POSSE DE BOA FÉ
OBRIGAÇÃO
RESTITUIÇÃO
ACTUALIZAÇÃO
NULIDADE
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
BENFEITORIAS NECESSÁRIAS
PROVA DOCUMENTAL
FORÇA PROBATÓRIA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
MÁ FÉ
Sumário

I - O conceito de boa fé, no instituto da posse, é de natureza psicológica e, assim, possui de boa fé quem ignora que está a lesar os direitos de outrem.
II - A obrigação de restituir não tem que ser actualizada, de tal modo que a produção dos seus efeitos é excluída ex tunc (a partir do momento da formação do negócio) e não ex nunc (a partir da data da declaração de nulidade).
III - A posse ou situação de facto gerada com base em acto nulo
é regida pelas regras da nulidade e não pelas do enriquecimento sem causa.
IV - Os princípios válidos quanto às benfeitorias necessárias obrigam à indemnização do possuidor, independentemente de possuir de boa ou de má fé.
V - As declarações atribuídas ao autor do documento constituem elemento de prova que o tribunal aprecia livremente.
VI - A parte que, sabendo-o, articula factos contrários à verdade, litiga de má fé.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. A e mulher B, C e mulher D, E e mulher F e G - Recuperadora Têxtil da Moita Limitada, intentaram a presente acção contra H e mulher I, J e mulher L e M e N e O - Fábrica de Mungos e Pasta Limitada, pedindo que: a) seja declarado nulo o negócio que por ventura possa ter existido entre Autores e Réus, com efeitos retroactivos, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente; b) sejam condenados os Réus a reconhecer que os 1., 2. e 3. autores são donos dos prédios rústicos identificados no artigo 1 da petição inicial, sob as alíneas a) e b) nas proporções aí indicadas por as haverem comprado ao P, que, por sua vez, os adquirira por usucapião e, a restituí-los aos Autores livres de pessoas e bens; c) sejam os Réus condenados a reconhecer ser a 4. Autora a dona legítima do prédio urbano com todo o equipamento descrito em 2, constituindo numa empresa comercial por a ter constituído e organizado e a restitui-la àquela Autora; d) sejam os Réus solidariamente condenados a indemnizarem os Autores na quantia que se vier a liquidar em execução de sentença; e) decida-se que os Autores têm o direito de cancelar qualquer registo que dos mesmos prédios tenha sido feito pelos Réus ou de qualquer registo que entretanto venha a ser feito pelos mesmos ou por outrém a quem em cadeia seja transmitido.
Os três primeiros autores fundamentam o seu pedido de propriedade na usucapião.
A quarta autora fundamenta a sua propriedade na construção do barracão.
Todos atribuem a ocupação abusiva dos prédios e de barracão aos Réus.
Fundamentam o pedido de indemnização no corte de eucaliptos pelos Réus.
Fundamentam o pedido de nulidade na falta de forma do negócio que esteve na base da ocupação dos prédios pelos Réus.
Os Réus contestaram e alegando:
- a quarta autora tem como sócios os três primeiros autores e Q e R;
- os três primeiros autores disponibilizaram os terrenos à sociedade que neles construiu o barracão. Tendo-se desentendido resolveram alienar o património com que tinham planeado integrar o património social;
- venderam esse património ao H e filhos;
- o H entregou ao Ladeira 650000 escudos e aceitou uma letra de 640000 escudos. O resto seria pago com a escritura;
- os Réus entraram na posse do terreno e do barracão e passaram a exercer a actividade fabril e a cultivar os terrenos.
- Fizeram obras no barracão.
- Julgam-se donos dos terrenos e barracão por acessão industrial.
- Não lhes sendo reconhecido esse direito julgam-se credores das importâncias desembolsadas por causa do negócio, das obras e do cultivo.
Os Réus deduziram reconvenção, formulando os seguintes pedidos: a) condenação dos 1., 2. e 3. autores e bem assim dos intervenientes P e mulher a reconhecerem o direito de propriedade dos 1., 2. e 3. Réus sobre a totalidade dos prédios referidos nos artigos 22 e 23 da contestação, por acessão industrial imobiliária, ou, em alternativa; b) condenação dos 1., 2. e 3. Autores e bem assim dos intervenientes Q e R, a indemnizar os mesmos Réus na quantia de 8614606 escudos e bem assim juros legais desde a citação; c) condenação dos Autores como litigantes de má fé em multa e indemnização a favor dos Réus.
Os Réus provocaram a intervenção principal de P e mulher, S e mulher, Q e R, os quatro primeiros por serem comproprietários dos terrenos que os Réus pretendem adquirir por acessão; os dois últimos por serem intervenientes no negócio.
Procedeu-se a julgamento tendo sido proferida sentença no sentido de:
1) Procedência do pedido formulado em a) quanto à nulidade do negócio;
2) procedência do pedido formulado em b);
3) procedência do pedido formulado em c);
4) condenar os Réus a restituírem aos Autores as propriedades reconhecidas, no momento em que lhes foi paga a indemnização adiante mencionada;
5) condenação dos Réus a pagarem aos três primeiros autores a indemnização que vier a ser liquidada em execução de sentença, correspondente ao valor de 40 metros cúbitos de madeira de eucalipto;
6) condenação dos Autores a pagarem ao Réu H no momento em que aos Autores forem restituídos os imóveis e equipamentos a importância de 6605953 escudos e 50 centavos e juros;
7) condenação dos Autores a pagarem aos Rés a importância que vier a ser liquidada em execução de sentença correspondente às despesas efectuadas com obras e trabalhos de conservação e melhoramentos dos mencionados prédios urbanos;
8) condenação solidária dos intervenientes Q e R, nos termos referidos em 6);
9) absolvição dos autores e intervenientes do pedido formulado, por via reconvencional, do reconhecimento, a favor dos Réus, do direito de propriedade sobre os prédios rústicos e urbano acima identificados;
10) condenação dos Autores e do interveniente R como litigantes de má fé.
