CONTRATO DE ARRENDAMENTO
NULIDADE
FALTA DE LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
CULPA IN CONTRAHENDO
Sumário

I – Na vigência do RAU, a falta da licença de utilização do local arrendado não determinava a nulidade do contrato de arrendamento, nem a licença é exigível tratando-se de prédios construídos antes da data da entrada em vigor do RGEU, aprovado pelo DL nº 38383, de 07.08.51.
II – Não há abuso do direito se o seu titular o exerce para o fim para que a lei o atribuiu nem contraria conduta sua anterior que justifique legítima confiança na outra parte no sentido do não exercício na forma adoptada.
III – Se o arrendatário conhecia perfeitamente o local arrendado, à data da celebração, não pode invocar a culpa “in contrahendo” do senhorio (que garantiu que o local tinha todas as condições para, aí, ser desenvolvida a actividade visada), para peticionar a indemnização por obras feitas necessárias para adaptar o local ao exercício dessa actividade.
IV – Se o arrendatário ocupa o local arrendado, entregue pelo senhorio, não pode deixar de pagar a renda baseando-se na inexistência da licença de utilização, ao menos quando a falta desta não impediu o gozo do local arrendado.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1) – A) B………., C………. e D………., o primeiro com domicílio na Rua ………., …, ……, e os outros com domicílio no ………., ., no Porto, instauraram acção declarativa ordinária contra “E………., L.DA” e F.………, aquela com sede na Rua ……., …, ………., e este com domicílio na Rua ………., …, ………., em Vila Nova de Gaia, alegando que deram de arrendamento à R. metade do R/C do prédio sito na Rua ………., …, Gaia, para o exercício da actividade de estação de serviço, lavagem e manutenção automóvel, pelo prazo de um ano e com início em 01 de Setembro de 2003, mediante a renda anual de € 15.000,00, a ser paga em duodécimos de € 1.250,00, no primeiro dia do mês anterior ao que respeitasse.

A Ré apenas pagou as rendas relativas aos meses de Setembro e Outubro de 2003, não tendo pago qualquer uma das subsequentes, no valor global, até á data da proposição, de € 7.500,00, pelo que existe fundamento para a resolução do contrato.

O Réu constituiu-se fiador de todas as obrigações da ré emergentes do contrato, nomeadamente o pagamento das rendas.

Terminam a pedir:
1) que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento e a Ré condenada a despejar imediatamente o arrendado e entregá-lo, livre de pessoas e coisas, aos AA. e
2) que sejam os RR. condenados a pagar aos AA. as rendas vencidas e não pagas, que ascendem, até à propositura, a € 7.500,00, e vincendas até efectiva entrega da fracção aos AA., acrescida de juros moratórios à taxa legal, vencidos e vincendos até integral pagamento da dívida e que, até à propositura, perfazem a quantia de € 76,00, tudo no total de € 7.576,00 e
subsidiariamente,
3) que sejam os RR. condenados a pagar aos AA. as rendas vencidas e não pagas e vincendas até ao trânsito em julgado da decisão que ponha termo à presente acção, acrescidas de indemnização igual a 50 % desse montante, anos termos do artigo 1041.º, n.º 1 do Código Civil -, num total, até à data da proposição, de € 11.250,00.

B) Citados, os RR contestaram e deduziram reconvenção. Dizem que na data da celebração do contrato, os AA informaram os RR que o local tinha todas as condições para aí ser desenvolvida a actividade de estação de serviço, lavagem e manutenção automóvel, garantiram que o mesmo estava licenciado para essa actividade, como tinha ligação de água e luz, e garantiram que o locado se encontrava em bom estado d conservação, sendo com base nesses pressupostos que o contrato foi celebrado e que, desde logo, a ré iniciou a realização de obras de adaptação para aí exercer a actividade a que o locado se destinava.

No entanto veio a verificar-se que no locado não existia ligação de corrente eléctrica nem de água, não se encontrava em condições de nele se exercer a actividade a que se destinada o local, como inexistia licença de utilização, o que permite à ré resolver o contrato e exigir indemnização do senhorio.
O que legitima a recusa da ré pagar as rendas acordadas, enquanto os AA não assegurando o gozo da coisa para o fim que se destinava.

A ré realizou diversas obras de adaptação bem como de reparação para colocar o locado em condições de nele exercer a actividade a que se destinava.

Na execução de obras, por o locado não ter as condições asseguradas pelos AA e instalar equipamento no interior do locado e viu-se impedida de exercer a actividade.
Sofreu prejuízos de € 70.000,00 e viu prejudicada a sua imagem e bom nome junto dos clientes.

Conclui, pedindo:
a) a improcedência da acção,
b) a procedência da reconvenção e, por essa via, a condenação dos AA a pagarem à ré:
- a quantia de € 70.000,00, por danos patrimoniais,
- a quantia de € 10.000,00 por danos não patrimoniais,
- juros à taxa legal, sobre esses valores, desde a “citação até efectivo e integral pagamento e
- ser reconhecido à ré o direito de retenção sobre o locado até efectivo integral pagamento.

