FORÇA PROBATÓRIA
PROVA TESTEMUNHAL
Sumário

I - A força probatória material dos documentos autênticos restringe-se aos factos praticados ou percepcionados pela autoridade ou oficial público de que emanam os documentos, já não abarcando, porém, a sinceridade, a veracidade e a validade das declarações emitidas pelas partes perante essa mesma autoridade ou oficial público.
II - Assim, na escritura, quando os autores declararam que o preço da venda era de €40.000,00 (quarenta mil euros), quantia que já haviam recebido, isto significa só haver prova plena de que os autores declararam estes factos e já não que os mesmos correspondem à verdade.
III - Sobre a averiguação desta verdade pode incidir prova testemunhal, como aconteceu nos autos.

Texto Integral

Procº nº 1435/08.6TBMTS.P1- Apelação
Tribunal Judicial de Matosinhos - .º Juízo Cível

Acordam na Relação do Porto


1. - RELATÓRIO


B………. e C………., melhor identificados nos autos, vieram propor a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra a Herança Indivisa Aberta por óbito de D………. e ainda contra E………. e marido F………., G………. e H………., também eles melhor identificados nos autos.
Pedem a condenação solidária dos réus a pagar-lhes a quantia de €10.000,00, acrescida de juros de mora contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegam, para o efeito, que através de escritura pública outorgada em cartório notarial da cidade do Porto, declararam vender a D………., que declarou comprar, um prédio urbano destinado à habitação, composto por casa, sito na freguesia de ………., concelho de Peso da Régua, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mesão Frio sob o n.º 381/………., inscrito na matriz sob o artigo 190.
Nessa mesma escritura, os aqui autores declararam que o preço da mencionada venda era de €40.000,00 (quarenta mil euros), quantia que já haviam recebido.
Sucede que, apesar do declarado, para pagamento do preço da venda o referido D………., aquando da celebração da escritura pública, apenas entregou, através de cheque, o montante de €30.000,00, tendo sido este o único valor que os autores receberam por conta do preço convencionado.
De facto, o mesmo D………. obrigou-se, com a aceitação dos autores, a pagar a restante importância, no montante de €10.000,00, até final de 2007, o qual não chegou a ser pago aos autores nem pelo referido comprador, que entretanto faleceu, nem pelos seus herdeiros, os aqui réus.
A par da herança ré, os réus, como herdeiros do mencionado D………., são também pessoal e solidariamente responsáveis pelo pagamento da mencionada quantia já que ao venderem o imóvel em causa, fizeram seu o preço recebido pela venda do mesmo.

Os réus contestaram a acção, impugnando os factos aduzidos pelos autores na petição inicial, sustentando que o seu pai pagou integralmente o valor do preço convencionado.
Assim, nada devem aos autores.
Concluem pela integral improcedência do pedido.

Foi elaborado despacho saneador, seguido da fixação da matéria de facto assente e da selecção da base instrutória que não mereceu reclamações.

Foi realizada a audiência de julgamento, com observância do inerente formalismo legal.

Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, julgo parcialmente procedente por provada a acção e condeno a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de D………., representada pelos réus E………. e marido F………., G………. e H………., a pagarem aos autores a quantia de €10.000,00 acrescida de juros de mora, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
No mais, decide-se absolver os réus E………. e marido F………., G………. e H………. do pedido.”

