CHEQUE SEM PROVISÃO
VENCIMENTO
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
TIPICIDADE
Sumário

Não obsta à existência de um crime de emissão de cheque sem provisão o facto de o cheque ter sido emitido e entregue ao seu portador sem data, desde que posteriormente, por acordo entre o subscritor e o portador, tenha sido nele aposta aquela data de vencimento.

Texto Integral

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça, os Juízes da 1 subsecção criminal:
No 4 Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, foi submetido a julgamento, em processo de Querela e com a intervenção do Tribunal Colectivo, o arguido A, casado, gerente comercial, nascido em 3/10/34, com os demais sinais dos autos, o qual vinha acusado pelo Ministério Público das seguintes infracções penais:
- No Processo Municipal N. 1373/88: um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelos artigos
23 e 24, n. 1 e 2, alínea a) e c), do Decreto-Lei n.
13004, de 12/1/27, com a redacção do artigo 5 do Decreto-Lei n. 400/82, de 23/9;
- No Processo apenso n. 409/89: um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelos artigos 23 e 24, n. 1, do Decreto-Lei n. 13004, de 12/1/27, com a redacção dada a este último preceito pelo artigo 5 do Decreto-Lei n. 400/82, de 23/9.
No final do julgamento, foi proferido o acórdão de 28/10/91, através do qual foi aquele A condenado, como autor material de dois crimes de emissão de cheque sem provisão previsto e punido pelos artigos 23 e 24, n. 1 e 2, alínea c), um, e o outro previsto e punido pelos artigos 23 e 24, n. 1, do Decreto-Lei n. 13004, de 12/1/27, com a redacção dada pelo artigo 5 do Decreto-lei n. 400/82, de 23/9, nas penas de 18 (dezoito) e 4 (quatro) meses de prisão, respectivamente. Operando-se o cúmulo de tais penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de 20
(vinte) meses de prisão, pena esta cuja execução foi declarada suspensa pelo período de dois anos.
Mais foi condenado o arguido a pagar aos ofendidos, a título de indemnização civil, a quantia titulada pelos cheques, acrescida dos respectivos juros de mora à taxa supletiva legal, contados desde a sua emissão até à data do efectivo pagamento.
Foi o arguido condenado nas respectivas custas do processo, fixando-se nos mínimos o imposto de justiça e a procuradoria.
Inconformado com tal acórdão, dele interpôs recurso, em acta, o proponente através de seu Relatório, o qual foi admitido, tendo o mesmo recorrente apresentado, oportunamente, as respectivas alegações, impertrando, no final, a revogação da decisão recorrida e a sua absolvição.
Contra-alegou o Ministério Público, batendo-se pela confirmação de decisão recorrida, com o improvimento do recurso.
No Tribunal de Relação de Lisboa, onde, entretanto, os autos subiram , e conforme acórdão ali proferido, foi decidido negar-se provimento ao recurso, confirmou-se a decisão recorrida.
Do assim decidido, veio novamente interpor recurso, agora para este Supremo Tribunal de Justiça, o arguido A, igualmente admitido.
Alega o recorrente, na sua minuta de alegações e em sede conclusiva:
1 - O recorrente emitiu os cheques dos autos sem lhes apor qualquer data de emissão;
2 - A data de 8/5/86 foi aposta nesses cheques pelo queixoso B, sendo certo que os recursos foram entregues pelo recorrente aos queixosos, ora recorridos, em data anterior
3 - A decisão da 1 instância deu como provado que a referida data foi aposta após reunião e acordo do arguido e dos queixosos;
4 - Todavia, postergando o ónus da prova, os queixosos não fizeram qualquer prova sobre esse hipotético acordo de datação dos cheques, o qual o arguido, ora recorrente, sempre negou que tivesse acontecido;
5 - Perante esta evidência, o Tribunal da Relação de
Lisboa veio confirmar a decisão recorrida, mas com diverso fundamento, entendendo que no cheque em branco, ao portador, a data, posteriormente nele aposta, presume-se que resulta de acordo das partes, louvando-se, embora mal, no disposto no artigo 13 da
Lei Uniforme sobre o cheque; todavia, para além dos pressupostos do artigo 2 da referida Lei Uniforme para que o cheque possa valer como tal, a convenção sobre a datação do cheque há-de expressar-se por qualquer forma de declaração em direito permitida, só assim se dando cumprimento ao disposto no já citado artigo 13, não podendo, por isso, presumir-se tal acordo;
6 - Violou o acórdão recorrido, sem necessidade da prova e no pressuposto de mera presunção, para dar por estabelecido o acordo sobre a datação do cheque, o disposto no artigo 13 da Lei Uniforme sobre cheque;
7 - Acessoriamente, violou também o mesmo o disposto no artigo 668, n. 1, alínea a), do Código de Processo
Civil, uma vez que não faz o fundamento de facto e de direito que justifica a decisão, de harmonia com a citada lei substantiva. impetra o recorrente a revogação do aresto recorrido e, em consequência, a sua absolvição.