C) Os AA replicaram. Impugnam o alegado pelos RR quanto às condições do locado e garantias dadas pelos AA, que apenas se comprometeram a pagar a ligação de água e energia eléctrica, como vieram a fazer.
O prédio não tem licença de habitabilidade e está da mesma dispensado, por inscrito antes de 1951 e os RR conheciam perfeitamente o arrendado aquando da celebração do contrato, que utilizaram e continuam a utilizar o locado para a sua actividade.
E nos termos contratuais, a ré não tem direito a indemnização pelas obras eventualmente realizadas.
Pedem a procedência da acção e a improcedência da reconvenção.

D) E, alegando que os RR continuam a não pagar a renda, os AA requereram que fosse decretado o despejo imediato.

Respondendo a esta última questão, os RR pedem se indefira o requerido.

O despejo imediato veio a ser decretado por acórdão deste tribunal da Relação, decisão que foi mantida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Tendo sido emitidos os mandados para despejo, veio o locado a ser entregue pela Ré aos AA, conforme fls. 321/322.

E) Foi proferido despacho saneador a julgar a instância válida e regular, após o que foi selecciona a matéria de facto, fixando-se os factos assentes e organizando-se a base instrutória (fls. 238/242), com reclamação dos AA que foi desatendida.

F) Realizada a audiência de discussão e julgamento, e decidida a matéria de facto provada e não provada, foi proferida sentença que, julgando a acção procedente a reconvenção improcedente, condenou os RR a “pagar aos AA. as rendas vencidas e não pagas, que ascendem, até ao momento, a € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), e vincendas até efectiva entrega da fracção aos AA., acrescidas de juros moratórios à taxa legal, vencidos e vincendos até integral pagamento da dívida e que até ao momento perfazem a quantia de € 76,00 (setenta e seis euros), tudo no total, até ao momento, de € 7.576,00 (sete mil, quinhentos e setenta e seis euros)”.

2) – Inconformados com a sentença, recorrem os RR.
Alegando, concluem doutamente:

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Os apelados respondem pela confirmação da sentença.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

3) – São os seguintes os factos provados:
A) O primeiro A. é usufrutuário de metade e os segundo e terceiro AA. são donos e legítimos proprietários da outra metade, do prédio sito na Rua ………., nº …, na freguesia de ………., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº 02184, e inscrito a seu favor – (A)[1].
B) Este prédio está inscrito na matriz predial urbana do concelho de Vila Nova de Gaia, da freguesia de ………., sob o artigo 31 – (B).
C) Em 6 de Agosto de 2003, os AA. deram de arrendamento à R., que por sua vez o tomou de arrendamento, metade do rés-do-chão do prédio identificado supra, por contrato celebrado por escrito particular – (C).
D) O “contrato de arrendamento” foi celebrado pelo prazo de um ano, tendo o seu início em 1 (um) de Setembro de 2003 e renovando-se, portanto, em 1 (um) de Setembro de cada ano subsequente – (D)
E) O arrendado destinava-se ao exercício da actividade de estação de serviço, lavagem e manutenção automóvel – (E).
F) A renda anual acordada foi de € 15.000,00 (quinze mil euros), a ser paga em duodécimos mensais de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros) cada, no primeiro dia útil do mês anterior aquele a que respeitasse, na ………., nº … – .º, Sala .., na freguesia de ………., Vila Nova de Gaia – (F).
G) A renda inicialmente acordada mantém-se nos € 15.000,00 anuais, a pagar em duodécimos mensais de € 1.250,00 – (G).
H) Até hoje, a R. apenas pagou as rendas relativas aos meses de Setembro e Outubro de 2003 – (H).
I) E não efectuou o pagamento da renda relativa ao mês de Novembro de 2003 – (I).
J) Até hoje, não mais efectuou o pagamento de qualquer renda, relativa aos meses subsequentes – (J).
K) O R. constituiu-se fiador de todas as obrigações da R. previstas no contrato de arrendamento, incluindo a de pagamento das rendas. A fiança foi prestada no próprio contrato de arrendamento – (K).
L) O prédio em causa não tem licença de habitabilidade – (L).
M) Na data da celebração do contrato os Autores informaram detalhadamente a Ré e o Réu que é seu gerente que o local tinha todas as condições para aí ser desenvolvida a actividade de estação de serviço, lavagem e manutenção automóvel – (1)[2].
N) Antes de celebrado o contrato de arrendamento o R. deslocou-se ao local – (2).
O) O contrato foi celebrado e a Ré desde logo iniciou obras para adaptar o locado ao fim a que o destinava – (4).
P) Por cartas enviadas a 20 e 27 de Outubro, de 2003 a Ré informou os Autores dos prejuízos emergentes da situação, solicitando o seu pagamento – (11).
Q) A Ré deixou de pagar a renda – (12).
R) A Ré suportou os custos da ligação ao local de um ramal de electricidade – (13).
S) A R. teve de adquirir uma bomba para retirar água do poço e, posteriormente, teve que suportar a ligação do ramal da água – (14).
T) A R. efectuou obras de electricidade e de água – (15).
U) A R. alterou o sistema eléctrico e de canalizações – (16).
V) A R. procedeu à pintura do interior – (17)
W) Aquando da assinatura do primeiro contrato referido pelo R, com G………., foi-lhe entregue a chave do arrendado para os aqui RR. fazerem as obras de adaptação do arrendado à actividade a exercer – (24)
X) A renda desse mês (Agosto de 2003) não foi paga pela primeira R. por acordo entre as partes, sendo acordado que a renda começaria a ser paga a partir do mês de Setembro de 2003 inclusive – (25).
Y) Os AA. informaram os RR. que as ligações de águas e energia eléctrica provinham do vizinha do lado, o qual é inquilino dos. AA. – (26).
Z) Os AA. apenas acordaram em pagar as despesas com as ligações de águas e energia eléctrica, e apenas estas despesas iniciais específicas – (27)
AA) Estas despesas de ligação foram efectivamente pagas pelos AA., através de cheque emitido para o efeito pelo primeiro A. – (28).
AB) O prédio em causa foi inscrito na matriz antes do ano de 1951, mais propriamente em 1937 – (29).
AC) Os RR. conheciam perfeitamente o arrendado aquando da celebração do contrato de arrendamento – (30).