E………., e outros, na qualidade de representantes da herança indivisa aberta, por falecimento de D………., não se conformando com a sentença, vieram dela interpor recurso, alegando, em suma,
1. Nos autos supra identificados deu-se como provado que:
2. 2.1.6 Apesar do declarado na escritura, os AA. Apenas haviam recebido do dito D………., para pagamento do preço, o valor pago pelo referido cheque.
3. 2.1.7 Sendo que o mesmo D………, se obrigou, com a aceitação dos AA. a pagar a restante importância, no montante de € 10.000,00 até final de 2007.
4. Montante este que nunca chegou a ser pago aos AA.
5. Tal matéria é correspondente aos quesitos 1; 2 e 3 como provados.
6. Sendo que, a resposta a tais quesitos teve como fundamento a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.
7. Prescreve o artigo 358 nº 2 “a Confissão extra judicial em documento autentico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.”.
8. No caso presente temos como assente que os AA. Confessaram em documento autêntico, à parte contrária, que haviam já recebido o preço da mencionada venda, no montante € 40.000,00, vide “matéria de facto 2.1.4”.
9. A força probatória plena da confissão, relativamente ao recebimento do preço, atestada em escritura pública de compra e venda do imóvel, só pode ser contrariada por meio de prova que mostra não ser verdadeiro aquele facto, não sendo, porém, admissível a prova testemunhal nem a prova por presunções judiciais (cfr. 347, 351, 393 nº 2 e 395 do CC. – Ac. STJ, 2/6/99: BMJ, 488-313 e CJ/STJ 1999 2º -136.
10. Os AA. Confessaram perante o falecido pai dos RR. tudo terem recebido.
11. Não deduziram qualquer incidente de falsidade para obstar à força probatória plena dessa sua confissão extra judicial.
12. O artigo 393 nº 2 do C.C. não admite prova por testemunhas quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.
13. Neste contexto, a matéria transcrita nos pontos 2.1.6, 2.1.7 e 2.1.8 e correspondente aos quesitos 1; 2 e 3, tem que se dar como não provada por assentar exclusivamente em prova testemunhal cuja lei não permite.
14. Decidiu o Mmo. Juiz “a quo”, que o artigo 394, permitirá a prova testemunhal complementar.
15. Ainda assim;
16. Poderiam, declarante e declaratário terem simulado tais declarações.
17. Mas, competia aos AA. Alegarem e demonstrarem qual o negócio dissimulado que pretenderiam fazer e que levou a tais declarações, justificando ainda quais a razões e fundamentos para essa simulação.
18. Compulsados os autos e analisadas as peças processuais em nenhum ponto divisam os recorrentes qual o negócio simulado e quais as razões que poderiam ter motivado tais falsas declarações.
19. Mesmo neste douto entendimento, a prova testemunhal não se mostrava suficiente para responder afirmativamente aos quesitos 1; 2 e 3, por inadmissível.
20. Violou a douta decisão em crise o disposto nos artigos 358º nº 2, 372º, 393º e 394º, todos do C.C.
21. Pelo que, sempre a resposta aos quesitos 1; 2 e 3 deverá dar-se como não provada.
Termos em que deve o presente recurso merecer provimento e em consequência revogar-se a douta sentença em crise e substituir-se por outra que julgando a resposta aos quesitos 1; 2 e 3 como não provada, decida em conformidade, ou seja pela improcedência da acção, como é de inteira Justiça

Os apelados B………. e esposa, apresentaram contra-alegações, concluindo:
1º. É admissível prova testemunhal tendo por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo dos documentos particulares mencionados nos artºs. 373º a 379º do CC quando haja um princípio de prova escrita legitimando a admissibilidade de prova testemunhal complementar;
2º. Sendo certo que a escritura de compra e venda é um documento autêntico que faz prova plena dos factos como praticados pelo notário (art. 363ºe 371.º do CC), a boa verdade é que a declaração do vendedor de já ter sido recebido o preço da venda, é uma mera declaração de um facto sem qualquer propósito confessório da realidade desse facto, sendo, por isso, admissível a demonstração/impugnação através de prova testemunhal, da inexactidão dessa declaração, por inaplicação, ao caso, do disposto no n.º 2 do art. 393.º do CC".
3º. No caso "sub judice", estamos perante uma daquelas situações em que tanto a prova testemunhal como o recurso às presunções judiciais (ex vi do art. 351º do CPC) é de admitir face à existência de dois documentos que, entre si conjugados, integram um começo de prova quanto ao preço efectivamente pago ao autor pelo autor da herança ré;
4º. Por um lado, o contrato de mútuo celebrado entre o I………. e D………., para financiamento da aquisição da mesma habitação, pelo valor integral declarado na escritura de €40.000,00 e, por outro lado, o cheque entregue pelo autor da dita herança ao ora autor, com data da escritura, no montante de €30.000,00;
5º. Acresce que, contrariamente ao vertido pelos Apelantes, a prova de que as declarações (recebimento da totalidade do preço) produzidas pelos outorgantes em presença do oficial público (notário) não correspondem à verdade não implica a necessidade de arguir a falsidade do documento por ele elaborado;
6º. E, por outro lado, inexiste qualquer simulação de tais declarações (recebimento da totalidade do preço) ou negócio dissimulado;
7º. Não viola, pois, a douta sentença recorrida o preceituado nos artºs 358º, nº 2, 372º, 393º e 394º, todos do C.C., impondo-se a resposta dada aos quesitos 1º, 2º e 3º da base instrutória.
Termos em que
Deve negar-se provimento ao presente recurso mantendo-se nos seus precisos termos a douta sentença impugnada, assim se fazendo Justiça.

Nos termos das disposições conjugadas dos artºs 685-A,º nºs 1 e 3, do CPC, na redacção do Dec-Lei nº 303/207, de 24/VIII, são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se força probatória plena da escritura pública abrange o recebimento do preço, só podendo ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro aquele facto, não sendo admissível a prova testemunhal nem