Contra-alegou o Ministério Público, pronunciando-se no sentido do recurso não merecer provimento.
Subidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, e ultrapassada a questão suscitada da extemporaneidade do recurso, decidindo-se no sentido do prosseguimento dos autos, o Ex. Procurador-Geral Adjunto limita-se a aderir à posição assumida pelo Ministério Público junto da 2 instância.
Correram os vistos legais, cumpre decidir.
Nos termos do artigo 666 do Código de Processo Penal
"Supremo Tribunal de Justiça conhecerá da matéria de facto e de direito, mas sempre que julgue em única instâncias e ainda no caso do parágrafo 3 do artigo
663. Em todos os outros casos, conhecerá apenas de matéria de direito (referimo-nos ao Código de Processo
Penal de 1929, aqui aplicável).
Ora, vem dada como provada a seguinte factualidade:
1 - Com data de 8/5/86, o arguido preencheu, assinou e entregou a Antero Augusto Fernandes o cheque n.
9918543014, sacado salvo o BESCL, no valor de 750000 escudos; apresentado o pagamento ao Banco sacado, tal cheque foi devolvido por falta de provisão em 13/05/86, conforme carimbo aposto no verso;
2 - Ao emitir tal cheque, o arguido sabia que não tinha no Banco sacado fundos suficientes para permitir o seu pagamento,
3 - O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente; sabia que a sua conduta não era permitida por lei.
4 - O cheque devolvido é de montante bastante elevado, quer atendendo ao saldo médio da conta sacada, quer na
óptica de um cidadão médio;
5 - Além disso, no lapso de tempo compreendido entre
25/8/81 e 16/6/86, o arguido emitiu, pelo menos, dois cheques que, apresentados a pagamento, foram devolvidos por falta de provisão;
No Processo apenso n. 409/89:
6 - O arguido, com data de 8/5/86, preencheu, assinou e entregou a B, o cheque n. 9900693740, no montante de 102000 escudos, sacado sobre o Banco Espírito Santo de Comercial de Lisboa (BESCL) na área da Comarca de Lisboa, e apresentado para pagamento em 9/5/86, foi devolvido por falta de provisão, em 13 de Maio de 1986, conforme declaração aposta no respectivo verso;
7 - O arguido, ao emitir e entregar o cheque, bem sabia que não possuía fundos suficientes no banco sacado e que tal não era permitido por lei; o arguido agiu voluntária e conscientemente;
Da discussão da causa:
8 - Em data indeterminada do ano de 1983, o id. Passos entregou ao arguido uma quantia em dinheiro não determinada, não inferior a 600000 escudos, a qual, em Fevereiro de 85, atingiu o montante de 2805371 escudos;
9 - Para pagamento da dívida, em princípios do ano de
1985, o arguido entregou ao Passos a sua viatura de marca Mercedes modelo 220D, com a matricula LE-02-38 e uma fotocopiadora com o valor comercial de 350000 escudos; sobre a fotocopiadora impedia o ónus de pagar
à "Regisconta" 50534 escudos, que o B liquidou;
10 - Quando o arguido emitiu os cheques dos autos, não lhe apôs qualquer data de emissão;
11 - Após reunião e acordo do arguido o queixoso, o id. B apôs nos cheques dos autos, como data da sua emissão, o dia 8/5/86; tais cheques foram entregues pelo arguido aos queixosos em data muito anterior a
8/5/86; 12 - O arguido entregou aos queixosos Passos e
Antero os cheques dos autos e ainda o cheque no montante de 2805371 escudos;
13 - Aquando da entrega da viatura pelo arguido ao id. B, o arguido e os queixosos acordaram sobre o valor a atribuir à mesma;
14 - O arguido, actualmente, é vendedor de produtos cosméticos, auferindo cerca de 70000/80000 escudos mensais; vive com a mulher, e, como habilitações literárias, tem o 6 ano do curso liceal;
15 - Tem o mesmo bom comportamento anterior e posterior com referência à data da prática dos factos.
X X X
Nos termos do artigo 1 da Lei Uniforme relativa aos cheques, é requisito do cheque, além do mais, a indicação da data em que é do lugar onde o cheque é passado (n. 5).
Não proíbe, porém, a lei, e até permite, no artigo 28 do mesmo Diploma, que o cheque seja passado e entregou ao portador com data de emissão posterior à data da entrega, embora a provisão para o seu pagamento deva ser feita dentro do prazo de oito dias da data do cheque.