2. Os Autores apelaram. A Relação de Coimbra, por acórdão de 15 de Junho de 1994, deu parcial provimento ao recurso, alterando a sentença do modo seguinte: a) condenamos os Autores a pagarem ao Réu H no momento em que aos Autores foram restituídos os imóveis e equipamentos supra referidos a importância de 1290000 escudos, acrescida de juros remuneratórios legais a partir da citação; b) condenamos os Autores a pagarem aos Réus as despesas efectuadas em trabalhos de conservação cultura e limpeza dos terrenos plantados de eucaliptos até ao valor dos eucaliptos cortados pelos Réus; c) revogar a decisão que condenou os Autores em multa e indemnização como litigantes de má fé.
No mais mantemos a sentença.
3. Os Réus pedem revista, formulando as seguintes conclusões:
1) Deve ser revogado o douto acórdão da Relação de Coimbra na parte em que julgou os recorrentes como possuidores de má fé, devendo os mesmos ser julgados como possuidores de boa fé e em consequência disso condenar os recorridos a pagar aos recorrentes no momento em que àqueles forem restituídos os imóveis e equipamentos referidos nos autos a quantia de 4964582 escudos relativa ao capital de 1290000 escudos, e os juros remuneratórios (frutos civis) sobre aquela importância e vencidos até hoje, acrescido de juros vincendos até integral pagamento.
2) Deve ser revogado o douto acórdão da Relação de Coimbra que não considerou terem os recorrentes direito a ser-lhes pagas as despesas por si efectuadas com obras e trabalhos de conservação e melhoramentos no prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 4185.
3) Deve ser revogado o douto acórdão da Relação de Coimbra que não considerou que os recibos de folhas 49 e 52 da providência cautelar apensa, tivessem sido pagos pelos recorrentes, devendo decidir-se no sentido em que o Tribunal Colectivo decidiu, de que tais recibos foram pagos pelos recorrentes. Em consequências disso:
4) Devem os recorridos ser condenados a pagar aos recorrentes no momento em que àqueles forem restituídos os imóveis e equipamentos referidos nos autos a quantia de 3476558 escudos relativos ao capital de 922500 escudos que é a importância paga pelos recorrentes a E, Limitada e à T, Limitada, e aos dos juros remuneratórios (frutos civis) sobre aquela importância, vencidos até hoje, acrescidos dos juros vincendos até integral pagamento.
5) Deve ser revogado o douto acórdão da Relação de Coimbra que não condenou os recorridos como litigantes de má fé, devendo esse Supremo Tribunal manter a decisão do Tribunal Colectivo.
6) Deve ser revogado o douto acórdão da Relação de Coimbra que condenou os recorrentes em 3/4 das custas e os recorridos em 1/4 parte, devendo esse Tribunal manter a decisão do Tribunal Colectivo.
7) O acórdão recorrido violou os artigos 289, 374, 376, 473, 479, 480, 1260 n. 1, 1270, 1273 e 1275, todos do Código Civil e ainda o artigo 456 do
Código de Processo Civil.
Os recorridos não apresentaram contra alegações.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
Elementos a tomar em conta:
1) No dia 21 de Abril de 1970, por escritura pública, P e mulher, declararam vender a U e mulher, e estes declararam comprar, 1/3 indiviso de um terreno com eucaliptal sito no Covão do Souto, inscrito na matriz sob o artigo 4187, pela quantia de 5000 escudos.
2) No dia 14 de Fevereiro de 1980, por escritura pública, P e mulher declararam vender a E e mulher, A, C e mulher e S e mulher, em comum e partes iguais, por 70000 escudos, e estes declararam aceitar a venda de 2/3 indivisos de um terreno com pinheiros, no Covão do Souto, inscrito na matriz sob o artigo 4187 e de um terreno, com pinheiros, sito no Covão do Souto e inscrito sob o artigo 4190.
3) O prédio rústico, composto de pinhal, sito no Covão do Souto, artigo 4187, está inscrito na matriz em nome de U, na proporção de 1/3 e na proporção de 2/3 em nome de E, A, C e S e tem a área de 1000 metros quadrados.
4) O prédio inscrito sob o artigo 4190 é composto de pinhal, está inscrito em nome de E, C, A e S, e tem a área de 3500 metros quadrados;
5) Por escritura pública de 25 de Junho de 1981, foi constituída a sociedade por quotas, com a denominação de G - Recuperadora Têxtil da Moita, por Q, R, E, C e A;
6) Sob o artigo matricial urbano 4185, e em nome de H, J e N, está inscrito um barracão de rés/chão em 12 vãos, destinado a armazenagem de matérias primas para a indústria de lanifícios, sito em Carregal Fundeiro, com a área de 424 metros quadrados;
7) O P e mulher sempre roçaram o mato, cortaram pinheiros, extraíram resina, aproveitaram lenhas e plantaram eucaliptos nos prédios inscritos na matriz sob os artigos 4187 e 4190, durante mais de 30 anos antes das vendas referidas em 1) e 2), sem interrupção à vista da generalidade das pessoas e sem oposição de quem quer que fosse, na convicção de serem donos;
8) os Autores continuaram, a partir da venda daqueles prédios, a neles roçar matos, cortar pinheiros, extrair resinas, aproveitar lenhas e plantar eucaliptos, dia após dia e sempre que necessário,
à vista da generalidade das pessoas, sem oposição de quem quer que fosse na convicção de serem donos;
9) A Sociedade G, por intermédio dos autores maridos, procederam a escavação, aberturas de caboucos, aquisição de materiais de construção;
10) E isso numa parte dos prédios inscritos na matriz sob os ns. 4187 e 4190;
11) E construíram o prédio inscrito sob o artigo 4185 descrito em 6);
12) Adquiriram 1 grané, marca "Fabulaz", com motores eléctricos de G.H.P. 3HP; 1 carda marca "Aslo, Lees e Cir" com purado serra e motores eléctricos de G.H.P.; 1 guilhotina com automático; 3 cardas "1,5 Jac", com motores eléctricos de G.H.P.; 1 esfarrapadeira "AMB"; 1 bidão de óleo e 3 fardos de retalho, para o exercício pelo 4. autor da actividade comercial e fabrico de pasta e transformação do retalho em rama e outras matérias primas;
13) Tinham estabelecido contactos com fornecedores.
