INTRODUÇÃO EM CASA ALHEIA
AUTORIZAÇÃO
EXCLUSÃO DA ILICITUDE
Sumário

I - Constituindo intenção do legislador proteger, com o artigo 176 do Código Penal, não o património mas a liberdade doméstica individual, será sempre ao morador que compete, em primeira linha, admitir ou não admitir a entrada ou permanência de estranhos em sua casa, quer o morador seja proprietário, quer seja hóspede, locatário ou usufrutuário.
II - Estando ausente o principal titular, o direito que nessa qualidade lhe cabia passa para os restantes moradores da casa, tais como filhos, subordinados, hóspedes, empregados domésticos ou outros, embora eles tenham de agir de harmonia com a vontade expressa ou presumida do principal titular.
III - Habitando a casa, como residência habitual, o pai, a mãe e a filha, a autorização de entrada por parte de qualquer deles, nomeadamente a filha, para com o arguido manter relações de sexo, tendo este entrado por escalamento, afasta a ilicitude de tal entrada

Texto Integral

Na Primeira Subsecção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, acordam os seus Juízes:

Na Comarca de Fronteira, em processo comum e perante o Tribunal Colectivo do Circulo Judicial de Portalegre, foi submetido a julgamento o arguido A, solteiro, militar, nascido em 7 de Março de 1972, com os demais sinais dos autos, o qual vinha acusado pelo Ministério Público da comissão de um crime de introdução em casa alheia, previsto e punido pelo artigo 176, n. 1 e 2, do Código Penal, acusação essa que foi recebida nos seus precisos termos de facto e de direito pelo despacho de folha 51 e verso.
Entretanto, B, casado, com a demais sinalética dos autos, admitido a intervir nos autos como assistente, veio, a folha 53 a 54, deduzir contra o mesmo arguido pedido de indemnização civil, impetrando a sua condenação no pagamento a ele, assistente, da quantia de duzentos mil escudos, acrescida dos juros legais a contar desde a citação até integral pagamento, fundamentando o seu pedido nos danos não patrimoniais sofridos e decorrentes da conduta do mesmo arguido e que factualiza no respectivo petitório. Contestou o arguido o mesmo pedido, concluindo pelo seu indeferimento.
Tendo-se procedido ao julgamento, foi, no final, proferido o acórdão, constante de folha 78 a 80 e datado de 7 de Julho de 1993.
No mesmo, decidiu o colectivo dos Juízes em julgar a acusação improcedente, por não provada, da mesma absolvendo, em consequência, o arguido.
Quanto ao pedido de indemnização civil formulado, foi tal julgado parcialmente procedente, por provado, vindo o arguido, em razão de tal, a ser condenado a pagar ao assistente a quantia de 45000 escudos, acrescida de juros, à taxa legal (no momento 15 porcento), contados desde a data da notificação para contestar até integral pagamento.
Mais se decidiu que as custas na parte cível fossem suportadas pelo assistente e pelo arguido, na proporção do decaimento.
Inconformado com o acórdão proferido, do mesmo vem interpor recurso o assistente - folha 84 a 85 -, em cuja motivação e em sede conclusiva deduz:
1 - O acórdão recorrido não fez correcta adaptação dos factos à lei nem justa interpretação desta, porquanto, da matéria fáctica apurada e no mesmo vertida, certo é que o arguido se introduziu no interior da habitação particular do recorrente, de noite e por escalamento, escondendo-se debaixo de uma chaminé, e contra a vontade presumida do principal titular do direito da habitação, isto é, do próprio recorrente;
2 - Ainda que a ficha do recorrente - portadora de atraso mental - tivesse autorizado a conduta descrita do arguido, como este sustenta, nunca tal consentimento seria idóneo ou legítimo, pois que aquele não é capaz de se autodeterminar em plenitude - situação que o arguido, enquanto vizinho, conhecia bem -, e indo contra a vontade presumida do dono da casa, o recorrente;
3 - Por isso, o arguido agiu de modo furtivo, a coberto da noite, entrando em habitação alheia, através de uma janela situada a vários metros do solo, tendo-se, depois, escondido debaixo de uma chaminé, onde veio a ser surpreendido pelo recorrente;
4 - Violou o acórdão recorrido o disposto nos artigos 176, n. 1 e 2, do Código Penal, e 26 e 34 da Constituição da República Portuguesa, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que condene devidamente o comportamento criminoso do arguido, o qual violou, de forma grave, o direito de privacidade individual e familiar do recorrente.