O próprio artigo 13 do mesmo diploma prescreve:
"Se um cheque incompleto no momento de ser passado tiver a inobservância desses acordos ser motivo de oposição do portador, salvo se este tiver adquirido o cheque de má fé, ou, adquirindo-o, tinha cometido uma falta grave".
Da matéria de facto dada por assente, temos que o arguido, quando emitiu os cheques dos autos, não lhes apôs qualquer data de emissão, e, após reunião e acordo, como data da sua emissão, o dia 8/5/86.
Neste contexto factual, temos que os cheques, tendo agora data, aposta com o acordo do arguido e queixosos, adquiriram toda a virtualidade e pontualidade como tais, isto é, como cheques, e, daí, que a sua apresentação a pagamento e ulteriores actos fossem encontrados segundo as regras legais, não se suscitando reparos a fazer.
O momento que consta para efeitos de aferir da falta da data é o da apresentação a pagamento e, em tal altura, os cheques estavam datados, mostrando-se precludidos os requisitos do artigo 1 da Lei Uniforme do cheque.
O prazo de apresentação a pagamento, como afloramento do princípio de literalidade, apenas começa a constar a a partir da data aposta no cheque.
A interpretação constante do acórdão recorrido está, pois, consentânea com a lei, sendo que o aqui recorrente se constitui autor dos crimes imputados, preenchendo com a sua realidade subjectiva.
As penas decretadas mostram-se ajustadas e equilibradas, acatando os parâmetros legais, definidos no artigo 72 do Código Penal, não merecendo aqui também qualquer reparo as indemnizações arbitradas.
A legislação actual relativa ao crime de emissão de cheque sem provisão confere-se no Decreto-Lei n. 454/91, de 28 de Dezembro. Diploma este que, nos termos do seu artigo 16, entrou em vigor três meses após a data da sua publicação.
Em tal Diploma, no artigo 11, n. 1, estatui-se que
"será condenado nas penas previstas para o crime de burla, observando-se o regime geral de punição deste crime, quem, causando prejuízo patrimonial: a) emitir e entregar a outrem cheque de valor superior ao indicado no artigo 8 que não for integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque".
As penas concretamente impostas ao arguido - referimo-nos às penas parcelares -, respectivamente de
18 (dezoito) e de 4 (quatro) meses de prisão, foram fixadas no quadro das seguintes molduras penais abstractas: "1 a 10 anos de prisão", este quanto ao crime - o primeiro - previsto e punido pelos artigos 23 e 24, n. 1 e 2 alínea c), do Decreto-Lei n. 13004, de
12/1/27, na redacção dada do último preceito pelo artigo 5 do decreto-Lei n. 400/82, de 23 de Setembro, e
"prisão até três anos", esta quanto ao segundo crime, previsto e punido pelos artigos 23 e 24, n. 1, do Decreto-Lei n. 13004, de 12/1/27, sendo o último preceito igualmente na redacção introduzida por aquele artigo 5 do Decreto-Lei n. 400/82 citado.
Hoje, os aludidos crimes, o primeiro e segundo, são previstos e punidos pelo mencionado artigo 11, n. 1, alínea a), do citado Decreto-Lei n. 454/91, de 28 de Dezembro, com referência, o primeiro crime, do artigo
314, alínea c), e, o segundo, com referência ao artigo
313, n. 1, estes dois últimos do Código Penal vigente, cabendo-lhe a moldura penal de, respectivamente, "1 a
10 anos de prisão" e "prisão até três anos".
Quer dizer: as molduras penais abstractas, que à luz da legislação vigente do tempo da ocorrência dos factos, quer à luz da lei penal actualmente em vigor, são idênticas.
Dispõe o n. 1 do artigo 2 do Código Penal que "As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem".
No caso dos autos não é de fazer funcionar quer o disposto no n. 2, quer no n. 4 do citado artigo 2 do
Código Penal. Não lograríamos chegar, na individualização das penas, a resultados diferentes, consubstanciando-se, eventualmente, um regime que concretamente se encontrasse mais favorável ao arguido recorrente.
Mantém-se, pois, a decisão recorrida, nos seus precisos termos, incluindo a pena unitária fixada, expressão do cúmulo jurídico operado e, bem assim, a suspensão da execução da pena decretada e, finalmente tudo o mais aí decidido, termos estes em que se decide negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e se confirma, em consequência, o acórdão aqui sob apreciação.
Pela sucumbência, vai o aqui recorrente condenado em imposto de justiça, que se fixa em 25000 escudos, e em procuradoria, fixando-se esta em 10000 escudos.
Lisboa, 26 de Janeiro de 1994.
Teixeira do Carmo.
Amado Gomes.
Ferreira Vidigal.
Decisão impugnada:
Acórdão de 91.10.28 do 4 juízo criminal 1 secção;
Acórdão 92.02.25 da Relação de Lisboa.