4) - Não impugnada a decisão sobre a matéria de facto, em face do teor das conclusões de recurso, e atento o disposto no artigo 684º/3 do CPC (na redacção anterior à introduzida pelo DL 303/2007), cumpre apreciar as questões suscitadas, a saber: - nulidade da sentença,
- nulidade do contrato de arrendamento,
- a resolução,
- abuso do direito e responsabilidade pré-contratual,
- obrigação de indemnização à apelante,
- indevida condenação no pagamento das rendas,

5) – Como se expressa na sentença, não se conheceu das pretensões dos AA formuladas em 1) do petitório - resolução e despejo – por, em face do decidido quanto ao despejo imediato (procedente e sequente entrega do locado), se considerar o conhecimento daquelas prejudicado. Posição que nenhuma discordância suscitou.

5.1) – Começando pela apreciação da questão da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, que os apelante situam no facto de tendo suscitado, na contestação – dizem -, a nulidade do contrato por o locado não ter licença de utilização, sobre tal matéria nenhuma pronúncia existiu na sentença.

É nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar …” - artigo 668º/1, alínea d), do CPC.
A nulidade prevista nesse preceito constitui uma sanção para a violação do disposto no artigo 660º/2 do CPC, que impõe ao juiz o dever de conhecer de todas as questões submetidas pelas partes à sua apreciação, a não ser que o conhecimento de umas esteja prejudicado pela decisão de outra/s (pois, nesse caso, seria uma apreciação inútil, sem efeitos, e o tribunal não deve praticar actos inúteis).
A causa deve ser julgada nos limites definidos pelas partes (arts. 3º/1 e 264º/1 do CPC), havendo omissão de pronúncia quando o juiz deixa de proferir decisão sobre questão que devia resolver (ou aprecie questão não suscitada, salvo se do conhecimento oficioso).
Mas a nulidade só ocorre se deixar de apreciar-se alguma questão, e não quando se deixe de apreciar alguma das razões ou argumentos aduzidos pelas partes para motivar as suas pretensões[3].

Os apelantes afirmam a nulidade da sentença por, nela, não haver pronúncia sobre a nulidade do contrato, que dizem ter invocado.
Na sentença inexiste qualquer referência à validade/invalidade do contrato de arrendamento, pelo que, a ter a questão sido suscitada na contestação, como referem os apelantes, haveria omissão de pronúncia.
Nem a questão ficaria prejudicada pelo facto de ter-se considerado prejudicado o conhecimento das pretensões referidas em 1) do petitório.

Sucede que, percorrendo a contestação, não se detecta que a nulidade, qualquer que fosse o fundamento, tenha sido arguida pelos apelantes.
O que os mesmos suscitaram foi a excepção de não cumprimento por parte dos AA (não proporcionando o gozo do arrendado à ré) bem como o direito desta resolver o contrato de arrendamento por falta de licença de utilização (cfr. Artigo 40º da contestação/reconvenção e tal como formulam no pedido reconvencional), o que é algo diverso da nulidade (como vício que inquina o negócio, ao contrário da resolução que pressupõe um contrato válido não afectado de nulidade).
Não sendo invocada a nulidade, mesmo que desta o tribunal possa conhecer oficiosamente (a provar-se o circunstancialismo factício que a revele), se sobre ela se não pronunciar o tribunal, não incorre a sentença no vício previsto nesse artigo 668º/1, alínea d), por omissão de pronúncia, que pressupõe que a parte tenha submetido tal questão à sua apreciação.
Improcede a questão.

5.2) – Da alegada nulidade do contrato por falta de licença de utilização.
Atenta a data da celebração do contrato de arrendamento em causa neste processo – 06/08/2003 – e o disposto no artigo 12º/1 e 2 (1ª parte), do CC, as condições de validade substancial e formal desse contrato aferem-se pela lei vigente na data da celebração, que era o RAU, aprovado pelo DL 321-B/90, de 15/10, com as alterações introduzidas pelo DL 64-A/2000, de 22/04, e DL 329º-B/2000, de 22/12. Daí que, para se indagar das condições de validade (substancial e formal) do contrato há que apelar à previsão desses diplomas legais.

