ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO OBRIGATÓRIO
LITISCONSÓRCIO
CONFISSÃO
Sumário

I - Nas acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil por acidente de viação abrangido pelo seguro obrigatório, impõe-se o litisconsórcio passivo (necessário) sempre que, não ultrapassando embora o pedido formulado os limites fixados para o seguro obrigatório, suceda que o montante de tal pedido, somado às indemnizações que a seguradora já houver pago ao lesado, exceda o capital obrigatoriamente segurado.
II - Neste caso, ainda que na sua contestação a seguradora tenha admitido ou confessado os factos integrativos da culpa do réu civilmente responsável, tal posição não constitui confissão do direito do autor se tais factos (ou alguns deles) foram objecto de impugnação na contestação do réu seu segurado.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.
I
1. No Tribunal Judicial de Ponta Delgada, A intentou acção com processo sumário contra Companhia de Seguros Açoreana e B, pedindo que sejam condenados a pagar-lhe quantia não inferior a 5000000 escudos, a titulo de danos patrimoniais e não patrimoniais em resultado de acidente de viação ocorrido no dia 13 de Março de 1987 entre a motorizada marca Zundop, matricula PDL-..., conduzida pelo autor e o veículo de marca Datsun, matricula HG-..., conduzido pelo segundo Réu, que transferira a sua responsabilidade para a primeira Ré, sendo certo que o acidente se deu por culpa do segundo
Réu e originou danos, que especificou, integrativos do pedido formulado.
A Ré Companhia de Seguros Açoreana contestou alegando que em face da participação aceitava assumir a responsabilidade do acidente tendo despendido 2040504 escudos, à conta do capital seguro, e tendo posto à disposição do Autor a indemnização por danos não patrimoniais no valor de 650000 escudos, o que o autor não aceitou, sendo certo que impugnou diversos danos integrativos do pedido.
- O Réu B contestou por excepção (invocando a sua ilegitimidade) e por impugnação (alegando factos no sentido de a culpa do acidente ser devida ao Autor).
- No despacho saneador foi relegada para a decisão final a apreciação da invocada excepção da ilegitimidade do Réu segurado.
- Procedeu-se à audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença no sentido de absolver do pedido o
Réu B e condenar a Ré no pagamento da quantia de 800000 escudos, (limite da responsabilidade pelo risco, sendo certo, porém, que ela já pagou ao Autor quantia superior não tendo mais obrigação a cumprir.
2. O Autor apelou, a Relação de Lisboa, no seu acórdão de 18 de Novembro de 1993, deu provimento ao recurso, condenando a apelada "Açoreana" a pagar ao apelante mais três milhões e cinquenta e nove mil quatrocentos e noventa e seis escudos (além do que já pagou).
3. A Ré Companhia de Seguros Açoreana pede revista, e, para tal, formulou as seguintes conclusões:
1) A causa de pedir nas acções de indemnização é complexa, sendo constituída não apenas pelo acidente e pelos prejuízos, mas pelo conjunto de factos exigidos por lei para que surja o direito de indemnização e a correlativa obrigação.
2) São pressupostos da responsabilidade civil o facto, a ilícitude, a imputação do facto ao presente, o dano e o nexo de causalidade entre aquela e este.
3) A medida da responsabilidade da seguradora é a responsabilidade do seu segurado.
Na falta desta, aquela não existe.
4) Tendo o segurado impugnado a matéria de facto do acidente, dada a natureza do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, aquela impugnação aproveita à seguradora.
5) O facto de a seguradora dizer na sua contestação que em face da participação aceitou assumir a responsabilidade civil emergente do acidente, tendo despendido diversas quantias do capital e tendo posto à disposição do Autor certa quantia em dinheiro a titulo de indemnização por danos não patrimoniais, havendo impugnação do facto quanto ao acidente por parte do segurado, não constitui confissão do direito do Autor ou da sua obrigação em indemnizar.
Aquela afirmação tinha na base uma participação de acidente e sua interpretação.
Não se tratando do reconhecimento inequívoco de um direito ou de uma obrigação, e sendo acompanhado da participação, aquelas declarações não constituem confissão.
Conclui que o acórdão recorrido fez errada interpretação da natureza do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel e do artigo 783 do
Código de Processo Civil, violando os artigos 352, 357 e 360 do Código Civil, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que negue provimento à apelação do aqui recorrido, confirmando a sentença proferida na primeira instância.