14) A 4. autora estava prestes a entrar em laboração.
15) Houve, porém, divergência entre os sócios.
16) E os três primeiros Autores e Q e R, de comum acordo, resolveram alienar os bens com que haviam planeado integrar o património social da 4. autora;
17) ofereceram a algumas pessoas aqueles bens, com todo o recheio, informando o sócio E que havia um interessado na aquisição, que era o Réu H;
18) Tal interessado encontrou-se a sós, em 5 de Outubro de 1981, com o sócio Q, a quem entregou um cheque, em seu nome, na importância de 150000 escudos, exigindo uma declaração recibo.
19) O sócio Q emitiu o recibo de folha 24 do apenso processo 103/88 do seguinte teor: os abaixo assinados, Q, R, E, A e C, sócios da Recuperadora Têxtil da Moita Limitada, receberam em 5 de Outubro de 1981 do Senhor H e filho do Fontão, o cheque 314805/BPA de 150000 escudos como primeiro pagamento de um barracão, máquinas e terrenos que lhes venderam no lugar do Carregal.
20) O recibo está assinado por Q, que o emitiu na convicção de ser essa a vontade dos restantes sócios.
21) O Réu H, em 26 de Outubro de 1981, entregou o cheque de folha 26 do apenso, no valor de 500000 escudos ao sócio Q, emitido em seu nome pessoal.
22) Em 19 de Novembro de 1981, o Réu H aceitou uma letra no montante de 640000 escudos, sendo sacadores os 1., 2. e 3. Autores e Q e R.
23) O Réu H passou, então, a explorar, com a mulher e filhos, o estabelecimento constituído pelo prédio referido em 6) e pelos utensílios referidos em 12).
24) Fabricando pasta e comercializando-a.
25) Sem dar qualquer contrapartida económica aos autores.
26) No dia 2 de Fevereiro de 1989, os Recorrentes procederam ao corte de todo o eucaliptal, que tinha mais de oito anos de plantação, vendendo a madeira num total de 40 metros cúbitos.
27) Após a compra dos terrenos referidos em 2) os três autores maridos e Q e R mandaram executar, em parte desses terrenos, um barracão em alvenaria, destinado a uma instalação fabril (isso no decurso de 1980/1981).
28) Em meados de 1981, os Autores maridos e Q e R resolveram entre si formar uma sociedade por quotas.
29) Por acordo entre todos os sócios, os 1., 2. e 3. Autores tornaram disponíveis para a instalação do barracão os terrenos referidos em 2).
30) Após a edificação do barracão surgiram dificuldades entre os 1., 2. e 3. Autores e Q e R.
31) E os três primeiros autores e Q e R, de comum acordo, resolveram alienar os bens com que haviam planeado integrar o património social da sociedade co-autora.
32) É assim que ofereceram a algumas pessoas aqueles bens, entre essas pessoas aprece interessado o Réu H.
33) H, em Outubro de 1987, celebrou com os três primeiros Autores e Q e R, um acordo, segundo o qual comprava e estes vendiam, um barracão para fabricação e terrenos anexos, sitos em Covão do Souto e as seguintes máquinas - 1 grané e carda, 1 guilhotina, 3 cardas e uma esfarrapadeira, pela importância de 1500000 escudos.
34) O Réu H pagou, através de dois cheques um de 150000 escudos e outro de 500000 escudos, e aceitou a letra referida em 22), que se encontra liquidada.
35) A restante quantia em dívida ficou acordado que seria entregue no acto da celebração da escritura de compra e venda, que os autores nunca se aprestaram a celebrar.
36) Logo após o acordo referido em 33), os Réus H e filhos J e N, passaram a utilizar e explorar os bens referidos em 33).
37) Os Autores A, E e Q e R entregaram desde logo as chaves do barracão aos Réus E e filhos.
38) Começaram então os Réus E e filhos por colocar as máquinas em termos de laboração, por si e através de terceiras pessoas.
39) Tiveram de proceder à afinação das máquinas; a soldaduras, desmontagem e montagem lavagem de ferros, abertura de fossas para colocação de motores de cardas; pintura das máquinas; construção de um compartimento à saída da esfarrapadeira, para receber o mungo, aplicação de folhas zincadas e de madeira serrada no telhado.
40) Todos os anos de 1982 a 1989, procederam à limpeza dos terrenos e eucaliptos.
41) Os terrenos anexos ao barracão sempre foram ocupados pelos Réus H e filhos, quer com a colocação, quer com as cargas e descargas de camions, quer com a estrumeira ou, ainda, com a colocação de peças deterioradas das máquinas na fabricação.
42) O Réu M interveio na execução de trabalhos vários quer nos terrenos quer no barracão onde laboram as máquinas.
43) Os Réus H, J e N, em Fevereiro de 1989, mandaram proceder ao corte dos eucaliptos existentes nos terrenos que foram objecto do acordo referido em 33), tendo sido apurados 40 metros cúbitos de madeira.
44) Foi com a autorização dos três primeiros autores e Q e R e com base no acordo referido em 33) que os Réus H e mulher, J e mulher, e N e marido, passaram a utilizar quer os terrenos quer o barracão.