Mas os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova e o seu âmbito está delimitado pelo conteúdo do acto recorrido; neles não se apreciam questões novas não submetidas à apreciação do tribunal a quo e que, portanto, sobre as mesmas não poderia debruçar-se sob pena de nulidade da decisão (arts. 668º/1, d) e 660º/2 do CPC), a não ser que se tratasse de questões do conhecimento oficioso.
O tribunal de recurso só pode resolver as questões que lhe sejam submetidas pelo recorrente, invocadas nas conclusões recursórias, mas desde que essas questões tenham sido suscitadas perante o tribunal recorrido e não colocadas ex novo ao tribunal ad quem.
Os recursos são meios instrumentais para o reexame ou reponderação das questões já submetidas à apreciação daquele tribunal e não para proferir decisões sobre questões não submetidas à sua apreciação. Neste sentido, é pacífico o entendimento de que não é admissível nas alegações de recurso suscitar-se questões ou meios de defesa novos, que não hajam sido oportunamente deduzidos perante o tribunal recorrido.

No caso, não foi invocada perante o tribunal de primeira instância a questão da nulidade do contrato de arrendamento, e de uma tal nulidade também o tribunal não conheceu. Consequentemente, sendo questão nova, dela não haveria que tomar–se conhecimento.

Porém, tendo sido alegada e provada a matéria em que, no recurso, os apelantes fundam a nulidade, e a entender-se devido o conhecimento, por a nulidade ser vício do conhecimento oficioso (artigo 286º do CC), faz-se a apreciação que se segue.

A exigência de licença de utilização – documento administrativo (a ser emitido pela respectiva autoridade municipal) que certifica (ou devia certificar…) a conformidade da construção com o respectivo projecto (e com vista à salvaguarda das condições de salubridade, higiene, segurança e estética dos edifícios – protegendo, em geral, qualquer usuário dos mesmos e não especialmente os inquilinos) - acontece com a entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU - aprovado pelo DL 38383, de 07/08/1951) que a prevê no seu artigo 8º.
Com o artigo 1º do DL 329/81, de 4/12, para a celebração de escrituras de arrendamentos comerciais, passou a ser exigida a apresentação da “licença camarária donde conste ser essa a finalidade do imóvel ou que autorize a mudança de finalidade” (e no sentido da necessidade da menção, nos contratos de arrendamento para habitação, da licença de utilização, quando exigível, o artigo 2º/1, alínea e), do DL 13/86, de 23/1).
Com a entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL 321-B/90, de 15/10, passou a exigir-se (a partir de 01/01/1992 – artigo 2º/2 desse DL) que, no contrato de arrendamento Urbano, quando o objecto ou o seu fim o implique, a menção da existência da licença de utilização [(artigo 8º/2, alínea c)], seja para arrendamentos comerciais ou habitacionais. Por usa vez, determinava o artigo 9º/1 que “só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim d pretendido seja atestado pela licença de utilização, passada pela autoridade municipal competente, mediante vistoria realizada menos de oito anos antes da celebração do contrato”.

Dispunha o artigo 9º/4 do RAU que “a existência de licença de utilização bastante ou, quando isso não seja possível, do documento comprovativo da mesma ter sido requerida, deve ser referida no próprio texto do contrato nos termos do nº 2, alínea c), do artigo anterior, não podendo ser celebrada qualquer escritura pública de arrendamento sem essa menção”. A falta de licença só obstava à outorga da escritura pública. Com o DL 6-A/2000, de 22/4, este nº4 passou a ter a redacção “a existência de licença de utilização bastante ou, quando isso não seja possível, do documento comprovativo da mesma ter sido requerida, deve ser referida no próprio texto do contrato, nos termos da alínea c), do nº2, do artigo anterior, não podendo ser celebrado qualquer contrato de arrendamento sem essa menção”.
As sanções para a violação do disposto nos nºs 1 a 3 desse artigo constam nos seus nºs 5 a 7 e destes não resulta que tal violação implicasse sempre a nulidade do contrato, o que redundaria em benefício do senhorio, precisamente quem daria causa à nulidade (já que a falta de licença de utilização é-lhe imputável) e frustraria o carácter vinculístico que tinham os arrendamentos em consideração.
A menção da licença destina-se a verificar se há (porque deve haver), coincidência entre a finalidade do imóvel constante da licença de utilização e o fim convencionado do arrendamento, acautelando a conformidade do uso efectivo do imóvel com o previsto nas normas regulamentares aplicáveis.
A falta de licença de utilização só implicava a nulidade do contrato na situação prevista no artigo 9º/7 do RAU, isto é, quando fosse celebrado contrato de arrendamento para fim diverso da habitação se o local estivesse licenciado apenas para habitação (em conformidade com o nº 3 desse artigo).
Fora esse caso, a inexistência da licença de utilização apenas tinha os efeitos previstos nos nº 5 e 6 desse mesmo artigo – sujeição do senhorio a uma (pesada) coima, direito do inquilino resolver o contrato com direito a indemnização (nos termos gerais) ou direito do inquilino requerer a notificação do senhorio para realizar as obras necessárias (com vista ao licenciamento), com a manutenção da renda inicialmente fixada.
Para a falta desse requisito formal outras eram as consequências previstas na lei, que constam dos nºs 5 e 6 desse artigo. Caso contrário, e face ao que consta no nº 7, se outro fosse o entendimento da lei, não deixaria de o expressar, como o fez para essa situação. E a previsão da resolubilidade pelo arrendatário revela que o contrato não é nulo mas válido e eficaz.
A falta de licença de utilização não determinava a nulidade do contrato[4], mas a possibilidade de resolução, e foi nesta perspectiva que os RR assentaram na contestação/reconvenção (conforme pedido nesta formulado) mas na apelação desviam-se na direcção da nulidade, o que não sucede com o contrato em causa.

