/ 1, 86º/ 1 e 2 e 89º/ 2), bem como à impossibilidade de instauração e à suspensão de certas acções (artºs 88º/ 1, 89º/ 1, 87º/ 1 e 88º/ 1, todos do CIRE).
Estabelece o artº 85º/ 1 que, declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para aos fins do processo.
Visa-se atrair para o processo de insolvência todas as acções em que se debatam interesses patrimoniais do insolvente, por forma a satisfazer com um único processo a totalidade dos créditos de todos os credores, em obediência ao princípio acima enunciado.
No entanto, a apensação dessas acções depende do requerimento do administrador de insolvência e a oportunidade da apensação é aferida, não só em função da conveniência para a liquidação, como em função da conveniência para os fins do processo.
Oficiosamente, apenas são apensadas ao processo de insolvência as acções em que se tenha efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente (nº 2 do citado artigo).
É ao juiz da insolvência que cabe decidir da apensação de uma determinada acção ao processo de insolvência.
Na hipótese do nº 1, controlando a verificação dos requisitos ali previstos e decidindo, em conformidade, o requerimento do administrador; na do nº 2, oficiosamente.
Ao juiz da acção instaurada contra o insolvente cabe apenas, conhecida a insolvência, informar o juiz da insolvência da pendência da acção e remetê-la se tal lhe for solicitado.
Na 2.ª hipótese mencionada é admissível a remessa da acção ao processo de insolvência por iniciativa do juiz do processo a apensar, já que o requisito de que depende a apensação tem carácter objectivo – a apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente.
Mas essa remessa está excluída na situação prevista no nº 1, porquanto a apensação está dependente de requisitos de oportunidade e de conveniência, cuja verificação cabe, apenas, ao juiz da insolvência (Acórdão desta Relação de 10-09-2009, proc. 133/09.8TRPRT, www.dgsi.pt).
Fora de questão, está, pois, in casu, a remessa oficiosa do processo ao tribunal da insolvência, ao abrigo do n.º 2 do art. 85.º, já que estamos perante uma acção de despejo da insolvente, não havendo lugar a actos de apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente.
Assim, só ao abrigo do n.º 1 podia o tribunal da insolvência requisitar esta acção, sendo certo que o não fez, apesar de o administrador da insolvência o ter solicitado.
Mais certo, ainda, que não sendo pedida a remessa pelo tribunal da insolvência, como a mesma não é oficiosa, o tribunal onde corre a acção mantém a competência relativa (territorial) para nele continuarem os autos.
São indiferentes as razões que levaram o tribunal da insolvência a não requisitar esta acção (por isso não pedimos a informação pretendida pela apelante no fim das conclusões apelatórias). Só temos que nos ater a que a acção não foi requisitada para apensação pelo tribunal a quem isso era permitido.
E só se o tivesse sido é que o Tribunal a quo deixaria de ser competente para nele se processar o seu andamento.