45) O que sucedeu dia após dia e em uso exclusivo, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém.
46) No barracão com as obras realizadas - as mencionadas em 39) - e nos trabalhos de limpeza dos terrenos, os Réus, em mão de obra e materiais, efectuaram despesas de valor não determinado.
47) Na parte da frente do barracão referido em 6), o V sempre fez, e faz, de estaleiro de madeiras, de carros e de máquinas.
III
Questões a apreciar no presente recurso.
A apreciação e a decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, passa, fundamentalmente, pela análise de sete questões: a primeira, se os Réus/recorrentes devem ser considerados possuidores de boa fé; a segunda, se a obrigação de restituir por parte dos recorridos deve ser actualizada ou, pelo menos, abranger os frutos civis que a quantia, entregue a estes pelos Réus poderia produzir; a terceira, se os Réus/recorrentes têm direito a ser-lhes pagas as despesas por si efectuadas com obras e trabalhos no prédio urbano inserido sob o artigo 4185; a quarta, se os Autores/recorridos devem ser condenados a restituir aos Réus a quantia de 922500 escudos dispendida com a liquidação do débito das máquinas instaladas no barracão; a quinta, se a restituição aos
Réus da quantia de 922500, dispendida com a liquidação do débito das máquinas instaladas no barracão, deve ser actualizada ou, pelo menos, com juros remuneratórios; a sexta, se os Autores e intervenientes R devem ser condenados como litigantes de má fé; a sétima, se não se justifica a divisão de custas preconizada no acórdão recorrido.
A quinta questão ficará prejudicada na sua apreciação caso a quarta questão sofra resposta negativa.
Abordemos tais questões.
IV
Se os Réus/recorrentes devem ser considerados possuidores de boa fé.
1. Posição da Relação e dos recorrentes:
A Relação de Coimbra decidiu que o negócio que esteve na base da troca das coisas (dinheiro por prédios) não era idóneo para transferir a propriedade. A prova não era titulada (artigo 1259 do Código Civil). Não sendo titulada presume-se de má fé (artigo 1260 n. 2).
Como a presunção não foi ilidida tem de se considerar de má fé as provas dos Réus.
Por sua vez, os Réus/recorrentes defendem que a matéria de facto dada como provada em ambas as instâncias é sobejamente elucidativa de que ao possuírem os bens objecto do negócio que firmaram com os recorridos, ignoravam estar a lesar os direitos de outrém, designadamente dos recorridos, sendo certo que esta posição corresponde aos ensinamentos de P. Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, volume III, 2. edição, página 20.
Que dizer?
2. O artigo 1260 do Código Civil diz, no seu n. 1, que "a posse será de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-lo, que lesava o direito de outrem..."
A noção de boa fé possessória deriva, no essencial, do Código de Seabra, cujo artigo 476 dizia: posse de boa fé é aquela que procede de título, cujos vícios não são conhecidos do possuidor...
Este preceito deu lugar a dúvidas, sobretudo em dois pontos: nas relações de boa fé com o título e na natureza psicológica ou ética da própria lei.
2a) Como primeira questão, o artigo 476 do Código de Seabra levantou o problema posto pelas relações entre a boa fé e o título. Segundo a doutrina dominante, acolhida na jurisprudência, a boa fé dependeria da verificação de dois elementos: um elemento positivo - o título - e um elemento negativo - o não conhecimento dos vícios do título. Deste modo, a boa fé implicaria sempre título, sendo de má fé a posse não titulado (cfr. Menezes Cordeiro. Da Boa Fé Direito Civil, volume I, páginas 416 e 417 e nota 24).
2b) Como segunda questão, o artigo 476 do Código de Seabra levantou o problema de saber se a boa fé, nele definida, tinha natureza psicológica ou
ética.
Na primeira hipótese, a boa fé constatar-se-ia sempre que houvesse uma ignorância pura e simples de certos vícios; na segunda, exigir-se-ia que tal desconhecimento fosse desculpável.
A letra do artigo 476 inculcava a ideia da boa fé psicológica, tese esta que foi aceite quasi sem controvérsia (José Tavares, os princípios Fundamentais do Direito Civil, 2. edição, página 655; Guilherme Moreira, Instituições, parágrafo 124, I, alínea b);
Dias Ferreira, Código Civil Português anotado, volume II, 1871, páginas 12 e 13).
Só Manuel Rodrigues veio fugir à tradição firmada quando escreveu: "Há quem sustente (referia-se a Widicluid) que o erro desculpável, seja de facto ou de direito, não produz boa fé. Esta opinião que seguimos, pois é a mais racional, é contrariada por PUGLIESE deste modo: "a boa fé é um estado psicológico, existe ou não existe. Se existe não é necessário para ser relevante que tenha na base um erro grosseiro (a Posse, 2. cd., página 342).
Certo, porém, que Manuel Rodrigues não desenvolveu argumentação a apoiar esse seu entendimento ético de boa fé, o que se tornava necessário por não ter base na letra do Código de Seabra.
3. O Código de 1966 resolveu, de modo claro, o problema posto pelas relações entre a boa fé e o título: a ignorância, pressuposto por aquela, reporta-se ao prejudicar de direitos alheios e não aos vícios do título, com a consequência de poder haver boa fé sem título e vice versa (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, volume III 2. edição, página 22).
4. O Código de 1966 parece que não resolveu de modo claro, o problema de saber se a boa fé possessória tem natureza psicológica ou ética.
Por um lado, não foram concludentes os trabalhos preparatórios, já que aparecem falhas de justificação dos seus motivos.
Por outro lado, a doutrina dividiu-se: uns sustentam que o conceito de boa fé é de natureza psicológica:
"possui de boa fé quem ignora que está a lesar os direitos de outrém, sem que a lei entre em indagações sobre a desculpabilidade ou censurabilidade da sua ignorância".