5.3) – Do direito de resolver o contrato. Sendo exigível a licença de utilização, pelo que se estatui no artigo 9º/6 do RAU, teria o inquilino (a apelante) o direito à resolução (com direito a indemnização, nos termos gerais – o que implicava a alegação e prova dos prejuízos sofridos por causa da falta de licença), direito invocado na contestação.
A licença de utilização de qualquer edificação nova, reconstruída, ampliada ou alterada passou a ser exigida (apenas) com o DL 38.382, de 7/8/1951, só sendo obrigatória para as edificações posteriores à sua entrada em vigor. As construções existentes, nessa data, não ficaram abrangidas por tal determinação, o que só viria a suceder quando e se fossem reconstruídas, ampliadas ou alteradas. Daí que a menção da existência (e a existência) da licença só é obrigatória para as edificações posteriores à entrada em vigor desse diploma, uma vez que só então se tornou obrigatória tal certificação pela autoridade municipal.
De modo que, no regime actual, expressamente se consigna que a aptidão dos locais arrendados deve ser atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível (artigo 1070º do CC (na redacção da Lei 6/2006, de 27/02), o que não acontece com os edifícios construídos antes da entrada em vigor do RGEU, aprovado pelo já referido DL 38.3823, conforme artigo 5º/2 do DL 160/2006, de 8/8, assim resolvendo quaisquer dúvidas que, nesse âmbito, pudessem subsistir.
Na situação, vem provado que o prédio, em que se integra o locado, foi construído em 1937 [(alínea AB) da matéria de facto)], pelo que não era exigível a licença e, consequentemente, a sua menção no contrato. Não se impunha, pois, na vigência do RAU, demonstrar-se a existência da licença e, portanto, a não exigência da sua menção no documento que titula o contrato.
Aliás, também não atesta a factualidade provada que a ré ficasse, por tal razão, impossibilitada de exercer a sua actividade ou mesmo que tivesse alguma dificuldade nesse exercício, por tal motivo.
Consequentemente, o contrato celebrado não enferma, no aspecto que se vem analisando, de vício que importasse a sua invalidade como também, no contexto do cosmos factual provado, não ocorre fundamento para a resolução do contrato.
Constituindo esta uma destruição da relação contratual, por vontade unilateral de uma das partes, assente em fundamento, constante da convenção ou da lei (já que a resolução deve ser motivada e não discricionária – artigo 432º/1 do CC), no caso, apelando-se à inexistência da licença de utilização para a resolução (sem que desta decorresse necessariamente a desoneração do pagamento das rendas pelo inquilino), tal facto, na realidade verificado, não faculta à ré o direito resolver o contrato, pois que não era exigida a licença de utilização (para certificar a conformidade da construção com o projecto ou a idoneidade do prédio ou de sua fracção autónoma para o fim a que se destina). Improcede a questão.

5.4) – Do invocado abuso do direito e responsabilidade pré-contratual.
A) Do que se depreende da alegação (e conclusão IX), os apelantes situam o abuso na exigência das rendas, por parte dos apelados, quando estes bem sabiam – dizem – da irregularidade formal de que o contrato padecia.
O abuso do direito (artigo 334º do CC) como válvula de segurança para sancionar condutas antijurídicas (“violações chocantes do direito”) só justifica intervenção se por outro modo não é possível reprovar tais condutas e, por outro lado, a censura de certa actuação, como abusiva, importa um manifesto ou inequívoco excesso, ou seja, que esse exercício ofenda ostensivamente o sentimento jurídico prevalecente na colectividade ou o sentimento jurídico socialmente dominante, e não apenas que do exercício de um direito subjectivo possam resultar prejuízos para outrem.
O direito é exercido abusivamente quando visa finalidade diversa do fim da sua atribuição pelo direito objectivo, de modo que apenas formalmente com este se conforma. É que os direitos subjectivos são atribuídos com determinada finalidade, como meios ou instrumentos de satisfação de interesses ou necessidades pessoais. Se não é essa a finalidade que preside ao seu exercício, significa que o titular não está a exercê-lo de acordo com a lei e, havendo prejuízo para terceiro, nessa situação, pode ser sancionada a sua actuação, nomeadamente ver recusado o objectivo visado com essa concreto exercício.
Com a censura do exercício abusivo do direito não se visa suprimir o direito, mas impedir que o respectivo titular o exerça numa direcção ilegítima. O que se procura é que o titular do direito o exerça em termos adequados a “um salutar equilíbrio de interesses, requerido pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito”.
Uma da formas mais expressivas do abuso do direito reside na adopção de condutas contraditórias ou no chamado venire contra factum proprium, em que um sujeito de direito, adoptando determinada conduta vinculante quanto ao modo de agir futuro, geradora de legítima confiança na contraparte, e que, por isso e de boa fé, investe nessa confiança, programando a sua vida e tomando decisões, vem, no futuro, a adoptar conduta contrária ou diversa daquela que inspirou essa legítima confiança. Mas a confiança digna de tutela tem de basear-se em “algo de objectivo: numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como tomada de posição vinculante em relação a data situação futura”[5]. Daí que ofende a boa fé a conduta daquele que, adoptando na relação determinada posição vinculante quando ao modo de agir futuro, vem a actuar contrariamente a essa posição, frustrando as legítimas expectativas da outra parte que adquiriu convicção fundada de que aquele não viria a adoptar conduta contraditória.

