VIOLAÇÃO DE SEGREDO POR FUNCIONÁRIO
VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA
PECULATO
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
REQUISITOS
Sumário

I - Pratica o crime do n. 1 do artigo 434 do Código Penal, o carteiro que desvia cartas que continham dinheiro e dele se apropriava em proveito próprio, destruindo as que lhe não interessava.
II - Igualmente a sua conduta integra o crime de peculato do artigo 424 do Código Penal.
III - Para que funcione a alteração especial da pena do artigo 73 do Código Penal, é necessário que se provem circunstâncias que diminuam a ilicítude do facto e a culpa do agente.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1 - A, funcionário dos CTT e com os demais sinais identificadores dos autos, foi condenado na Comarca de Santa Comba Dão, com intervenção do Tribunal Colectivo, na pena única de quatro anos e seis meses de prisão e cinquenta dias de multa à taxa de quinhentos escudos, perfazendo a quantia de vinte e cinco mil escudos ou, em alternativa a esta, na pena de trinta e três dias de prisão, como autor dos seguintes crimes, na forma continuada: a) De violação de segredo de correspondência previsto e punido pelo artigo 434, n. 1, alíneas a) e b), do
Código Penal, a que o Tribunal Colectivo fez corresponder a pena de um ano de prisão; b) De peculato, previsto e punido pelo artigo 424, n.
1, conjugado com o artigo 437, n. 1, alínea c), do mesmo Código, a que o Tribunal Colectivo fez corresponder a pena de quatro anos de prisão e cinquenta dias de multa, à referida taxa ou, em alternativa, na citada pena de trinta e três dias de prisão.
2 - Inconformado com a decisão, interpôs recurso para este Supremo Tribunal, motivando-o, em conclusão, como segue: a) Foi pronunciado e condenado pela prática de dois crimes, na forma continuada, de peculato e violação de correspondência - artigo 424, n. 1 e 434, 1, alíneas a) e b) do Código Penal; b) Não se provou que tivesse por fim, ao abrir a carta, conhecer o seu conteúdo, mas tão só apoderar-se do dinheiro; c) Não se tendo provado o dolo especifico não poderia ser condenado pelos ilícitos das alíneas a) e b), maxime esta última; d) No preceito incriminador do artigo 424 (peculato) está ínsito o bem jurídico da propriedade (dinheiro e outras coisas móveis) que, em maior ou menor grau, protege os valores emanentes à do artigo 434, tendo-se ofendido a regra de ne bis in idem; e) A matéria de facto dada como provada, desde a circunstância reiterada da infracção mitigadora da culpa, as condições de vida do recorrente, o facto de ser primário, a confissão espontânea dos factos e a sua inserção social, determinariam a aplicação de uma pena mais próxima do mínimo legal, especialmente atenuado nos termo do artigo 73 do
Código Penal; f) Reduzida a punição, verificam-se todos os pressupostos para beneficiar da suspensão da pena de prisão e multa já que, através do juízo de
"prognose social" era possível confiar que bastaria a simples censura do facto e a ameaça da pena para o afastar de futuros crimes; g) Foram violados, entre outros, os preceitos constantes dos artigos 72, 73, 74, 78 e 48, todos do
Código Penal.
3 - O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público pronunciou-se pela não rejeição do recurso e pelo prosseguimento dos autos até julgamento em audiência.
E, relativamente à situação prisional do arguido - que se encontra preso preventivamente - atendendo ao que dispõem os artigos 209 e 215 do Código de Processo
Penal, sendo de dois anos o prazo de prisão preventiva máximo que poderá sofrer e que terminará em 24 de Junho de 1995 e porque não se alteraram as circunstâncias que a determinaram, pronunciou-se no sentido de se manter tal situação.
4 - Foram corridos os vistos legais mas, face à publicação da Lei n. 15/94, após nova vista no processo, o Ministério Público expressou o entendimento de que o perdão de um ano de que deve beneficiar nos termos daquela Lei deve ser aplicado oportunamente, considerando a pena imposta.