Pires Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado volume III, 2. edição, página 18, Henrique Mesquita, Direitos Reais, 91; Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, Rev. Leg. e Jurisp. ano 122, página 292; outros, sustentam que "Direito Civil português tem da boa fé subjectiva uma noção ética, sendo de entender, a essa luz, as definições esparsas compreendidas no Código. A boa fé traduz um estado de ignorância desculpável no sentido de que, o sujeito, tendo cumprido com os deveres de cuidado imposto pelo caso, ignora determinadas eventualidades" (Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, volume I, página 516; Penha
Gonçalves, Curso de Estudos Reais, 2. edição, páginas 267 e 268 e nota 419).
Para a tomada de posição temos, por um lado, que a letra do n. 1 do artigo 1260, não contém explicita referência à não culpabilidade do possuidor, sendo certo que o percurso dos trabalhos preparatórios parece evidenciar o propósito de se manter a tradição firmada pelo Código de Seabra: "ao anteprojecto de PINTO COELHO a propor a solução da boa fé ética, com a exigência expressa da desculpabilidade do erro em que assente (a
Posse, no Boletim do Ministério da Justiça n. 88, páginas 139-145), seguiu-se a primeira revisão ministerial (a dispôr no artigo 1239 n. 1 que "posse de boa fé é aquela cujos vícios não são conhecidos do possuidor") para surgir, na segunda revisão ministerial, a redacção que transitaria, sem alterações, para o projecto e, daí, para o Código (cfr. Menezes Cordeiro, obra citada, volume I, página 423).
Por outro lado, a argumentação usada pelos civilistas que defendem a natureza ética da boa fé "esbarra" (permita-se a expressão) com os diversos sentidos que à "boa fé" é dada em diversos institutos: artigo 243 n. 2 (inoponibilidade da simulação a terceiros de boa fé); artigo 291 n. 3 (inoponibilidade a terceiros de boa fé); artigo 762 n. 2 (boa fé no cumprimento das obrigações; artigo 1648 n. 1 (boa fé em matéria de matrimónio), etc.
Para além de nos impressionar o percurso dos trabalhos preparatórios (que se evidenciou), decisivo na nona opção pela natureza psicológica da boa fé possessória estão os ensinamentos de Orlando Carvalho quando escreve:
"Trata-se, por conseguinte, de um conceito puramente psicológico e logo puramente fáctico de boa fé, residindo esta na pura ignorância, ou ignorância efectiva, de que lesam direitos alheios".
"Semelhantemente ao que ocorre nos artigos 243 n. 2 e 1340 n. 4 do Código Civil e diferentemente nos artigos 291 n. 3 e 1648 n. 1".
"Nenhum padrão ético-jurídico se tem de tomar em linha de conta, o que está de acordo com o carácter da situação de facto da posse".
"Desta noção de boa fé resulta, como seu reverso, a noção de má fé" (Introdução à Posse, in Revista Legislação e Jurisprudência ano 122, página 292).
5. As considerações que se deixam expostas contribuem decisivamente para a questão em análise: saber se os Réus/recorrentes devem ser considerados possuidores de boa fé.
Tal questão não pode ter outra resposta se não afirmativa, já que a matéria factual fixada pela Relação permite precisar que os Réus adquiriram a posse do estabelecimento constituído pelo prédio com o artigo matricial urbano 4185 (barracão de rés do chão com 12 vãos destinado a armazenagem de matérias primas para a indústria de lanifícios) e de diversos utensílios (tudo como vem referido em 23), 6) e 12), parágrafo II do presente acórdão) mediante contrato de compra e venda verbal celebrado com os Réus com o acordo de que a parte do preço não entregue o seria no acto da celebração da escritura de compra e venda (vide factos referidos em 33), 34) e 35), parágrafo II do presente acórdão.
Os Réus adquiriram a posse dos bens objecto do contrato de compra e venda verbal convencidos de que os mesmos lhes tinham sido transmitidos pelos seus donos e, por tal, no convencimento de que ao adquirirem a posse desses bens não estavam a lesar direitos de outrem.
Tanto basta para se concluir, como se conclui, que os Réus são possuidores de boa fé.
V
Se a obrigação de restituir por parte dos recorridos deve ser actualizada ou, pelo menos, abranger os frutos civis que a quantia, entregue a estes pelos Réus, poderia produzir.
1. Posição das instâncias e dos recorrentes:
1a) a 1. instância decidiu que tal como os Autores têm direito à restituição dos bens que foram objecto do negócio, têm os Réus direito à restituição dos valores que pagaram, valores estes que devem ser actualizados nos termos dos artigos 473 e 479 do Código Civil.
1b) A Relação de Coimbra decidiu que, por um lado, a obrigação de restituir não podia ser actualizada, porquanto a lei trata o negócio nulo como se nada tivesse acontecido e as coisas tivessem seguido o curso normal segundo o destino que legalmente lhes estava traçado.
Por outro lado, o possuidor de má fé (caso dos Autores) tem de restituir os frutos que a coisa produziria até ao termo da posse, sendo certo que o dinheiro sempre renderia juros (frutos civis).
Como se pedem juros desde a citação são esses que têm de ser restituídos aos Réus.
1c) Os recorrentes entendem que, por um lado, a 1. instância procedeu correctamente à actualização dos valores que tinham sido entregues aos recorridos fazendo-o de harmonia com os normativos citados - artigos 473, 479 e 480, todos do Código Civil.
Por outro lado, sempre terão direito, como possuidores de boa fé, aos frutos civis (juros) que o dinheiro desembolsado produziria.
Que dizer?
2. O artigo 289 do Código Civil prescreve no seu n. 1 que "tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente".
Tal norma tem sido entendida divergentemente.