Na situação em análise, os apelados limitam-se a peticionar o pagamento das rendas (fora a questão do despejo, já solucionada), que constituem a contrapartida ou a prestação (da apelante) correspectiva do gozo do locado proporcionado (prestação do senhorio).
Inequivocamente, que a apelante tomou “posse” do imóvel locado e passou a gozá-lo [(tendo, inclusive, realizado obras de adequação ao exercício da actividade prevista na finalidade do arrendamento – ver als. o), t), u), v) e w)]. Do que decorre que, entregando o imóvel à apelante, os apelados proporcionaram-lhe o gozo da coisa locada, a que ficaram adstritos pelo contrato. E nem sequer consta que, nele, a apelante não pudesse exercer a sua actividade (de estação de serviço, lavagem e manutenção automóvel), ou de alguma forma menor fosse o gozo proporcionado por facto dos apelados. Portanto, se o senhorio realizou a sua prestação, tem direito á contraprestação.
Não obstante tudo o que alegou na contestação/reconvenção – excepção de incumprimento, em que não insiste na apelação, dificuldade ou impossibilidade do exercício da actividade (que não se provou) por via da falta de licença de utilização (defesa insubsistente, por ser inexigível essa licença) – a apelante manteve o arrendado em seu poder até que foi forçada a entregá-lo por decisão do tribunal, ocupando-o, sem prestar a contrapartida acordada (o pagamento das rendas), pois se não o usava para o destino contratado é situação que só a si respeita, já que não consta dos factos provados que tenha sido a actuação dos apelados a obstar ao exercício dessa actividade.
Por outro lado, o quadro factual provado também não mostra uma qualquer actuação dos apelantes no sentido de, por qualquer razão, não virem a exigir dos apelantes o pagamento das rendas convencionadas, isto é, uma situação de legítima confiança dos apelantes, assente em conduta dos apelados, juridicamente tutelável.
Daí haver de concluir-se que, ao exigir o pagamento das rendas, os apelados limitam-se a exercer o seu direito, dento dos limites consentidos e de acordo com o fim próprio da sua atribuição pela lei.
O exercício do direito por aqueles não é abusivo.

B) Tanto na constituição das relações entre eles como no desempenho das relações constituídas, os sujeitos de direito devem actuar como pessoas de bem, segundo as regras da boa fé, com honestidade e probidade, evitando causar lesão nos interesses daqueles com quem estabelecem relações.
“Quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte” (artigo 227º/1 do CC). Os deveres inscritos neste preceito não podem afastar ou diminuir a liberdade negocial, desde o início da negociação até à conclusão do contrato (artigo 405º do CC), liberdade esta que não é, por qualquer forma, condicionada por uma actuação segundo as regras da boa fé, que deve estar presente em todas as fases do percurso contratual.
Cai no âmbito desta responsabilidade todo percurso negocial, desde a fase negociatória (do início desta até à emissão das propostas contratuais) à fase da decisão (que decorre entre e emissão dessas propostas e a conclusão do contrato).
A tutela da confiança justifica-se “quando a conduta contrária à “fides” causar ou for susceptível de causar danos a outrem”[6]. E justifica-se a responsabilidade, pelo apelo à culpa in contrahendo, pela cada vez maior tecnicidade e complexidade do processo de formação dos contratos, exigindo a multiplicidade de contactos e informações, de propostas e contrapropostas, que vão criando, à medida que as negociações avançam, uma situação de confiança entre as partes, capaz de, se violada, causar sérios danos a uma delas, que não seria razoável encontrarem-se a descoberto da responsabilidade civil.
A violação das regras da boa fé impostas por esse preceito apenas podem fundar o dever de indemnizar os danos causados á contraparte, e, por regra, o dano indemnizável, nesse caso, respeita ao interesse contratual negativo ou de confiança[7], embora seja justificável a indemnização de todos os danos, nos termos gerais[8], ou seja todos os danos a que se reportam os arts. 562º e seguintes do CC.
Dentro dos deveres impostos pelo princípio da boa fé, no campo da responsabilidade pré-contratual, encontram-se os deveres de informação que “adstringem as partes à prestação de todos os esclarecimentos necessários à conclusão honesta do contrato” e tanto podem ser violados “por acção, portanto com indicações inexactas, como por omissão, ou seja, pelo silêncio face aos elementos que a contraparte tinha interesse objectivo em conhecer”[9]. Sabendo uma das partes de aspectos relevantes para a contraparte se decidir por contratar, ou que influem nessa decisão, como aspectos importantes para a conclusão do negócio, de que esta se não aperceba, recai sobre aquela o dever de informá-la quanto a esses elementos, sob pena de incorrer em responsabilidade pré-contratual (além de poder dar fundamento à contraparte para a anulação do negócio que, eventualmente, se venha a concluir, havendo dolo – artigo 253º do CC – questão não colocada no processo).