5 - Realizou-se a audiência de julgamento com observância das formalidades legais, cumprindo apreciar e decidir:
6 - É a seguinte a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal Colectivo: a) Desde, pelo menos, o inicio do ano de 1993 e até 24 de Junho, data em que foi detido, o arguido retirou cerca de duzentas cartas registadas, na sua maioria oriundas do estrangeiro; b) Tal comportamento ocorria entre as 6 horas e 30 minutos e as 7 horas, altura em que o arguido se encontrava sozinho na Estação de Correios de
Carregal do Sal; c) Ao arguido incumbia a função de tratamento da correspondência - dividir e preparar para distribuir - mas a partir do horário de abertura da estação; d) Para o efeito, chegava à Estação dos Correios cerca de 20 a 30 minutos antes do seu horário de trabalho que, tal como o dos restantes colegas, começava às 7 horas; e) Após retirar as cartas que lhe interessavam ia colocá-las no seu veículo que, ordinariamente, se encontrava estacionado nas proximidades dos correios; f) Na posse de tais cartas, abria-as e, caso contivessem dinheiro, deste se apoderava e gastava em proveito próprio e, tudo o resto, bem como as que não continham dinheiro, destruía e abandonava ao longo do percurso que fazia desde a Estação dos Correios até à sua residência; g) O arguido, para afastar eventuais suspeitas que pudessem sobre si recair, as cartas que retirava e de que se apoderava pertenciam ao giro de outros colegas; h) Da forma descrita se foi apoderando de quantias de montante global não apurado; i) Exercia funções nos Correios de Carregal do Sal, como funcionário do quadro, desde há cerca de um ano; j) Antes e durante três ou quatro anos, trabalhou por contratos no Carregal do Sal e concelhos limítrofes, nomeadamente em Santa Comba Dão; l) Sempre agiu de forma livre, voluntária e consciente e, com o intuito concretizado, de fazer suas as quantias em numerário que no interior das cartas de que se apoderou, se encontravam; m) Isto, apesar de saber que tais quantias lhe não pertenciam e que agia contra a vontade e sem autorização dos respectivos titulares; n) Sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e não se absteve de actuar; o) Vivia com uns tios, auferia de vencimento 76000 escudos por mês, acrescidos de subsídio de alimentação, não se encontrando ninguém a expensas suas; p) Durante a infância teve um ambiente familiar mau, não tendo conhecido o pai, e na adolescência foi para
Lisboa onde, abandonado à sua sorte, se refugiou no
álcool, chegando a fazer tratamento de recuperação no
Centro de Recuperação de Alcoólicos de Coimbra, ficando recuperado; q) Na Vila de Carregal do Sal foi sempre um homem disponível para tudo, educado e bem relacionado socialmente, chegando a ser vogal da Direcção do
Clube de Futebol da mesma Vila; r) Eram-lhe confiados, no seu emprego, valores e quantias elevadas em dinheiro, não tendo os CTT qualquer razão de queixa no cumprimento dessas tarefas; s) Confessou os factos dados como provados e, actualmente, mostra-se arrependido; t) É primário.
7 - Como resulta do anteriormente relatado, são as seguintes as questões de direito suscitadas no recurso: a) A violação da regra ne bis in idem, por não se ter provado que o arguido tenha actuado com "dolo específico" no tocante à prática do crime de violação de segredo de correspondência, que assim constituiu um meio para se apoderar do dinheiro contido nas cartas, esgotando-se a protecção jurídico-penal com a punição do crime de peculato; b) A severidade da pena aplicada, pois o Tribunal
Colectivo, ponderando devidamente as circunstâncias provadas a favor do arguido, deveria ter-se decidido por uma pena mais próxima do limite mínimo legal e especialmente atenuado nos termos do artigo 73 do Código Penal e também suspendê-la na sua execução por estarem verificados os correspondentes pressupostos.
8 - Não assiste razão ao recorrente. Quanto ao primeiro meio de impugnação invocado, cabe reconhecer e face à matéria de facto provada, que a acção censurada ao recorrente se subsume claramente na descrição penal típica da alínea a) do n. 1 do artigo 434 do Código
Penal.
Em tal descrição, nos seus elementos integradores, não se exige que o agente se determine pelo propósito de conhecer o conteúdo das cartas, bastando-se a lei com o acto da supressão ou subtracção delas, confiadas aos serviços postais, praticado por funcionário e quando acessíveis em razão das suas funções.
Relativamente à conduta descrita na alínea b) a sua redacção é um tanto ambígua mas a conjunção "ou" aponta para duas acções distintas: na primeira parte pune-se o acto de abrir carta, encomenda ou outra comunicação, na segunda o acto de tomar conhecimento do seu conteúdo sem as abrir. Que o recorrente abriu várias cartas resulta com certeza da matéria provada.
A exigência do "dolo específico" não é expressa no preceito em exame nem se antolha implícita, contrariamente ao que acontece com o estatuído no n. 2 do artigo em que tal exigência é imposta, embora a lei cinja a aprovação ao caso das telecomunicações.
No sentido de que nas condutas descritas no n. 1 se exige tão só o dolo genérico, cfr. Maia Gonçalves, no
"Código Penal Português - anotado e comentado", 7
Edição página 833.
