SEQUESTRO
CRIME DE EXECUÇÃO PERMANENTE
CONSUMAÇÃO
PRIVAÇÃO DA LIBERDADE
Sumário

O sequestro é um crime de execução permanente que se inicia com a privação da liberdade ambulatória e só cessa no momento em que a pessoa ofendida é definitivamente libertada ou é instaurado procedimento criminal.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1- No Tribunal de Círculo de Leiria, mediante acusação do Ministério Público, foi julgado em processo comum o arguido A, com os sinais do auto, pela prática de um crime de roubo previsto e punido pelos artigos 76, n. 1, 77, n. 1 e 306, n. 1 e 3, alínea b) do Código Penal (de que serão todos os artigos adiante indicados sem menção do diploma a que pertencem), de um crime de sequestro previsto e punido pelos artigos 76, n. 1 e 160, n. 1 e 2, alínea b) e de um crime de evasão previsto e punido pelos artigos 76, n. 1 e 392, números 1 e 2.
Realizada a audiência do julgamento, o Colectivo, face à matéria de facto que considerou provada, decidiu:
- absolver o arguido da prática do crime de evasão;
- condenar o mesmo arguido, como autor material do referenciado crime de roubo, na pena de quatro anos e seis messes de prisão;
- e condená-lo ainda, pelo já identificado crime de sequestro, mas previsto e punível pelos artigos 160, n. 1, 76, n. 1 e 77, n. 1, na pena de dez meses de prisão;
- fixar, em cúmulo jurídico, a pena única de quatro anos e dez meses de prisão, de que declarou perdoado um ano, nos termos do artigo 14, n. 1, b) da Lei n. 23/91, de 4 de Julho. e condenar o arguido nas custas de processo, com os mínimos da taxa de justiça e procuradoria.
2- Recorreram desta decisão o arguido - cujo recurso foi rejeitado em conferência por acórdão de folhas 210 - e o Ministério Público, o qual concluiu, na sua motivação e em síntese, o seguinte:
I- Enquanto com o crime de sequestro se protege apenas a liberdade ambulatória, com o crime de roubo protege-se não só a propriedade como também a detenção de coisas móveis alheias e, em íntima ligação com estes valores, bens jurídicos unicamente pessoais:
II- Protegendo os referidos crimes bens jurídicos completamente diferentes, excluída fica a figura do "concurso aparente";
- Assim, o arguido cometeu, em concurso real, os crimes de roubo e sequestro constantes da acusação (acima referenciados), devendo ser punido, atento o conjunto de circunstâncias ocorrente, em pena não inferior a cinco anos de prisão pelo primeiro, e uma pena não inferior a três anos e três meses pelo segundo, fixando-se a pena única, em cúmulo jurídico, em seis anos de prisão;
- O acórdão recorrido violou os artigos 30, n. 1, 160, n. 2, b) e 72.
Não houve resposta do arguido.