Vejamos se haveria razão para o apelo á culpa in contrahendo em ordem a fundar eventual dever de reparação de danos sofridos pela ré/apelante (isto sem analisar a possibilidade da coexistência da responsabilidade pré-contratual e contratual, uma vez que o contrato foi celebrado e, segundo princípio da especialidade, poder entender-se tratar-se já de um problema de incumprimento do contrato e, por isso, de responsabilidade contratual).
Os recorrentes afirmam conduta reprovável dos apelados, na fase das negociais, porque “na data da celebração do contrato os Autores informaram detalhadamente a Ré e o Réu que é seu gerente que o local tinha todas as condições para aí ser desenvolvida a actividade de estação de serviço, lavagem e manutenção automóvel” (alínea M da matéria de facto) e, afinal, o local não dispunha de licença de utilização nem de “outras condições essenciais” ao possível desenvolvimento da actividade dos recorrentes. O que censuram nos apelados é que estes não tenham informado da inexistência da licença de utilização nem que (pelo contrário) o locado não dispunha de outras “condições essenciais” (independentemente de quais? sejam essas condições).
Referiu-se já que a inexistência da licença de utilização, por inexigível, não contende com a validade do contrato nem com a sua subsistência, nem sequer que a sua falta constituísse fundamento para anulação do contrato (questão que os apelantes também não colocaram em qualquer fase do processo), pois nem se provou que fosse elemento determinante da celebração do negócio e/ou que os AA soubessem da essencialidade dessa licença para os RR contratar. Nem sequer consta assente que os apelantes não soubessem que o imóvel não dispunha da licença e seguro é que nem se alega que os AA afirmassem aos RR que o imóvel dispunha de tal licença.
A falta de licença, por inexigível, também nenhuma perturbação de funcionamento da actividade no locado determinaria e, em concreto, os apelantes também não aclaram qualquer perturbação com essa causa.
Na verdade quando se afirma que “o local tinha todas as condições para aí ser desenvolvida a actividade de estação de serviço, lavagem e manutenção automóvel” tem de aceitar-se que nessas condições estão as materiais e as legais. Só que não existe o menor indício que a inexistência da licença de utilização (que não é a mesma coisa que falta de licença) fosse impedimento do pleno exercício da actividade pela ré ou que essa inexistência impeça legalmente a actividade a que se destina o locado, segundo os termos do contrato. Ou que, embora inexigível, a decisão dos RR contratar fosse determinada por desconhecerem a inexistência dessa licença, anotando-se, mesmo, não estar assente um tal desconhecimento.
Deste modo, no que concerne à licença de utilização, se, por um lado, não se dispõe de elementos factuais que nos levem a afirmar que os AA violaram os deveres de informação, na fase negocial do contrato, por outro, temos que, nessa eventualidade, não resulta provado que, por omissão de tal informação, a ré sofresse qualquer dano.

Quanto às demais “condições essenciais” ao exercício da actividade, afirmadas em recurso – que parece limitarem-se ao facto do local se encontrar desprovido de ligações de água e electricidade (conforme alegações), vem provado:
Y) Os AA. informaram os RR. que as ligações de águas e energia eléctrica provinham do vizinho do lado, o qual é inquilino dos. AA.
Z) Os AA. apenas acordaram em pagar as despesas com as ligações de águas e energia eléctrica, e apenas estas despesas iniciais específicas.
AA) Estas despesas de ligação foram efectivamente pagas pelos AA., através de cheque emitido para o efeito pelo primeiro A.
N) Antes de celebrado o contrato de arrendamento o R. deslocou-se ao local.
W) Aquando da assinatura do primeiro contrato referido pelo R, com G………., foi-lhe entregue a chave do arrendado para os aqui RR. fazerem as obras de adaptação do arrendado à actividade a exercer.
AC) Os RR. conheciam perfeitamente o arrendado aquando da celebração do contrato de arrendamento.

Deste excerto factual é forçoso concluir que inexiste qualquer violação do dever de informação sobre as condições do locado para, com base em omissão de informação ou em prestação de informação errada, fundar pretensão indemnizatória dos apelantes contra os Autores. Sem equívocos se mostra provado que aqueles sabiam quais as condições, no que respeita às ligações de água e energia [(als. Y) e AC)] do local arrendado e não se infirma que existissem ligações de água e energia no vizinho do lado (também inquilino dos AA). Como também acordaram com os AA o pagamento dessas ligações ao locado (pagamento que foi por eles efectuado – alínea AA da matéria da facto). De tudo decorre que os RR bem sabiam da situação do local arrendado no que respeita às ligações e electricidade e água.
Como consta da alínea AC) da matéria de facto, “os RR. conheciam perfeitamente o arrendado aquando da celebração do contrato de arrendam”, o que, desde logo, afastaria a pretensão dos apelantes, como induziria conclusão por conduta censurável dos mesmos, quando, com tal fundamento, pretendem desonerar-se do pagamento das rendas. Inexiste fundamento para, por omissão de informação relevante ou prestação de informação inexacta na fase prévia á celebração do contrato, exigir dos apelados qualquer responsabilidade por danos que a apelante haja sofrido.