Foi o recurso admitido, tendo vindo responder ao mesmo o arguido, nos termos constantes de folha 91 a 93, aí se batendo pela sua absolvição do imputado crime de introdução em casa alheia, e pela improcedência, na totalidade, do pedido cível, já que, em face de absolvição, deixa de ser esta forma de processo a eficaz para condenar, havendo, pois, erro na forma do processo, facto este de conhecimento oficioso, bem como o Ministério Público - ver folha 94 a 104 -, em cuja resposta, e concluindo, sustenta que o acórdão recorrido não merece qualquer reparo, estando correcta a absolvição do arguido do ilícito penal de que vinha acusado, devendo, sim, o mesmo ser mantido, pois não violou qualquer dos preceitos legais referidos pelo recorrente.
Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, sendo que, na vista que dos mesmos teve, a Excelentissíma Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer de folha 109 e verso, no qual nada deduz que obste ao conhecimento do recurso e requer, em suma, que, oportunamente, se designe dia para julgamento.
Foi proferido o despacho preliminar.
São corridos os vistos legais. Na audiência observou-se o ritualismo legal.
O que tudo visto, cumpre decidir.
Vêm dados como provados os seguintes factos, na decisão recorrida e aqui em apreciação, os quais passam, pois, a descrever-se, respeitando a ordem definida ou seguida no acórdão recorrido:
1 - No dia 9 de Dezembro de 1991, pela uma hora e trinta minutos, o arguido A introduziu-se no interior da casa de habitação do assistente B, onde se escondeu na chaminé e onde veio a ser encontrado pelo dono da casa;
2 - Para entrar na dita residência, o arguido subiu para cima de um muro que dista cerca três metros do solo e daí içou-se para uma janela, por onde entrou;
3 - O arguido não tinha autorização do dono da casa para nela entrar, como entrou;
4 - Agiu livre e voluntariamente;
5 - O arguido tinha 19 (dezanove) anos de idade e tem sido sempre vizinho do assistente;
6 - Deram-se sempre bem, o arguido ia muitas vezes a casa do assistente, na companhia de um filho deste, algumas vezes até o assistente lhe matando a fome;
7 - O arguido entrou na casa do assistente, previamente combinado com a filha deste, C, melhor identificada a folha 14, para se encontrarem um com o outro;
8 - Esta tinha, à data, 28 (vinte e oito) anos de idade;
9 - É solteira e tem vivido sempre com os pais, na casa deles;
10 - Frequentou a escola, mas não conseguiu aprender a ler, nem escrever, assinando, porém, o seu nome;
11 - É portadora de algum atraso mental, embora compreenda e se exprima com correcção;
12 - O arguido é solteiro; o pai está acamado; a mãe é doméstica;
13 - O arguido está na tropa, por contrato, auferindo cerca de 80000 escudos mensais, líquidos, como primeiro cabo músico;
14 - Tem o nono ano de escolaridade como habilitação literária e é delinquente primário;
15 - O assistente sofreu arrelias e aborrecimentos em consequência dos factos descritos, tendo efectuado várias deslocações ao Tribunal da Comarca de Fronteira.
Não se provou que o arguido não tivesse autorização de alguém para entrar daquela maneira na casa do assistente e também não se provou que a filha do assistente seja pessoa absolutamente incapaz de se governar a si própria.
Não vindo posta em causa a matéria de facto dada como provada em termos de desencadear a intromissão deste Supremo Tribunal de Justiça a coberto do disposto nos ns. 2 e 3 do artigo 410, preceito para o qual remete o artigo 433, ambos do Código de Processo Penal, não se logrando encontrar a existência dos correspondentes vícios ainda que oficiosamente, tem a mesma de haver-se por definitivamente assente, limitando-se este Supremo Tribunal ao reexame da questão de direito, sua primordial função como Tribunal de recurso, o que, aliás, flui do citado artigo 433.
E, na verdade, a questão que, com o presente recurso, somos confrontados é a de saber se a conduta levada a efeito pelo arguido, tal como apurada ficou, é, em si, na sua objectividade e subjectividade, preenchedora de um ilícito penal, nomeadamente do imputado crime de introdução em casa alheia, previsto e punido pelo artigo 176 ns. 1 e 2, do Código Penal. E porque, desde já avançamos, não vemos que outro ilícito penal ou tipo legal de crime pudesse eventualmente preencher a conduta do arguido, debrucemo-nos sobre o mencionado crime de introdução em casa alheia, previsto naquele artigo 176 do Código Penal, cujo n. 1 estatui: "Quem se introduzir na habitação de outra pessoa, contra vontade expressa ou presumida de quem de direito, ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se, será punido com prisão até 6 meses ou multa até 120 dias"; e acrescenta-se no n. 2: "Se o crime for cometido de noite ou em lugar ermo, ou com emprego de violências, com uso de armas ou mediante arrombamento, escalamento, chaves falsas ou por duas ou mais pessoas, ou simulando autoridade pública, a pena será a de prisão de 1 a 4 anos, salvo se ao meio empregado corresponder pena mais grave, que será, então, aplicada cumulativamente com a dos ns. 1 ou 2, conforme o caso".