Sabe-se que aos elementos essenciais do dolo, comuns a todos os crimes, pode acrescer outro elemento essencial, exigível relativamente a algum crime especial e nesse caso o dolo denomina-se "dolo específico", não bastando, então, e consciência e vontade do facto, exigindo-se ainda um determinado
"fim", para além do próprio facto ilícito.
E que tal exigência de um "fim" ulterior ao realizado com o acto ilícito pode encontrar-se claramente formulada na norma incriminadora ou nela estar implícita, tudo dependendo da técnica legislativa utilizada, nem sempre uniforme (cfr. Cavaleiro de
Ferreira, "Lições de Direito Penal - Parte Geral, I,
1992, páginas 299/300).
Ora, no preceito em análise, não pode dizer-se que tal exigência esteja claramente formulada ou mesmo nele implícita. Tomar conhecimento do conteúdo, sem abrir a carta, não transparece dos factos provados nestes autos.
Aliás, não interessa aprofundar o tema porquanto a matéria de facto provada se integra, sem dificuldades, na previsão da alínea a), que se basta com a simples supressão ou subtracção das cartas, independentemente do fim prosseguido pelo agente.
Com efeito, o comportamento descrito nessa alínea é um dos modos que a lei considerou idóneos para a violação do bem jurídico protegido. Como no resto do tipo legal, esse bem é o da inviolabilidade da correspondência que constitui um direito fundamental dos cidadãos, constitucionalmente garantido (V. artigo 34 da Constituição da República).
Mas o tipo legal, como resulta da sua colocação sistemática no Código protege ainda o interesse da integridade da função pública, interesse primário do
Estado (Ibidem, artigo 266); e a punição estabelecida visa reagir contra a violação dos deveres de fidelidade no exercício das funções e contra a violação dos direitos dos utentes dos serviços postais e da confiança na lisura dos funcionários responsáveis, que não devem prevalecer-se das funções que exercem para atentarem contra a inviolabilidade da correspondência e do respectivo segredo. Por alguma razão o tipo legal está incluído no Capítulo IV do Título V da Parte
Especial, que tem precisamente por epigrafe "Dos crimes cometidos no exercício das funções públicas".
Segue-se que a punição do peculato não absorve a do crime de violação de segredo de correspondência, constituída pela supressão ou subtracção de cartas, encomendas, telegramas ou outra comunicação confiada ao serviço dos Correios, Telégrafos e Telefones - ou telecomunicações.
Não estamos, por conseguinte, e no caso sub júdice, perante um concurso aparente de normas, em particular, não pode falar-se de consumação, porquanto o preenchimento do tipo legal do peculato (mais grave) não esgota a protecção penal devida pelo tipo legal da violação do segredo de correspondência (menos grave).
Um e outro protegem interesses e bens jurídicos distintos e não coincidentes e o último não é um
"delito obstáculo" preordenado a evitar ou dificultar a agressão à propriedade por funcionários ou agentes públicos.
O caso concreto em exame corrobora estas proposições: como resulta da matéria de facto, o arguido não se limitou a apropriar-se dos dinheiros contidos nas cartas que subtraiu.
Depois de retirar do giro legal os que supunha interessarem-lhe, destruiu e abandonou mesmo aqueles que, uma vez abertos verificou não conterem dinheiro - e com isso violou necessariamente o interesse dos expedidores e destinatários da correspondência, dignos de protecção penal autónoma.
A conclusão de que, no caso, foram violados interesses distintos, protegidas, em tipos legais diferentes, não
é afectada pelo preceito do n. 2 do artigo 434 que, aliás, só rege para as telecomunicações e não para a comunicação por carta. Com efeito, não deixaria de ser absurdo que o legislador quisesse sancionar com uma pena menos grave (prisão até 4 anos) um comportamento que é adequadamente subsumível na previsão do artigo
424, punido com pena mais grave (prisão de 2 a 8 anos e multa até 100 dias, se outra, também mais grave, não couber por força de outra disposição legal).
O n. 2 do artigo 434 que, repete-se, só contempla a violação do segredo no caso das telecomunicações, só opera quando a intenção de conseguir um benefício material ou causar prejuízo a outrem se dirigir a actos distintos da apropriação que constitui elemento típico do crime de peculato do artigo 424. Com efeito, é possível congeminar situações em que a situação de conseguir benefício patrimonial ou material ou de causar prejuízo a alguém se concretize por outros meios que não o da apropriação directa de dinheiro ou coisa móvel. Basta pensar nas hipóteses descritas nas alíneas c) a e) do n. 1 do artigo 434.