5.5) – Como já se deixou atrás exposto, não há fundamento para, com base em culpa in contrahendo, os apelantes verem satisfeita pretensão indemnizatória contra os apelados, que aqueles também não delimitam claramente no recurso.
Nem outra causa que obrigue a reparar é alegada ou se provou.
E as obras que se mostram executadas pela ré não são das que devam ser executadas pelo senhorio, como encargo seu, nos termos dos arts. 12º e 13º do RAU.
Acresce que consta do contrato – cláusula 6ª – que todas as obras que o arrendatário executar no local arrendado ficam a fazer parte integrante do mesmo, não podendo o arrendatário pedir qualquer indemnização ou exercer o direito de retenção. Estas obras são as benfeitorias que se integrem no locado, não podendo ser levantadas sem detrimento deste. As demais, que podem ser levantadas, nem se integram no local arrendado (podendo ser levantadas) nem por elas é devida indemnização.
E as obras executadas pela ré, não suportadas pelos AA (que pagaram o custo das ligações de água e energia – alínea AA da matéria de facto), são obras de adaptação do locado à actividade que a ré pretendia exercer [(alínea O) d matéria de facto], obras essas que, como é comum (e à ré não foi locado um estabelecimento comercial “estação de serviço”, mas um espaço ou parte de edifício para a ré aí exercer essa actividade, criando ela mesma um estabelecimento comercial), são da responsabilidade do inquilino, sobre quem recaem as respectivas despesas. Nos contratos de arrendamento para o comércio, de acordo com as práticas correntes ou a normalidade da vida (o que é “do conhecimento geral e do senso comum”), são da responsabilidade do arrendatário as obras de adaptação à actividade comercial que quer exercer, sendo certo que, in casu, não só se não provou obrigação dos AA as executar e, de qualquer forma, foi acordado que pelas obras executadas não era devida reparação à ré, falecendo a sua pretensão indemnizatória.

5.6) – O arrendamento é o contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano no todo ou em parte, mediante retribuição (artigo 1º do RAU). Do contrato nascem, como obrigações principais e interdependentes, para o senhorio, a de proporcionar ao arrendatário o gozo da coisa (para o fim convencionado), e para o inquilino, a de pagar a renda acordada. Na espécie, os senhorios cumpriram a sua obrigação, entregando e assegurando à ré o gozo da parte do prédio que lhe arrendaram. Como sinalagma dessa obrigação, cabia à ré a obrigação de pagamento das rendas. Sucede que esta não efectuou essa prestação, pelo que incorreu em mora, estando obrigada ao seu pagamento (tal como o apelante, por via da fiança prestada).
A apelação improcede.

Em conclusão – 1) na vigência do RAU, a falta da licença de utilização do local arrendado não determinava a nulidade do contrato de arrendamento, nem a licença é exigível tratando-se de prédios construídos antes da data da entrada em vigor do RGEU, aprovado pelo DL 38383, de 07/08/1951,
2) Não há abuso do direito se o seu titular o exerce para o fim para que a lei o atribuiu nem contrarie conduta sua anterior que justifique legítima confiança na outra parte no sentido do não exercício na forma adoptada,
3) Se o arrendatário conhecia perfeitamente o local arrendado, à data da celebração, não pode invocar a culpa in contrahendo do senhorio, que garantiu que “o local tinha todas as condições para aí ser desenvolvida a actividade” visada, para peticionar a indemnização por obras feitas necessárias para adaptar o local ao exercício dessa actividade.
4) Se o arrendatário ocupa o local arrendado, entregue pelo senhorio, não pode deixar de pagar a renda baseando-se na inexistência da licença de utilização, ao menos quando a falta desta não impediu o gozo do local arrendado.

6) – Pelo exposto, acorda-se no tribunal da Relação do Porto em julgar apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

Porto, 03/12/2009
José Manuel Carvalho Ferraz
António do Amaral Ferreira
Ana Paula Fonseca Lobo

_________________________
[1] Entre parênteses a alínea correspondente dos factos assentes.
[2] Entre parênteses o número correspondente da base instrutória.
[3] cfr. A. Dos Reis, CPC Anotado, V/58
[4] ver Acs. do STJ, de 10/06/2006, 22/02/07, 19/02/2008 e 29-09-2009, em ITIJ/net, procs.06A2275, 07B281, 08A194 e 1788/07.3TVLSB.S1, respectivamente.
[5] Baptista Machado, “Tutela da Confiança e venire contra factum proprium”, na RLJ, 118/171.
[6] Ver Baptista Machado, na RLJ, ano 117, pág.295.
[7] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, em CCA, I, 3ª ed., 215, e Almeida Costa, na RLJ, 116-206.
[8] Ruy de Albuquerque, em “Da culpa in Contrahendo”.
[9] Ver Menezes Cordeiro, em “Da Boa Fé no Direito Civil”, 583.