O conceito legal - habitação - é agora suficientemente compreensivo para abarcar a definição do consagrado penalista Nelson Hungria: "Qualquer construção, utilizada actualmente, de modo permanente ou transitório, para habitação de uma pessoa ou de uma família ... o próprio caso de saltimbancos, a barcaça em que mora o seu dono, a casa-automóvel dos norte-americanos..." (in comentário ao Código penal, Volume VI, página 207).
No preceito protege-se a inviolabilidade do domicílio, a qual tem garantia constitucional.
"A punição da entrada em casa alheia visa proteger o bem jurídico da inviolabilidade do domicílio e direito à reserva da intimidade ou de vida privada ou familiar..." - V. ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 25 e Maio de 1988.
O artigo 34 de nossa Lei fundamental prescreve no seu n. 1 : "O domicílio e o sigilo da correspondência... são invioláveis". No n. 2 do mesmo comando estatui-se que "A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade Judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei", acrescentando-se no n. 3 que "Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento".
Por seu turno, o artigo 26 da Constituição da República Portuguesa também, inserido no capítulo dos Direitos, liberdades e garantias pessoais, estabelece no seu n. 1 que "A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra e à reserva de intimidade da vida privada e familiar".
O crime de introdução em casa alheia, previsto e punido pelo artigo 176 do Código Penal, tipo legal este que se insere no capitulo VI do título I do Livro II (Parte especial) do Código Penal, capítulo esse referente aos crimes contra a reserva da vida privada não visa a defesa da propriedade. O valor protegido pela respectiva incriminação é o de defesa da liberdade doméstica.
A determinação concreta daquele "quem de direito", mencionado no n. 1 do citado artigo 176 lê-se em Código Penal - Notas de trabalho, da Porto Editora, página 200, "só, caso a caso, pode ser feita, de acordo com as circunstâncias, a experiência comum das coisas, os usos e costumes".
Constituindo intenção do legislador proteger, não o património mas a liberdade doméstica individual, será sempre ao morador que compete, em primeira linha, admitir ou não admitir a entrada ou permanência de estranhos em sua casa, quer esse morador seja proprietário, locatário, usufrutuário, hóspede, etc..
Parece, por isso, poder entender-se que, estando ausente o principal titular, o direito que nessa qualidade lhe cabia passa para os restantes moradores da casa, tais como filhos, subordinados, hóspedes, empregados domésticos ou outros, os quais, todavia, deverão agir de harmonia que a vontade expressa ou presumida do principal titular (v. o Código Penal de 1982, volume 2, de Leal Henriques e Simas Santos, página 237).
Feitas estas considerações, em que, além do mais, trouxemos à ribalta os textos legais pertinentes, temos que, debruçados sobre o caso concreto dos autos e mais propriamente sobre a temática a que respeita o recurso aqui em análise, a questão fulcral que aqui se coloca é ser ou não relevante o consentimento da filha do assistente em que o arguido se introduzisse na habitação não só dela como dos pais, na sequência do combinado entre ambos, sabido que se tratava de uma mulher solteira e adulta, na oportunidade com 28 anos de idade.
Na casa de habitação do assistente a que se reportam os autos, outras pessoas aí moram para além do assistente, ao que se apurou, a mulher do mesmo e a filha C.
Como se escreveu na decisão recorrida, tem de entender-se extensivo a tais pessoas a titularidade do direito que com a norma se visa tutelar, direito esse à intimidade, à privacidade, à liberdade doméstica individual.
Utilizando a lei a expressão "quem de direito", e tratando-se, como se tratava, da residência habitual de qualquer uma das três mencionadas pessoas - assistente, mulher e filha - a autorização de entrada por parte de uma delas afasta a ilicitude criminal. Assim a concluir na decisão recorrida. Provado que o arguido entrou na habitação do assistente, após prévia combinação com a filha deste, ou seja, a C, para aí se encontrarem um com o outro naquele noite, e sendo certo que a mesma C, mau grado ser portadora de algum atraso mental, é pessoa que compreende e exprime-se com correcção, sendo solteira, aí vivendo com os pais e contando, ao tempo, repete-se, 28 anos de idade, afastado ficou o ilícito criminal que se pretende assacar ao arguido.