3- Após os vistos legais, realizou-se a audiência pública com observância das formalidades legais, cumprindo agora decidir.
É a seguinte a matéria de facto que o Colectivo considerou provada:
1)- No dia 12 de Abril de 1991, o arguido encontrava-se em cumprimento da pena única de dois anos de prisão aplicada no processo comum n. 259/90 da segunda secção do 3 juízo da comarca de Setúbal;
Tal pena resultou do cúmulo jurídico das penas parcelares de 18 meses de prisão por crime de roubo praticado em 6 de Outubro de 1989 (crime do artigo 306, n. 1) e de 14 meses de prisão por crime de furto qualificado dos artigos 296 e 297, n. 2, alínea c) praticado em 3 de Novembro de 1989;
2)- O arguido encontrava-se sujeito ao regime aberto para o exterior desde 25 de Março de 1991, e trabalhava como electricista para a Câmara Municipal da Batalha e regressava, nos autocarros da Rodoviária Nacional, utilizando um passe fornecido pelo Estabelecimento Prisional Regional de Leiria, onde se encontrava;
3)- O arguido tinha de dar entrada, diariamente, no estabelecimento prisional, onde passava a noite, até às 19.00 horas;
4)- Naquele dia, após ter chegado à «gare» da Rodoviária Nacional, sita na Avenida Heróis de Angola, Leiria, o que aconteceu entre as 17 e as 17.25 horas (a hora não concretamente precisada), o arguido não se dirigiu de imediato para o Estabelecimento Prisional, tendo-se dirigido para as casas de banho daquela "gare", onde entrou;
5)- Cerca das 18.00 horas desse dia, entrou na dita casa de banho B, beneficiário n. 1321827001 da ADSE, id. folhas 6, que se dirigiu para um urinol, ficando de costas viradas para os «compartimentos» existentes na mesma casa de banho;
6)- O arguido, que se encontrava num dos ditos compartimentos, abeirou-se do B, que não se apercebeu da sua aproximação, e passou-lhe o braço pela frente do pescoço, agarrando-o pelas costas, puxando-o contra si e dizendo-lhe que precisava de dinheiro;
7)- O B procurou afastar o braço do arguido do seu pescoço, dando um safanão; o arguido largou-o e, após isso, de imediato, desferiu-lhe um murro (soco no olho direito) produzindo-lhe por esta forma um hematoma na região peripalpebral direita, com equimose subconjuntival ao nível do ângulo externo do mesmo olho; durante a actuação do arguido, o B sofreu ainda uma escoriação ao nível do quinto dedo da mão esquerda; tais lesões demandaram, directa e necessariamente, oito dias de doença, sendo os primeiros quatro com incapacidade para o trabalho;
8)- De seguida, o arguido agarrou de novo o B, tapou-lhe a boca para este não gritar, e arrastou-o para o interior de um dos compartimentos da casa de banho, encostando a porta e mantendo-a fechada encostando-se nela (com as suas costas), mantendo o B à sua frente e dizendo-lhe: «tenha calma, eu sou preso, eu mato um» e outras palavras não concretamente determinadas, o que fez com foros de seriedade;
9)- Ao mesmo tempo que dirigia tais palavras ao B, o arguido introduziu a mão num dos bolsos do casaco dele, tirando uma carteira que logo constatou ter só papeis e que, por isso, devolveu, continuando a "revista";
10)- Encontrou então um porta-moedas, apoderando-se da quantia que este continha -25350 escudos- e ainda de uma esferográfica "Parker", no valor de 9000 escudos, que o ofendido possuía;
11)- Sabia o arguido que os referidos bens eram do B e quis fazê-los coisa sua, como fez, sabendo que agia contra a vontade do dono;
12)- De seguida, e aguardando melhor oportunidade, para sair, de modo a evitar vir a ser surpreendido, manteve-se no local e manteve consigo o B, que assim impediu de se movimentar durante cerca de quinze minutos no interior do dito compartimento, aproveitando-se para o efeito da perturbação de espírito que desde o início lhe provocou, quer pela
sua actuação quer pelas expressões que lhe dirigiu;
13)- Durante tal período, o arguido pediu ao B a sua direcção, dizendo-lhe que depois, um dia, lhe pagava, recusando-se este a dar-lha; decorrido o referido período de tempo, o arguido abandonou a casa de banho e a "gare", saindo o B praticamente na mesma ocasião;
14)- O arguido dirigiu-se para a Avenida Heróis de Angola e para um café situado em frente da referida "gare"; e o B dirigiu-se para a Praça 5 de Outubro, saindo por uma porta lateral da "gare", vindo passados momentos a avisar um agente da P.S.P. do sucedido;
15)- Cerca de dez minutos depois, o arguido foi interceptado e capturado por um agente da P.S.P. na citada Rua Heróis de Angola;
16)- O arguido de imediato confessou ter sido o autor da subtracção, tendo devolvido a esferográfica "Parker" e a quantia de 25150 escudos, já que gastara o restante na compra de um maço de tabaco "SG-Gigante";
17)- O arguido agiu voluntária e conscientemente, sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei;
18)- confessou parcialmente os factos, pois negou que tivesse agredido o B e que tivesse dito que matava um;
19)- Nenhuma das condenações, bem como a prisão que expiava, se mostraram suficientes para afastar o arguido da prática destes factos, não tendo constituído suficiente prevenção contra o crime;
20)- À data dos factos, faltavam-lhe pouco mais de seis messes para terminar o cumprimento da pena; gozou de uma saída de curta duração de 7 a 9 de Fevereiro de 1991; nunca tentara antes fugir do estabelecimento prisional;
21)- Após a sua libertação nada mais constou em seu desabono; arranjou emprego, trabalhando nas salinas de Setúbal; mora com uma companheira numa casa que seu pai lhe arranjou; à data da detenção à ordem deste processo encontrava-se a estudar, frequentando o 1 ano do curso geral de electricidade; estava a tirar a carta de condução;
22)- O pai do arguido encontrava-se separado da mãe desde há cerca de 12 ou 13 anos; seu pai é dono de uma escola de condução no Seixal;
23)- Enquanto esteve detido no cumprimento da referida pena, o arguido não teve o apoio de seus pais; mas actualmente o pai está na disposição de o ajudar, designadamente, empregando-o;
24)- O arguido é de modesta condição social e económica.

