CIRE
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Sumário

Se quando a insolvente apresenta pedido de exoneração do passivo restante sabia que a totalidade do seu salário era absolutamente essencial à sua subsistência e dos seus filhos e que não tinham outros rendimentos não devia comprometer-se a cumprir as condições previstas no artº 239º do CIRE, nas quais se incluía a possível cedência de parte do seu rendimento, pois já sabia que iria falhar no cumprimento.
A insolvente ao afectar os seus recursos a despesas do agregado alegada¬mente inadiáveis, não pode deixar de representar como certa ou altamente provável – em face da exiguidade e da inelasticidade das suas receitas – o não cumprimento da obrigação de entrega ao fiduciário do rendimento disponível que se considera cedido.

Texto Integral

Proc.Nº 1182/10.9 TBBCL-B. G1
(Apenso de exoneração do passive restante)
Recurso de Apelação (1)
(1)Relator: Maria Purificação Carvalho
Adjuntos: Desembargadora Maria dos Anjos Melo Nogueira
Desembargador José Cravo

- Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães –

I.Relatório
Nos autos supra identificados foi proferida decisão aonde ao abrigo do disposto nos artºs 244 nº1, 243,1 a) e 239, 4) al c) do CIRE foi recusada a exoneração do passivo restante requerida por Susana M.
Descontente com a decisão, veio a insolvente Susana M interpor recurso de apelação, o qual foi admitido com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.
Nas alegações de recurso da apelante são formuladas as seguintes conclusões:
A) Entende a Recorrente não existirem fundamentos, nem estarem verificados os requisitos da não exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 244º, n.º 2 do CIRE;
B) A não entrega à Exma. Sra. fiduciária, durante o período de três anos e oito meses, do valor fixado como rendimento de cessão, além de ter sido justificada, quer para com a Exma. Sra. Fiduciária, quer para com o Tribunal, não poderá tal comportamento ser imputado à Recorrente a título de dolo ou com grave negligência, requisito este absolutamente essencial para a recusa da exoneração, atento o disposto no artigo 243º, n.º 1, al. a) ex. vi do artigo 244º, n º 2 do CIRE;
C) A Recorrente, quer à data do despacho inicial de exoneração do passivo, quer atualmente, vive apenas do salário que aufere enquanto funcionária pública ao serviço do Instituto Nacional de Recursos Biológicos, I.P, o qual, por restruturação dos serviços do Estado, passou a ser o IPMA – Instituto Português do Mar e da Atmosfera, auferindo o salário mensal ilíquido de €1.012,68, acrescido do subsídio de alimentação de €85,40, cujo montante liquido, depois de feitos os descontos a título de IRS, ADSE, Caixa Geral de Aposentações, ascende a € 800,26;
D). Dos doc. s n.ºs 6 e 7 juntos ao requerimento da Recorrente de 18.04.2016, resulta que esta em 28.06.2010 e em 11.03.2013 dava conhecimento à Exma. Sra. Fiduciária das suas dificuldades económicas e das despesas que desde então já suportava com os seus filhos Rita M e Pedro A;
E). Donde tudo resulta ter sido de todo impossível à Recorrente proceder ao deposito de um terço do seu vencimento liquido, pois tinha, como tem a seu cargo os seus dois filhos;
F). Daí não ter feito o depósito de um terço do seu salário líquido no cumprimento do Despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o que informou e justificou à Exma. Sra. fiduciária, a qual por sua vez deu conhecimento do mesmo ao Tribunal por requerimento datado de 17.04.2013;
G). Sucede que, pese embora o tribunal (em 17.04.2013) e a Exma. Sra. Fiduciária (desde o início do período de 5 anos) terem tido conhecimento da não entrega do valor fixado como rendimento da cessão, por impossibilidade da Recorrente, atenta a sua situação económica e financeira e social supra alegada,
H) O certo é que jamais a Exma. Sra. Fiduciária, ou qualquer credor da Insolvência veio requerer a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do artigo 243º do CIRE, para o que tinham o prazo previsto no n.º 2 do artigo 243º do CIRE,
I)E muito menos foi a não exoneração antecipada decidida pelo Tribunal a quo (o qual desde pelo menos 17.03.2013 que tinha conhecimento de que a recorrente não havia entregue o valor fixado para a cessão),
J). Fazendo assim a Recorrente acreditar na convicção de que o seu comportamento estava justificado, tanto mais que
L). Posteriormente passou a ser entregue tal valor à Exma. Sra. Fiduciária, como ainda hoje o é, (pese embora já ter cessado o prazo de 5 anos), pois
M). Desde 25.06.2014 que a sua entidade patronal passou a transferir mensalmente a quantia de um terço para a conta aberta pela Exma. Sra. Fiduciária para o efeito,
N). Sendo a aqui recorrente de todo alheia a tal atraso apenas imputável à sua entidade patronal, mas que supõe ter sido motivado pela restruturação dos serviços do Estado, pois durante o período da cessão do rendimento disponível, o Instituto Nacional de Recursos Biológicos, I.P, passou a ser o IPMA – Instituto Português do Mar e da Atmosfera;
O). Ora, no modesto entendimento da aqui Recorrente houve por parte do Tribunal a quo uma incorrecta interpretação e aplicação das normas e princípios jurídicos que diretamente são aplicáveis ao caso sub judice, porquanto a decisão recorrida interpretou e aplicou mal o art. 239º, nº 4, c), 243º, n.º 1, al. a) e 244º, n.º 2 do CIRE.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO
Deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, deve ser revogada a Decisão recorrida e substituída por outra que determine a concessão à Recorrente da exoneração do passivo restante, declarando extintos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam.
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA.