De trazer à ribalta, como novo problema a colocar, está ainda o facto de saber se a situação não se altera, mesmo admitida a relevância do consentimento dado ao arguido pela filha do assistente, sendo certo que tal entrada se processou de noite, cerca da uma hora e trinta minutos, por uma janela, tendo o arguido subido previamente para cima de um muro, que dista cerca de três metros do solo e, daí, içou-se para a janela por onde entrou, sendo de presumir que o assistente, como dono da casa, não autorizou nem autorizaria que o arguido ali entrasse naquelas circunstâncias e, sobretudo, tendo-se especialmente em conta, o fim visado em tal introdução, decorrente da combinação havida entre a filha do assistente e o arguido. Falámos atrás em que estando ausente o principal titular (o dono da casa, como primeiro beneficiário ou sujeito do direito à reserva da intimidade ou vida privada), o direito que nessa qualidade lhe cabia passe para os restantes moradores da casa... os quais, todavia, deverão agir de harmonia com a vontade expressa ou presumida do principal titular.
Reporta-se perfeitamente normal que nunca o assistente teria consentido na entrada do arguido na sua casa ou habitação nas condições e para os fim que se vem de mencionar e que é lícito concluir - o arguido e a C iriam ter as suas intimidades, quiçá sexuais naquela noite.
Só que se de violação da reserva da vida privada se poderá falar, tal ocorreu, sim, mas na área da privacidade de C, a qual, contudo, foi relevantemente consentida pela própria titular do direito, atente a sua capacidade.
Só indirectamente ou por forma mediata é que o assistente, como titular do "maior" direito protegido foi atingido, sendo certo que a oposição do assistente não estava tanto na entrada do arguido na sua casa - ele que era vizinho e ali se deslocava muitas vezes - mas, sim, face ao fim visado e acordado entre o arguido e sua filha C naquela noite.
A salvaguarda da reserva da vida privada do assistente, que não pode reconduzir-se à privacidade da filha, de maior de idade e que consentiu no comportamento havido por parte do arguido, configura-se, no caso concreto dos autos, como que distanciada ou mesmo fora da intencionalidade do arguido. Não se reporta ela como polo motivador da oposição do assistente quanto à entrada do arguido na habitação, o qual, como se viu, aí entrava com frequência, sendo pessoa das relações da casa - "deram-se sempre bem, o arguido ia muitas vezes a casa do assistente, na companhia de um filho deste, alguma vezes o assistente lhe matando a fome" -, radicando antes tal oposição no fim visada pelo arguido quando se decidiu pela actuação havida, consequente do acordo ou combinação feita com a C. A ideia, ou melhor, o propósito da violação da reserva da vida privada do assistente situa-se fora dos desígnios do arguido. Tal intencionalidade não emerge cristalina do contexto da factualidade recolhida e fixada e, sendo assim, o dolo acaba por ser afastado, pesando positivamente em tal a relevância do acordo havido entre o arguido e a filha do assistente, que acaba por se sobrepor à presumível oposição do assistente.
Sendo a oposição à entrada na habitação elemento constitutivo do tipo legal de crime incriminador, para podermos falar de dolo, sempre era de exigir que o arguido tivesse representado positivamente a sua ausência (de autorização do assistente). O desvalor jurídico da conduta havida, a ilicitude concreta exigível, em termos de subvenção da conduta ao tipo legal de crime em causa encontram-se diluídos no caso em apreciação, afastando, insistimos, o dolo. Neste entender das coisas, temos por acertado que a decisão recorrida fez criteriosa percepção e valoração da matéria de facto, mostrando-se correcta a absolvição do arguido do ilícito penal imputado, por se não verificarem preenchidos "in casu" os seus elementos tipificadores.
E porque no restante mais decidido nada logramos encontrar que aqui mereça censura, em termos de reexame da matéria de direito, incluindo a indemnização fixada e a tributação feita, decidem os juízes negar provimento ao recurso interposto pelo assistente B e confirmar, sim, a decisão recorrida.
Vai o assistente - recorrente condenado em três mil escudos de taxa de justiça, fixando-se procuradoria em um terço, tendo-se na devida conta o disposto no artigo 519, n. 1, do Código de Processo Penal.
Lisboa, 23 de Março de 1994.
Teixeira do Carmo;
Amado Gomes;
Ferreira Dias;
Ferreira Vidigal.
Decisão impugnada:
Acórdão de 7 de Julho de 1993 do Tribunal do Circulo de Portalegre.