- Os Recorridos não apresentaram contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
Questões a apreciar no presente recurso.
A Apreciação e a decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, passa pela análise da questão de saber se constitui confissão do direito do Autor o facto de a Seguradora dizer na sua contestação que em face da participação do segurado aceitou assumir a responsabilidade do acidente, quando este segurado, na sua contestação, impugnou a matéria de facto alegada na petição inicial.
III
Se constitui confissão do direito do Autor o facto de a Seguradora dizer na sua contestação que em face da participação do segurado aceitou assumir a responsabilidade do acidente, quando este segurado, na sua contestação, impugnou a matéria de facto alegada na petição inicial.
1. Posição da Relação e da recorrente.
1 a) A Relação de Lisboa entendeu que a Ré Açoreana ao alegar e ao concluir a sua contestação nos moldes em que o fez não tem outro sentido senão o ter confessado o direito do Autor a ser indemnizado, limitando-se tão somente a discutir quais os danos sofridos pelo mesmo e o montante adequado a indemnizá-los.
- Por um lado, em processo declarativo sumário é admissível a confissão do pedido nos articulados, como resulta do disposto no artigo 783 do Código de Processo
Civil enquanto manda citar o Réu para contestar, sob penha de ser condenado no pedido.
- Por outro lado, se, em tal forma de processo, a falta de contestação tem como efeito a confissão do pedido, por maioria da razão é admissível que o Réu na contestação, confesse expressamente o pedido, no todo ou em parte.
1 b) A recorrente discorda da tese da Relação de Lisboa por os factos do acidente (sua ocorrência e circunstancias), não serem factos pessoais da recorrente. A confirmação feita na contestação (que em face da participação aceitou assumir a responsabilidade e, em consequência, pôs à disposição do Autor determinada indemnização por danos morais), não importa alguma confissão dos factos nem reconhecimento do direito do Autor, já que, por um lado tem na sua génese uma participação de factos, e por outro, o segurado co-Réu impugnou os factos descritos por aquele.
- Em consequência das respostas aos quesitos, em ambas as instâncias foi afastada a culpa do segurado da recorrente.
- Assim, não sendo o segurado do recorrente o culpado no acidente, ou seja, não tendo ficado provada a ilícitude da sua condução, fica afastada a sua responsabilidade pela reparação dos danos por responsabilidade por facto ilícito. Em consequência ficará necessariamente afastada a responsabilidade do recorrente como seguradora, dada a dualidade da origem e natureza das obrigações do segurado e da seguradora
(de um lado responsabilidade civil por facto ilícito, de outro, responsabilidade contratual perante o segurado).
Que dizer?
2. O seguro de responsabilidade por danos da circulação automóvel visou sempre dois interesses: o dos segurados
(o seguro é contratado por quem quer tutelar o seu próprio património contra eventualmente pesadas obrigações de indemnizar), e o da vitima, (os seus direitos ficam assim fortemente garantidos contra a possível insolvência do devedor).
- A partir do momento em que o seguro de facultativo se transformou em obrigatória tornou-se claro que o interesse de protecção das vitimas passou para o primeiro plano como interesse de maior valor cuja defesa se impunha assegurar.
- Se é certo que as normas da responsabilidade continuam a ser a base de todo o sistema (o segurador só é obrigado na medida em que o seria o segurado se respondesse pessoalmente), não é menos certo que a responsabilidade civil muda completamente de fisionomia: do instituto destinado a endossar a um indivíduo as consequências patrimoniais dos seus actos transforma-se, na expressão feliz, frequentemente citada, do jurista suíço Karl Oftinger, em "instrumento jurídico e técnica para a determinação da pretensão ao seguro", ou em "simples instrumento de limitação da garantia fornecida pelo segurador" (Sinde Monteiro,
Reparação dos Danos em Acidentes de Trânsito, 1974, paginas 47 e 48).
- Na medida em que a indemnização ultrapasse os limites qualitativos ou quantitativos do seguro, reaparece a responsabilidade individual do segurado.