Ainda no campo da distinção entre o âmbito de aplicação das leis antigas em confronto, não é despiciendo recordar o que disse o autor do Anteprojecto do Código no seio da Comissão Revisora quanto à proposta de agravação da pena no crime de violação de segredo de correspondência, em comparação com a do artigo 295 do
Código então vigente: tal agravação era o correlato do
"maior perigo" e da "maior gravidade" daquela violação
(cfr. Actas da Comissão - Parte Especial, página 491).
Mas esse perigo e essa paridade referiam-se a todo o preceito e não apenas à agravação decorrente dos factos descritos no seu n. 2. Tal orientação inculca a ideia da especial relevância dos bens jurídicos protegidos, ainda que a situação do agente não fosse ponderada à obtenção de vantagens materiais ou de causar prejuízo a outrem.
Enfim, no crime de peculato nenhuma intenção especial se exige no agente, capaz de caracterizar o "dolo específico".
Por conseguinte, o Tribunal Colectivo decidiu bem ao avaliar e qualificar os factos provados e ao concluir pela existência de um concurso de crimes efectivo e verdadeiro.
9 - No que concerne ao segundo meio de impugnação deduzido, importa penderar e aceitar que as penas parcelares se situam mais próximas dos limites mínimos dos preceitos incriminadores do que dos limites máximos.
O Tribunal atendeu à valia do conjunto de circunstâncias atenuantes que deu como provadas e não deixou de ter em especial consideração os dados relativos à personalidade do arguido.
Não podia esquecer que se tratou de infracções graves, que o grau de ilicitude foi elevado e que o modo de execução e a gravidade das consequências foram particularmente censuráveis.
Quanto ao modo de execução, assume particular relevância o facto de o arguido ter planeado os crimes, em condições de tempo e lugar propício e evitar suspeitas, chegando à Estação dos Correios antes do horário normal de abertura e retirando aquelas cartas que pertenciam ao giro de outros colegas.
A intensidade do dolo foi, consequentemente, elevada.
Por outro lado, o apurado quanto às suas condições pessoais e à sua situação económica não consente esse juízo de benevolência justificativo de um conteúdo de culpa acentuadamente diminuído: o arguido agiu por cupidez censurável.
No que toca à personalidade, os elementos apurados, embora denotem a existência de circunstância desfavoráveis nos períodos da infância e da adolescência, não apontam para uma relação de causalidade com a conduta criminosa, tendo esta lugar muito depois daqueles períodos. Antes denotam uma certa falta de preparação para manter uma conduta licita, exigível numa pessoa que provou ter qualidades positivas, como a sociabilidade fácil e a reputação adquirida no seio dos serviços que nele depositaram confiança ao ponto de lhe confiarem valores e quantias elevadas em dinheiro.
Por tudo quanto fica exposto, não pode considerar-se desproporcionada, em função da culpa, a pena aplicada.
Corolariamente não se justifica a pretendida atenção especial à luz do artigo 73 do Código Penal, até porque o arguido não logrou provar nenhuma das circunstâncias previstas na norma como "exemplos-padrão" ou a estes assimiláveis.
O próprio arrependimento a que se refere a alínea c) do preceito não foi demonstrado, em particular por não se ter provado que o arguido tivesse encarado a reparação dos lesados até onde lhe era possível. A este propósito, o Tribunal Colectivo salientou o valor relativo ao arrependimento, por ser posterior à sua detenção em flagrante, com a correspondência subtraída na sua posse. Por razões idênticas, a confissão dos factos carece de sensível valor atenuativo.
Em conclusão: o Tribunal Colectivo decidiu bem, na avaliação a que procedeu dos factos e da personalidade, no sentido da inexistência de fundamento para a atenuação especial da pena. E assim improcede a pretensão da suspensão da execução da mesma, por falta do pressuposto formal do n. 1 do artigo 48 do Código
Penal.
Também não merece censura o critério adoptado para a determinação da pena única à luz do artigo 78 do mesmo
Código.
10 - Consequentemente, decidem negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 4 UCs e procuradoria mínima.
Nos termos do artigo 8, n. 1, alíneas b) e d), e n. 4 da Lei n. 15/94 de 11 de Maio, declarou perdoadas a pena de multa e um ano da pena de prisão, sob a condição referida no artigo 11 da mesma Lei.
Lisboa, 30 de Novembro de 1994.
Lopes Rocha;
Teixeira do Carmo;
Amado Gomes;
Ferreira Vidigal.
Decisões impugnadas:
Acórdão de 24 de Novembro de 1993 de Santa Comba Dão.