Para Vaz Serra "as prestações efectuadas em cumprimento de um negócio nulo ou anulável são prestações indevidas, pelo que a sua restituição é uma "restituição do indevido", prevista nos artigos 476, 479 a 481; assim, tratando-se de uma restituição em numerário, deverá o seu montante ser actualizado - Rev. Leg. e Jurisp. ano 102, páginas 105 e seguintes; 106, páginas 169 e seguintes; 107, páginas 236 e seguintes; 108, páginas 62 e 67; e 109, página 313 e nota.
Para outros, a restituição prescrita nessa norma abrange tudo o que tiver sido prestado, não havendo que atender às regras do enriquecimento (Pires Lima, Revista Leg. e Jurisp. ano 97, página 37, nota 5; Pires de Lima e Antunes Varela, Rev. Leg. e Jurisp. ano 102, página 253; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3. edição, página 616; e Galvão Telles, Direito das
Obrigações, 6. edição, página 192).
A Jurisprudência recente deste Supremo Tribunal perfilhou a segunda tese ao firmar a doutrina de que a obrigação de restituir, em resultado da nulidade do negócio, não se funde no enriquecimento sem causa, mas por aplicação do n. 1 do artigo 289 do Código Civil (acórdãos de 3 de Fevereiro de 1983 - Boletim do Ministério da Justiça n. 324, página 504, e de 31 de
Março de 1993 - Colectânea de Jurisprudência - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça - ano I, tomo II, páginas 55 e seguintes).
Secunda-se tal doutrina, por duas ordens de razão.
A primeira, por os trabalhos preparatórios apontarem ter sido esta a intenção do legislador: o Código rejeitou a ideia, presente no artigo 257 n. 2, da 1. revisão ministerial do projecto, de pautar pelas normas do enriquecimento sem causa o regime do dever de restituir decorrente da nulidade, sendo certo que no anteprojecto de Rui Alarcão - Boletim do Ministério da Justiça n. 87, artigo 7 e obs. II - já se propunha que fossem aplicáveis à obrigação de restituir fundada na nulidade ou na anulação as regras do enriquecimento sem causa (cfr. Leite Campos. A subsidiariedade da obrigação de Restituir o Enriquecimento, página 195, nota 1).
A segunda, por o novo Código Civil ter regulado com cuidado técnico os institutos da nulidade e do enriquecimento sem causa, de sorte que os mesmos se distinguem não só quanto ao seu espírito, como quanto aos seus efeitos, como bem evidência o Prof. Leite Campos, obra citada, páginas 196 e seguintes.
3. A obrigação de restituir não tem, face ao preceituado no n. 1 do artigo 289, que ser actualizada: uma vez declarado nulo o negócio, a produção dos seus efeitos é excluída desde o início, ex tunc, a partir do momento da formação do negócio, e não ex nunc, a contar da data da declaração da nulidade.
O carácter retroactivo da nulidade leva à repristinação da situação criada pelo negócio nulo, voltando-se ao "statu quo ante" (Leite Campos, obra citada, página 198).
4. A dureza do regime da nulidade estabelecida no n. 1 do artigo 289 é atenuada quando se verifique que foi constituída posse em consequência do acto nulo. Mas pode não haver posse: esta figura supõe o exercício de um direito real, e o direito transmitido ou constituído invalidamente pode ter outra natureza. Nestes casos, nos termos do n. 3, são aplicáveis as disposições dos artigos 1269 e seguintes, aplicações estas que alteram bastante, sobretudo em relação ao contraente de boa fé, os efeitos severos da retroactividade. Tem especialmente relevo a matéria da restituição de frutos e o das benfeitorias (Pires de Lima e Antunes Varela,
Código Civil anotado volume I, 4. edição página 265, nota 2; Leite Campos, obra citada, página 200).
No caso de se ter constituído posse ou situação de facto à sombra do acto nulo serão mesmo as regras do instituto da posse que vêm completar (substituir) as regras do funcionamento da nulidade, e não as correspondentes do instituto do enriquecimento sem causa.
5. Nos termos do artigo 1271, o possuidor de má fé deve restituir os frutos que a coisa produziu até ao termo da posse e responde ainda pelo valor dos frutos que um proprietário diligente poderia ter obtido.
Consabido que os frutos civis (que também são frutos - artigo 212 n. 2) podem ser juros (Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação, volume I, 1960, página 269), haverá que avançar que, face à citada disposição legal, o possuidor de má fé da quantia recebida terá de restituir essa quantia e os juros que esta mesma quantia produziria até ao termo da posse.
6. Presentes as expostas considerações, temos a solução do "caso sub júdice": os recorridos, como possuidores de má fé, têm de restituir aos Réus a quantia que receberem, a título de preço, acrescida de juros legais contados desde a data da entrega até ao termo da posse.
VI
Se os Réus têm direito a ser-lhes pagas as despesas por si efectuadas com obras e trabalhos no prédio urbano inscrito sob o artigo 4185.
1. Posição da Relação e dos recorrentes:
1a) A Relação de Coimbra decidiu que as despesas feitas pelos Réus com obras (que foram: "abertura de fossas para colocação das máquinas",
"construção de um compartimento à saída da esfarrapadeira, para receber o mungo", "aplicação de telhas e de madeira serrada no telhado" a
"pintura das máquinas e soldadura, desmontagem e lavagem de ferros") têm de ser consideradas benfeitorias, sendo certo que os Réus não forneceram elementos para as qualificar, de sorte que não se pode definir o direito que os Réus possam ter em relação aos Autores por causa delas.
1b) Os Réus/recorrentes sustentam que será na liquidação da execução de sentença que se há-de aquilatar e discutir da qualificação das referidas obras como benfeitorias necessárias ou úteis, e conforme se conclua serem necessárias ou úteis assim aquela importância será determinada.