- A função primordial do seguro obrigatório (assegurar ao lesado a indemnização com base na ideia de que todo o dano deve ser indemnizado - Leite Campos, o Seguro de Responsabilidade Civil em acidentes de viação, página
43), refletiu-se na legitimidade passiva nas acções destinadas à efectivação civil decorrente de acidente de viação
- A análise do artigo 29 n. 1 do Decreto-Lei n. 522/85, de 31 de Dezembro, permite salientar três aspectos fundamentais no regime das acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil derivada dos acidentes de viação abrangidos pelo seguro obrigatório:
- O princípio da legitimação exclusiva da seguradora, quando o pedido se contiver dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório.
- O regime de litisconsórcio necessário passivo da seguradora, e do civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar os referidos limites.
- A extensão deste regime à própria acção civil exercida no âmbito do processo penal.
Apreciemos os dois primeiros aspectos
3 a) A alínea a) do n. 1 do artigo 29 veio consagrar inequivocamente o entendimento dominante acerca do sentido do artigo 22 n. 2 do Decreto-Lei n. 408/79: a acção deve ser proposta obrigatoriamente apenas contra a seguradora, carecendo o responsável directo pelo acidente de viação de legitimidade para ser demandado quando o pedido se contiver nos limites fixados para o seguro obrigatório.
O legislador pretendeu, com a consagração deste regime, evitar incómodos àqueles cuja responsabilidade civil está coberta pelo seguro obrigatório, dispensando, afinal, o lesante dos encargos resultantes de eventualmente o lesado optar por o demandar conjuntamente com a seguradora e da condenação solidária a que, nesta hipótese, indubitavelmente ficaria sujeito (Lopes Rego, Revista do Ministério
Publico, VIII, tomo 29, página 62).
3 b) A alínea b) do n. 1 do artigo 29 impõe o litisconsórcio necessário da seguradora e do civilmente responsável sempre que o pedido formulado ultrapassar os limites fixados para o seguro obrigatório.
O objectivo principal é, desde logo, assegurar que o pedido formulado pelo lesado possa vir a proceder na totalidade: na verdade, se não existir seguro facultativo que cubra a responsabilidade do lesante na medida em que o dano causado exceda os capitais a que alude o artigo 6, a acção só poderá ser julgada totalmente procedente se for possível a condenação do responsável directo na parcela do pedido que excede os limites do seguro obrigatório - o que naturalmente supõe a sua presença como co-Réu na acção (Lopes Rego, estudo citado, página 68).
3 c) Para além da situação normal do pedido formulado pelo lesado (Autor) se conter nos limites fixados para o seguro obrigatório, emergem, por vezes, situações em que verifica-se que a seguradora acaba por não garantir integralmente a satisfação da indemnização pedida pelo
Autor nos limites do seguro obrigatório.
Frequente é (como o caso dos autos ilustram) que a seguradora tenha pago ao lesado determinadas somas, de sorte que ao intentar a acção formule pedido contido nos limites do seguro obrigatório mas que somado às indemnizações que a seguradora lhe pagou, excede o capital obrigatoriamente segurado.
Entende-se que esta situação é contemplada na alínea b) do n. 1 do artigo 29.
Haverá que interpretar extensivamente tal normativo por imposição da sua apontada "ratio legis".
As duas situações têm nas suas bases as mesmas razões a imporem o mesmo tratamento jurídico.
A identidade de razões na base de tais situações impõem que se interprete a norma insita na alínea b) do n. 1 do artigo 29, de sorte a não abarcar tão somente a situação contemplada na sua "verba legis" (o pedido formulado ultrapassar os limites fixados para o seguro obrigatório, encontrando-se intacto o capital), mas também a na sua "meno legis" o pedido formulado não ultrapassar os limites fixados para o seguro obrigatório, mas somado às indemnizações que a seguradora pagou ao lesado/Autor, excede o capital obrigatoriamente segurado).
Trata-se de interpretação extensiva o resultado a que se chegou: tal norma na sua "verba legis" ficou aquém da "meno legis", de tal sorte que se torna necessário alargar o texto legal, dando-lhe um sentido de forma a abarcar todas as situações que estão contidas no seu espírito.
5. Nas acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil derivada dos acidentes de viação abrangidos pelo seguro obrigatório pode ter um enorme interesse saber se se está perante litisconsórcio passivo necessário ou voluntário.
Tenha-se presente que demandados e seguradora e o responsável civilmente só um contesta ou contestando ambos um confessa os factos (ou até não os impugna especificamente) e outro impugna especificamente todos
(ou alguns) dos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito - artigo 483 do Código Civil.