4- O arguido vinha acusado do crime de sequestro do artigo 160, n. 1 e 2, alínea b) (referido aos artigos 76, n. 1 e 77, n. 1, atenta a reincidência).
O Colectivo acabou por condená-lo apenas pelo crime de sequestro do artigo 160, n. 1 em concurso real com o crime de roubo do artigo 306, números 1 e 3 alínea b), sendo ambos agravados pela reincidência.
Considerou o acórdão recorrido que a agressão física ocorreu num momento não só cronologicamente anterior ao sequestro, mas logicamente diverso e num outro contexto, isto é, visando apenas a perpetuação do roubo e não do sequestro, pelo que este -em si- não foi acompanhado ou precedido de agressão, como seria necessário para se configurar a qualificativa do n. 2, alínea b) do artigo 160; o sequestro foi sim precedido dum crime de roubo, dele distinto; e a mesma circunstância -agressão- não poderia ser levada em consideração duas vezes, para agravar o roubo e o sequestro, sob pena de se punir duas vezes pelo mesmo facto.

5- Vejamos se está correcta a qualificação jurídico-criminal operada pelo Colectivo.
Relembremos, antes de mais, o essencial dos factos em análise:
- Quando o B se encontrava no urinol da casa de banho, o arguido agarrou-o, pelas costas e pelo pescoço, com um braço, puxando-o para si e dizendo-lhe que precisava de dinheiro;
- Como o B procurasse libertar-se, o arguido agrediu-o a murro (causando-lhe lesões corporais) e, de seguida, agarrou-o, tapou-lhe a boca, e arrastou-o para o interior de um compartimento da casa de banho, encostando a porta e mantendo-a fechada encostando-se a ela, dizendo-lhe, com foros de seriedade, "tenha calma, eu sou preso, eu mato um";
- Ao mesmo tempo que dirigia estas palavras ao B, o arguido revistou-o e subtraiu-lhe o porta-moedas com 25350 escudos e a esferográfica no valor de 9000 escudos;
- De seguida, e aguardando melhor oportunidade para sair, o arguido manteve o B no interior do referido compartimento durante mais cerca de quinze minutos, aproveitando-se para o efeito da perturbação de espírito que desde o início lhe provocou.

Estes factos apontam com clareza para as seguintes conclusões:
1- O arguido só subtraiu os referidos bens ao B depois de este ter sido agredido, arrastado e metido no compartimento da casa de banho, em circunstâncias de perturbação de espírito que o incapacitaram de resistir, depois de uma primeira reacção falhada, ao sentir-se agarrado pelas costas;
2- O sequestro iniciou-se no momento em que o B foi introduzido violentamente no dito compartimento da casa de banho e perdurou até à sua libertação, cerca de 15 minutos depois de consumada a subtracção dos bens;
3- Assim, e ao contrário do que conclui o acórdão recorrido, o sequestro não foi precedido do crime de roubo, antes sendo este consumado no decurso do sequestro.

Ora, poderia pensar-se que o sequestro é consumido pelo roubo, quando neste se prevêem a violência e o acto de, por qualquer forma, ou pôr a pessoa na impossibilidade de resistir (artigo 306, n. 1 e 3, alínea b), ideia que resultaria de o roubo, crime complexo, ter como componente a violência e a privação da liberdade que, como tal, perderiam a sua dignidade jurídico-criminal de origem.
Todavia, esta posição só poderia evitar-se se o sequestro se tivesse esgotado como crime-meio em relação ao roubo (crime-frio).
E não foi isso que sucedeu.
Posto que a agressão física e o sequestro tivessem servido de meio de obter a subtracção dos bens (esta ocorreu, como se viu, durante o sequestro subsequente à agressão), o certo é que, consumando o roubo, o arguido decidiu continuar a situação de sequestro durante mais cerca de quinze minutos.
Ora, o sequestro - como é sabido - é um crime de execução permanente, que se inicia com a privação da liberdade ambulatória e só cessa no momento em que a pessoa ofendida é definitivamente libertada ou é instaurado procedimento criminal.
Até alguns destes momentos, estando o agente do crime a actuar sob o mesmo dolo, o crime é o mesmo e um só, mesmo no plano estritamente naturalístico (v. Cuello Cabón, Derecho Penal, I, 297).
Enquanto ao ofendido não é restituído definitivamente o seu jus ambulandi e persiste o propósito criminoso do agente, de o manter privado da sua liberdade de locomoção, prolonga-se a conduta do agente, o qual, de algum modo, está a todo o momento a fazer reviver ininterruptamente o crime (ver acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Outubro de 1990, Colectânea de Jurisprudência XV, IV, 26).