Que dizer?
2. O princípio consagrado quanto às benfeitorias necessárias (que são as definidas no artigo 216 n. 3) é o de que o possuidor, esteja de boa ou má fé, goza do direito de ser indemnizado - artigo 1273 n. 1.
O princípio consagrado quanto às benfeitorias úteis (que são as definidas no artigo 216 n. 3) é o de que o possuidor, esteja de boa ou má fé, goza do direito de as levantar, desde que o possa fazer sem detrimento da coisa; se houver detrimento da coisa o possuidor goza do direito de ser indemnizado, segundo as regras do enriquecimento sem causa - artigo 1273 ns. 1 e 2.
Pois bem.
Não temos dúvidas em qualificar as despesas feitas pelos Réus nos bens, que invalidamente lhes foram transmitidos pelos autores com vista ao fabrico e comercialização de pasta, como benfeitorias necessárias.
Os bens foram transmitidos, como se disse, com vista ao fabrico e comercialização de pasta, encontrando-se apetrechado com o respectivo equipamento, de tal sorte que os Réus, após lhes serem entregue as chaves do barracão, colocaram as máquinas em termos de laboração, por si e através de terceiras pessoas.
Para tal fim tiveram de proceder à afinação das máquinas, a soldaduras, desmontagem e montagem e lavagem de ferros; abertura de fossas para colocação de motores de cardas, pintura das máquinas, construção de um compartimento à saída da esfarrapadeira para receber o mungo, aplicação de folhas zincadas e de madeira serrada no telhado.
Pelo que se deixa transcrito (em perfeita consonância com a matéria factual fixada e referida em 24), 33), 36), 37), 38) e 39), parágrafo II presente acórdão) verifica-se que as obras foram feitas com vista ao fim a que se encontra destinada a "coisa" (bem) transmitidos: ao fabrico de pasta. Os Réus com as obras feitas visaram apenas permitir o bom funcionamento da fábrica, de tal sorte que as mesmas visaram apenas a conservação do complexo fabril.
Sobretudo para esta nova posição a circunstância referida em 38), parágrafo II do presente acórdão:
"começaram então os Réus E e filhos por colocar as máquinas em termos da laboração, por si e através de terceiras pessoas".
As obras foram feitas com vista à laboração da fábrica e, por assim ser, as mesmas têm de ser qualificadas de necessárias.
Conclui-se, assim, que os Réus têm direito a ser-lhes pagas as despesas por si efectuadas como obras e trabalhos no prédio urbano inscrito sob o artigo 4185.
VI
Se os Autores devem ser condenados a restituir aos Réus a quantia de 922500 escudos, dispendida com a liquidação do débito das máquinas instaladas no barracão.
1. Posição da Relação e dos Réus/recorrentes.
1a) A Relação de Coimbra decidiu que a 1. instância tinha andado mal em considerar provado o pagamento por parte dos Réus, porquanto não são partes nesta acção os autores dos documentos junto a folhas 49 e 51 do processo apenso. As afirmações que fazem não lhes são favoráveis nem desfavoráveis, pois, nesta acção, nada têm a perder ou a ganhar.
Quem tem a perder ou a ganhar são os autores e Réus a quem a declaração não é atribuída. Tais documentos são apenas meios de prova a apreciar pelo Tribunal Colectivo e que o Senhor Juiz não pode atender na elaboração da sentença.
1b) Os Réus/recorrentes sustentam que acompanham os Meritíssimos Juizes do Tribunal Colectivo quando dizem que compete aos Autores (ora recorridos) fazer a prova de que as declarações deles constantes não tinham correspondência com a realidade, isto é, que os Autores de tais documentos não receberam os dinheiros ali mencionados das mãos dos Réus (ora recorrentes). E porque os recorridos/Autores não fizeram tal prova, os referidos recibos, face ao disposto nos artigos 374 e 376 do Código Civil, fazem prova do pagamento pelas recorrentes daqueles valores.
Que dizer?
2. Da conjugação do disposto nos artigos 374 n. 1 e 376 n. 2, ambos do Código Civil, resulta que o documento particular, se estiver reconhecida ou não for impugnada a sua veracidade, prova plenamente que o autor do documento fez as declarações que nesta lhe são atribuídas, os factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses do declarante valem a favor da outra parte, nos termos da confissão, sendo indivisível a declaração, nesses termos. Nessa medida, o documento pode ser invocado, como prova plena, pelo declaratário contra o declarante; em relação a terceiros, tal declaração não tem eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente pelo Tribunal (cfr. artigo 358 ns. 2 e 4, do Código Civil).
3. No caso "sub judice", os Réus/recorrentes pretendem fazer valer-se de recibos emitidos por duas empresas onde declaram ter recebido dos Réus quantias que totalizam 822500 escudos.
Se a acção decorreu entre as empresas que emitiram os Recibos e os Réus, certo seria que tais recibos fariam prova plena do recebimento de tais quantias por parte das empresas, vindas (entregues) pelos Réus.
Simplesmente, estes recibos surgem na presente acção em que os Autores dos recibos são estranhos e os autores da acção são também estranhos a esses recibos. São, pois, terceiros.
Aqueles recibos, em relação aos Autores desta acção, valem apenas como elemento de prova a apreciar livremente pelo Tribunal.
Certo é que o Tribunal Colectivo os apreciou livremente quando respondeu aos quesitos onde se perguntava quem tinha pago as máquinas.
Não podia, pois, o Senhor Juiz tomar em consideração tais recibos aquando do exame crítico das provas (artigo 659 n. 2 do Código de Processo Civil).
Conclui-se, assim, que os Autores não devem ser condenados a restituir aos Réus a quantia de 922500 escudos.