Sem prejuízo do que foi dito por referência ao art. 85.º, entendemos que se está perante uma incompetência absoluta e não relativa, em razão da matéria (art. 101.º do CPC).
Torna-se necessário, primeiramente, definir se as rendas em dívida desde a declaração da insolvência constituem um crédito sobre a insolvência ou uma dívida da massa insolvente, dado isso ter implicação directa na competência material, atento o disposto no n.º 2 do art. 89.º do CIRE.
Entendemos tratar-se de uma dívida da massa insolvente, porque a A. exercita um direito relacionado com a manutenção do contrato de arrendamento pelo administrador da insolvente, que o não denunciou, como podia fazer (art. 108.º/1), e com o não pagamento da contraprestação devida pela disponibilização do locado, as rendas que, assim, constituem dívidas da massa (n.º 3 do art. 108.º, a contrario, e art. 51.º/1-c), d) e e)).
Menezes Leitão, o. c., p. 102, afirma que outra categoria de dívidas da massa insolvente corresponde às obrigações resultantes de contratos cujo cumprimento não seja recusado ou seja judicialmente exigido pelo administrador da insolvência (n.º 1-e), f) e g) do art. 51.º e 102.º e ss.), solução que se justifica em ordem a evitar que à outra parte seja exigido o cumprimento da sua obrigação quando ela não tem quaisquer perspectivas de receber a sua contraprestação.
Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, I, p. 242, dizem que o legislador entendeu ser excessivamente oneroso para a contraparte do insolvente exigir-lhe o cumprimento do contrato nos termos acordados, mas sujeitando os créditos para ele advenientes ao regime geral da insolvência. Se o administrador está impedido de recusar o cumprimento, estamos claramente em presença de um dispositivo de protecção da contraparte a que só pode razoavelmente corresponder um crédito sobre a massa.
Por outro lado, continuam, “se há o direito de optar entre o cumprimento e a resolução – e nesta eventualidade apenas poderia haver lugar a indemnização da contraparte como crédito sobre a insolvência –, é de crer que se o administrador seguiu o primeiro caminho é porque isso é útil para a generalidade dos credores, o que significa comportar algum ganho para a massa ou evitar-lhe alguma perda, visto o negócio na sua globalidade.
Mas, se é assim, então parece justo que a massa cumpra também, pronta e prioritariamente, as obrigações que são, afinal de contas, a contrapartida da prestação do terceiro.”
Ora, dispõe o art. 89.º/2 do CIRE que estas acções correm por apenso ao processo de insolvência.
O que determina, não uma competência em razão do território, por até poder suceder que o tribunal competente para decretar a insolvência esteja sediado na mesma circunscrição judicial territorial do tribunal onde foi proposta a acção, mas uma competência em razão da matéria, derivada daquela norma de conexão, que veio estender a competência material do tribunal da insolvência a questões conexas com a verificação dos créditos sobre a massa insolvente.
Apesar de esta acção de despejo revestir a natureza de uma acção autónoma, por força da declaração de insolvência passa a integrar um incidente (em sentido lato) do respectivo processo, sendo chamada para a sua esfera como efeito processual da declaração, passando a integrar de forma dependente os trâmites do próprio processo de insolvência, perdendo autonomia e integrando os procedimentos integrados para liquidação do património do insolvente e pagamento das suas dívidas.
Trata-se de uma competência por conexão (ac. da RC de 17.04.2008, CJ, XXXIII, II, 75 a 77.
Esta extensão da competência, como efeito processual da declaração da insolvência, prevista no n.º 2 do art. 89.º, é obrigatória, excluindo a possibilidade do autor poder optar por um ou outro tribunal (ibid.).
Como se decidiu no acórdão desta Relação de 18-06-2009, proc. 269/07.0TYVNG-O.P1, www.dgsi.pt, as dívidas emergentes de actos de administração da massa insolvente correspondem a dívidas da massa insolvente, nos termos do art. 51º, nº1, al. c), do CIRE e, os créditos a que se reportam essas dívidas (créditos sobre a massa insolvente) não podem ser reclamados pelo meio previsto no art. 128º do CIRE, na medida em que este meio processual apenas se destina à reclamação e verificação dos créditos sobre a insolvência. Assim, se não forem pagos na data do vencimento, em conformidade com o disposto no art. 172º, nº3, do CIRE, terão que ser reclamados em acção própria (declarativa ou executiva) que corre por apenso ao processo de insolvência, nos termos do art. 89º/2, do mesmo diploma. Pelo que o tribunal de comércio (onde corre o processo de insolvência) tem competência para preparar e julgar a referida acção, ao abrigo do disposto no art. 89º/ 1- a) e 3, da LOFTJ (Lei 3/99, de 13.01).
Por isso, a competência material era de atribuir ao Tribunal do Comércio onde pende o processo de insolvência, o que o Tribunal a quo omitiu na decisão proferida, visto na sentença ter lavrado um saneador tabelar, competindo-nos substituí-lo na respectiva apreciação (art. 715.º do CPC).

Seguidamente, afirma a apelante que a sentença ignorou o art. 108.º do CIRE, que apenas admite a resolução do contrato de arrendamento se o administrador da insolvência o entender.
Esta questão também tem de ser tratada, por se prender com a admissibilidade de instauração desta acção.
Não é esse o entendimento que pode extrair-se da norma em causa.
Refere Menezes Leitão, o. c., p. 148, que no caso do locatário ser o insolvente, a lei admite que o administrador possa denunciar o contrato, salvo se se tratar de arrendamento para habitação, em que apenas se pode excluir do processo de insolvência o direito ao pagamento de rendas vencidas. Em caso de denúncia, o locador fica com o direito a receber, como crédito sobre a insolvência, a indemnização dos prejuízos que lhe causou a antecipação do fim do contrato.
Aquilo que o senhorio não pode, é resolver o contrato com fundamento no não pagamento de rendas anteriores à declaração de insolvência (n.º 4), o que o autor citado acha criticável.
Vejam-se, também, Carvalho Fernandes e João Labareda, o. c., p. 411.
Acontece que a A. apenas invoca as rendas em dívida a partir da declaração de insolvência, já que as anteriores foram reclamadas oportunamente na insolvência.
Pode, pois, instaurar esta acção.

A apreciação das demais questões fica prejudicada.

Formulam-se o seguinte sumário:
- Optando o administrador da insolvência pela manutenção do contrato de arrendamento em que o insolvente é arrendatário, as rendas vencidas desde a declaração da insolvência constituem dívidas da massa insolvente (art. 51.º/1-d) e f) do CIRE.
- A acção intentada pelo senhorio com vista à resolução do contrato de arrendamento e à cobrança dessas rendas corre por apenso ao processo de insolvência, nos termos o art. 89.º/2 do mesmo diploma legal, sendo o tribunal onde este corre materialmente competente para o efeito.

Face ao exposto, julga-se a apelação procedente e revoga-se a sentença, declarando-se o Tribunal a quo absolutamente incompetente, em razão da matéria, por competente o Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia.
Visto o disposto pelo n.º 2 do art. 105.º do CPC, não se decreta a absolvição da Ré da instância, que também não foi pedida, nem a remessa dos autos ao Tribunal de Comércio, por a mesma não poder ser pedida pela Ré, mas sim pela A., determinando-se que a 1.ª instância proceda em conformidade com essa norma.

Custas pela apelada.

Porto, 3 de Dezembro de 2009
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
José Manuel Carvalho Ferraz