No caso presente, e consumado o roubo, o sequestro subsequente não pode considerar-se consumido por aquele, tratando-se de uma privação por aquele, tratando-se de uma privação da liberdade desnecessária e excrescente à consumação do primeiro crime.
Trata-se de um excesso - no sentido desenvolvido no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Abril de 1992, Colectânea de Jurisprudência, XVII, II, 19 - que ganha autonomia jurídico-criminal e tem de ser punido como sequestro em concurso real com o crime de roubo, na medida em que são diferentes os valores, jurídicos ofendidos e só se considera absolvida pelo crime de roubo a violência e a privação da liberdade que se mostra absolutamente necessária e proporcionada à prática da subtracção dos bens móveis do ofendido.

6- Sendo assim, e como corolário lógico das precedentes considerações doutrinais, teremos de concluir que existe um sequestro (ab origine qualificado pela violência) a punir autonomamente e que esse sequestro - mesmo na parte não absorvida pelo roubo - foi precedido de agressão à integridade física do ofendido, sem a qual (ao que tudo indica, pois a vítima só desistiu de resistir quando se viu agredida a murro e aterrorizada pela ameaça do arguido) não teria sido consumado.
Assim, não pode duvidar-se de que o crime de sequestro é o previsto e punível pelo artigo 160, números 1 e 2, alínea b) (e não apenas pelo artigo 160, n. 1), como sustentou o digno magistrado recorrente.

7- Quanto à determinação da medida das penas:
Tendo o Colectivo dado como provado que as anteriores condenações do arguido com pena de prisão se mostraram insuficientes para o afastar da criminalidade,não pode deixar de ser considerada, em relação a ambos os crimes, a agravante da reincidência, nos termos dos artigos 76, n. 1 e 77, n. 1.
Dentro das molduras penais obtidas por efeito daquele artigo 77, n. 1, temos que o crime do roubo é punível com prisão de quatro a doze anos e o de sequestro com prisão de dois anos e oito meses a dez anos.
Ponderando, nos termos do artigo 72, a culpa do agente, as exigências de prevenção e todas as circunstâncias que depõem contra e a favor do arguido (onde relevam sobremaneira as actuais condições que favorecem a sua reinserção social - alíneas 21), 22) e 23) do n. 3 do presente acórdão), e não se mostrando verificado o estrito condicionalismo da aplicação do artigo 4 do Decreto-Lei n. 401/82 ao condenado, que tinha à data dos factos vinte anos de idade, entende-se que não se justificam penas superiores ao seu mínimo abstracto,ou seja quatro anos pelo crime de roubo e dois anos e oito meses pelo crime de sequestro, fixando-se a pena única, no cúmulo jurídico moldado pelo artigo 78, n. 1, em cinco anos de prisão, de que se declara perdoado um ano, nos termos do artigo 14, n. 1, b) da Lei n. 23/91, de 4 de Julho.

8- Pelo exposto, decide-se dar provimento parcial ao recurso do Ministério Público e revogar a parte incriminatória e punitiva do acórdão recorrido, ficando o arguido A condenado, pelos crimes de roubo do artigo 306, números 1 e 3, alínea b) e de sequestro do artigo 160, números 1 e 2 alínea b), atenta a reincidência, nas penas parcelares e única acabadas de determinar no n. 7 do presente acórdão (com o perdão aí declarado), confirmando-se quanto ao mais, a decisão impugnada.
Sem tributação.
Lisboa, 20 de Janeiro de 1994.
Sousa Guedes;
Alves Ribeiro;
Cardoso Bastos;
Sá Ferreira.
Decisão impugnada:
Acórdão de 11 de Dezembro de 1992 do Tribunal do Círculo de Leiria.