VII
Se os Autores e o interveniente R devem ser condenados como litigantes de má fé.
1. A Relação de Coimbra não confirmou a decisão da 1. instância que condenara os Autores e o interveniente R como litigante de má fé.
Os Réus/recorrentes discordam com a decisão da Relação por entenderem que a posição assumida por essas partes nos articulados revela uma alteração consciente da verdade dos factos, tanto mais que o 1. pedido que formularam é o de ser declarado nulo o negócio que possa ter existido entre Autores e Réus.
De que lado se encontra a razão?
Entende-se estar do lado da 1. instância e dos Réus/recorrentes.
Vejamos porquê.
A má fé traduz-se na violação do dever de probidade que o artigo 264 do Código de Processo Civil impõe às partes nestes termos: a iniciativa e o impulso processual incumbe às partes; mas estas têm o dever de conscientemente não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade, não requerer diligências meramente dilatórias.
Por sua vez, o artigo 456 n. 2 aponta quando há violação desse dever a colocar a parte na má fé.
Não cumpre conscientemente tal dever a parte, precisamente os Autores e o interveniente R (ora recorridos) que alegam nos articulados (petição inicial e resposta) factos que sabem ser contrários à verdade: ex: alguns dos sócios resolveram vender (trespassar) o estabelecimento (...) com todo o seu recheio; aceitou o H uma letra mas que nunca foi paga à Sociedade ou aos sócios em geral; todo o equipamento estava operacional e a funcionar; nunca houve acordo de pagamento, nem nunca prometeram vender ou outorgar escritura.
E sabem ser tais factos contrários à verdade porque o que se provou foi que houve acordo de todos os sócios da autora para a celebração do negócio com o Réu H; que todos eles, com excepção do Silvestre, fizeram entrega àquele Réu dos bens; que todos eles conheciam o preço e o modo de pagamento e subscreveram como sacadores a letra de 640000 escudos, aceite pelo Réu, que foi liquidada e que o equipamento da fábrica não estava instalado em condições de funcionar.
Tanto basta para que devam ser considerados litigantes de má fé.
VIII
Se não se justifica a divisão de custas preconizada no acórdão recorrido.
Os Réus/recorrentes sustentam que, em face de todo o alegado não se justifica a divisão de custas preconizada no acórdão recorrido, o qual deve ser revogado, fixando as custas na proporção em que o Tribunal Colectivo as fixou.
Assistiria inteira razão aos Réus/recorrentes caso a decisão a proferir por este Supremo Tribunal fosse no sentido de revogar o acórdão recorrido, para substituir a sentença da 1. instância. Como o sentido da decisão não será de revogação total do acórdão da Relação, as custas, quer neste Supremo quer nas instâncias, serão fixadas com base nas regras fixadas no n. 1 do artigo 446 do Código de Processo Civil.
IX
Conclusão:
Do exposto, poderá extrair-se que:
1) O conceito de boa fé, adoptado pelo legislador no instituto da posse, é de natureza psicológica.
2) A obrigação de restituir não tem, face ao preceituado no n. 1 do artigo 289, do Código Civil, que ser actualizado.
3) No caso de se ter constituído posse ou situação de facto à sombra do acto nulo serão mesmo as regras do instituto de posse que vêm completar (substituir) as regras do funcionamento da nulidade, e não as correspondentes ao instituto do enriquecimento sem causa.
4) o princípio consagrado quanto às benfeitorias necessárias (que são as definidas no artigo 216 n. 3) é o de que o possuidor, esteja de boa ou má fé, goza do direito de ser indemnizado - artigo 1273 n. 1.
5) As declarações documentadas atribuídas ao seu autor valem, em relação a terceiros, como elemento de prova a apreciar livremente pelo Tribunal.
6) Litiga de má fé a parte que articula factos sabendo que os mesmos são contrários à verdade.
Face a tais conclusões, em conjugação com os elementos recorridos nos autos, poderá precisar-se que:
1) os Réus devem ser considerados possuidores de boa fé;
2) os autores e os intervenientes Q e R têm de restituir aos Réus a quantia que receberam, a título de preço, acrescida de juros legais contados desde a data da entrega até ao termo da posse.
3) os Réus têm direito a ser-lhes pagas as despesas por si efectuadas com obras e trabalhos no prédio urbano inscrito sob o artigo 4185;
4) os Autores não devem ser condenados a restituir aos Réus a quantia de 922500 escudos, dispendida com a liquidação do débito das máquinas instaladas no barracão;
5) os Autores e o interveniente R devem ser condenados como litigantes de má fé.
6) o acórdão recorrido não pode manter-se na parte em que inobservou o afirmado em 2), 3) e 5).
Termos em que se concede parcial revista e, assim altera-se o acórdão recorrido do modo seguinte: a) condenam-se os Autores e os intervenientes Q e R a restituir aos Réus a quantia que receberam, a título de preço, acrescida de juros legais contados desde a data da entrega até ao termo da posse; b) mantém-se a sentença da 1. instância quanto à condenação dos Autores a pagarem aos Réus a importância que vier a ser liquidada em execução de sentença correspondente às despesas efectuadas com obras e trabalhos no prédio urbano inscrito sob o artigo 4185. c) mantém-se a sentença da 1. instância quanto à condenação dos Autores e do interveniente R como litigantes de má fé.
Custas pelos autores e intervenientes Q e R e Réus neste Supremo Tribunal e nas instâncias na proporção de 3/4 (três quartos) para aqueles e 1/4 (um quarto) para estes.
Lisboa, 26 de Abril de 1995.
Miranda Gusmão,
Mário Ribeiro,
Raul Mateus.
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 30 de Abril de 1993 do Tribunal de Figueiró dos Vinhos;
II - Acórdão de 15 de Junho de 1994 da Relação de Coimbra.