Tratando-se de litisconsórcio passivo voluntário dir-se-à que a posição assumida por cada um dos Réus só a ele aproveita ou prejudica).
Tratando-se de litisconsórcio passivo necessário a contestação de um deles aproveita ao outro relativamente aos factos impugnados (artigo 485 alínea a), do Código de Processo Civil).
Se um deles confessar haverá que ter presente o que dispõe o artigo 353 n. 2 do Código Civil, que diz: "a confissão feita pelo litisconsorte é eficaz, se o litisconsórcio for voluntário, embora o seu efeito se restrinja ao interesse do confidente; mas não o é, se o litisconsórcio for necessário".
C, a propósito de tal disposição, escreve: "não oferecendo a interpretação do preceito dificuldades de maior, frise-se apenas que se aplica à confissão espontânea em articulado. Tal como as restantes modalidades da confissão, mesmo quando, em consequência do jogo do ónus de contestação ou do da impugnação especificada poderia, em caso de litisconsórcio necessário parecer o contrario: se um dos dois Réus litisconsortes confessar expressamente determinado facto, a confissão do primeiro não deixa de ser ineficaz, mas, equivalendo equivalendo esta ineficácia à falta de uma tomada de posição sobre a verdade da afirmação do
Autor, o facto por este alegado fica provado por admissão concorde dos Réus; e só se esta concordância não se verificar (por hipótese, um de três litisconsortes confessa e outro admite, mas o terceiro impugna o facto), é que a lei expressa (Código de
Processo Civil, artigo 485 alínena a), no caso de revelia) ou a própria natureza da relação jurídica em causa (...) impõe que o facto se tenha por impugnado relativamente a todos os Réus (a confissão no Direito Probatório, página 81).
6. "In casu", há que ter em conta, por um lado, o pedido formulado pelo Autor (a quantia de 5000000 escudos), e, por outro lado, o seguinte facto fixado pela Relação: "A Açoreana" pagou já ao apelante (ao
Autor, dizemos nós), o montante de 2040504 escudos relativos a :....
Tais elementos indicam que na presente acção se está perante litisconsórcio necessário passivo: dado configurar-se a situação abarcada na "meno legis" da alínea b) do n. 1 do artigo 29 do Decreto-Lei n.
522/85, de 31 de Dezembro.
Se assim é, a confissão (ou a admissão) que a Ré fez na sua contestação é ineficaz, uma vez que o Réu civilmente responsável apresentou contestação a impugnar factos integrativos da pretensão aduzida pelo
Autor.
Conclui-se, assim, que a posição assumida pela Ré Seguradora, na sua contestação, não constitui confissão do direito do Autor.
IV
Conclusão.
Do exposto, poderá extrair-se que:
1) Nas acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil derivada de acidentes de viação abrangidos pelo seguro obrigatório impõe-se o litisconsórcio passivo da seguradora e do civilmente responsável sempre que se verifique uma de duas situações: ou o pedido formulado vir a ultrapassar os limites fixados para o seguro obrigatório ou o pedido formulado não ultrapassar os limites fixados para o seguro obrigatório, mas somado
às indemnizações que a seguradora pagou ao lesado/
Autor, excede o capital obrigatoriamente segurado.
2) Nestas acções a posição que o Réu civilmente responsável tomar na sua contestação (o de impugnar algum (ou alguns) dos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, mormente o da culpa). O proveito a Ré Seguradora apesar desta, na sua contestação, ter admitido ou confessado os factos integrativos da culpa do Réu civilmente responsável.
Face a tais conclusões, em conjugação com os elementos fixados, poderá precisar-se que:
1) A posição assumida pela Ré Seguradora, na sua contestação, não constitui confissão do Direito do Autor.
2) O acórdão recorrido não poderá ser mantido por ser inobservado o afirmado em 1).
Termos em que se concede a revista e assim revoga-se o acórdão recorrido, ficando a valer a decisão de primeira instância.
Custas na segunda instância e neste Supremo Tribunal pelo recorrente.
Lisboa, 17 de Março de 1994.
Miranda Gusmão.
Mário Ribeiro.
Raúl Mateus.
Decisões impugnadas:
I- Sentença de 18 de Março de 1992 do segundo Juízo, segunda Secção de Ponta Delgada.
II- Acórdão de 18 de Março de 1993 da Relação de
Lisboa.