2.FUNDAMENTAÇÃO.
2.1 O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
2.1.1. No dia 13 de Agosto de 2007, faleceu D……….., no estado civil de divorciado, sem deixar testamento ou qualquer outra declaração de última vontade;
2.1.2. Deixou como únicos e universais herdeiros E………., casada, no regime de comunhão de adquiridos com F………., H………. e G………., ambos solteiros;
2.1.3 Através de escritura pública lavrada no dia 11 de Janeiro de 2007, no Cartório Notarial de J………., sito na Rua ………., n.º …, .º Esqº, na cidade do Porto, exarada a fls. 129 a 131 do Livro n.º 135, os autores declararam vender a D………., que declarou comprar, o seguinte imóvel: prédio urbano destinado à habitação, composto por casa, sito no ………., freguesia de ………., concelho de Peso da Régua, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mesão Frio sob o n.º 381/………., inscrito na matriz sob o artigo 190;
2.1.4 Nessa mesma escritura, os aqui autores declararam que o preço da mencionada venda era de €40.000,00 (quarenta mil euros), quantia que já haviam recebido
– tudo conforme certidão da escritura pública de compra e venda junta a fls. 19 e segs. cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
2.1.5 Para pagamento do preço da venda o referido D………., aquando da celebração da escritura pública, entregou aos autores um cheque emitido sobre o I………., com o n.º ………., datado de 2007.01.11, que obteve boa cobrança;
2.1.6. Apesar do declarado na escritura pública, os autores apenas haviam recebido do dito D………., para pagamento do preço, o valor pago pelo referido cheque;
2.1.7. Sendo que o mesmo D………. se obrigou, com a aceitação dos autores, a pagar a restante importância, no montante de €10.000,00 até final de 2007;
2.1.8 Montante este que nunca chegou a ser pago aos autores;

3. Factos versus Direito

Efectivamente, os documentos autênticos fazem prova, por si mesmos, da sua proveniência ou paternidade, e prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles estão atestados, de acordo com o disposto pelo artigo 371º, nº 1, do Código Civil (CC).
Na dualidade de espécies de documentos, autênticos ou particulares, os primeiros são elaborados pelas autoridades públicas competentes nos limites da sua competência ou pelos notários no círculo de actividade que lhe é conferido ou outro oficial público provido de fé pública, e os últimos são caracterizados por exclusão de partes (artigo 363º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
A qualificação do documento como autêntico depende, porém, de a autoridade ou o oficial público que o exara não estar impedido de o exarar e ser competente em razão da matéria e do lugar para o efeito (artigo 369º, nº 1, do Código Civil).
Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivos, bem como dos que neles são atestados com base na percepção do documentador, sendo que o mero juízo pessoal dele apenas vale como elemento sujeito à livre apreciação do tribunal (artigo 371º, nº 1, do Código Civil).
A força probatória dos documentos autênticos – plena qualificada - só pode ser ilidida com base na sua falsidade, ou seja, por virtude de neles se referirem, como tendo sido objecto da percepção do notário ou oficial público algum facto que não ocorreu, ou praticado por eles acto que não o foi (artigo 372º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
Portanto, o que importa frisar é que a força probatória material dos documentos autênticos restringe-se aos factos praticados ou percepcionados pela autoridade ou oficial público de que emanam os documentos, já não abarcando, porém, a sinceridade, a veracidade e a validade das declarações emitidas pelas partes perante essa mesma autoridade ou oficial público. É, aliás, este o sentido dominante da jurisprudência.
No caso da escritura pública em causa, o valor probatório pleno deste documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou se contém no mesmo, mas somente aos factos que se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas percepções da entidade documentadora. Se, no documento, o notário afirma que, perante ele, o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado - Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, pags. 327 e 328.
Bem elucidativo é o Acórdão desta Relação, Procº nº 9851114, de 23-01-98, in www.dgsi.pt.
I - Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade documentadora ou oficial público, e dos que sejam por este percepcionados.
II - Se um dos outorgantes da escritura nesta declara que pagou o preço e o outro que o recebeu, apenas resulta provado que as declarações foram produzidas, podendo o seu conteúdo ser contrariado por qualquer meio de prova.
III - Litiga com má-fé quem alega ter pago o preço, pois é um facto pessoal, e se vem a provar que isso não corresponde
Quer dizer, na escritura, quando os autores declararam que o preço da venda era de €40.000,00 (quarenta mil euros), quantia que já haviam recebido, isto significa só haver prova plena de que os autores declararam estes factos e já não que os mesmos correspondem à verdade. Sobre a averiguação desta verdade pode incidir prova testemunhal, como aconteceu nos autos.
Pelo exposto, delibera-se julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Conclusões.
I - A força probatória material dos documentos autênticos restringe-se aos factos praticados ou percepcionados pela autoridade ou oficial público de que emanam os documentos, já não abarcando, porém, a sinceridade, a veracidade e a validade das declarações emitidas pelas partes perante essa mesma autoridade ou oficial público.
II - Quer dizer, na escritura, quando os autores declararam que o preço da venda era de €40.000,00 (quarenta mil euros), quantia que já haviam recebido, isto significa só haver prova plena de que os autores declararam estes factos e já não que os mesmos correspondem à verdade. Sobre a averiguação desta verdade pode incidir prova testemunhal, como aconteceu nos autos.

Custas pelos apelantes.

Porto, 26 de Janeiro de 2010
Ana Lucinda Mendes Cabral
Maria do Carmo Domingues
José Bernardino de Carvalho