Não temos conhecimento de terem sido apresentadas contra-alegações.
O recurso foi recebido neste Tribunal, nos termos em que foi admitido em 1ªInstância
Foram colhidos os vistos legais.

Nada havendo a obstar ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre decidir.
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II.Fundamentação
De facto
Embora não expressamente elencados pela 1.ª instância, seja dos documentos juntos (certidões de fls. 2 a 58 destes autos) a estes autos e outros que pedimos por email ao tribunal recorrido (cópia da petição inicial apresentada na insolvência e cópia da decisão proferida em 05-01-2011 neste apenso) podem recortar-se como apurados com relevo os seguintes factos:
Com data de 01 de Abril de 2010 Susana M apresentou petição inicial na qual formulou os seguintes pedidos:
Requer … “admitida liminarmente a presente petição, deverá ser reconhecida a situação de insolvência da requerente, seguindo-se os ulteriores termos do artigo 27º e seguintes do CIRE com os legais efeitos.
Que nos termos do artigo 235º e seguintes do CIRE lhe seja concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no presente processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao encerramento deste, preenchendo os requisitos e dispondo-se desde já, a observar todas as condições previstas no artº 239 do CIRE”.
Ali alegava “ser é divorciada, conforme se infere da certidão do registo civil que ora se junta como doc. nº 1. A Requerente não exerce qualquer actividade comercial por conta própria, não sendo titular de qualquer estabelecimento, e desde 1984 que é trabalhadora por conta de outrem ao serviço do Instituto Nacional de Investigação Agrária e das Pescas, em Matosinhos, auferindo o salário mensal de € 1.000,00”.
Por despacho proferido em 05.01.2011, foi decidido admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, apresentado pela insolvente, mais tendo sido determinado que, durante os próximos 5 anos, o rendimento disponível da Recorrente, no montante de 1/3 do seu vencimento liquido, fosse cedido à Sra. Administradora de Insolvência (na qualidade de fiduciária).
Esta decisão transitou em julgado.
Segundo os cálculos da Sra. Administradora tendo em conta a decisão proferida quanto ao valor a ceder e o valor que a própria insolvente declarou nos autos, deveria ter entregue à fiduciária o valor médio mensal de €302,45 durante o mencionado período de 5 anos o que, por simples multiplicação por 12 meses e cinco anos, daria um valor global cedido de €18.147,00.
Em requerimento apresentado nestes autos deu a A.I a conhecer a seguinte factualidade:
“Em 10/03/2011 foi enviada comunicação à insolvente a relembrar o conteúdo do despacho de exoneração de passivo restante e que o mesmo determinou que, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo (que já tinha ocorrido anteriormente) o seu rendimento disponível, ou seja um terço do seu vencimento liquido, ficaria cedido à fiduciária – Cf. cópia da comunicação que se junta como doc nº 1;
Na mesma ocasião, foi aberta conta bancária no Banco M com o nº 45407641262, exclusivamente para depósito dos montantes cedidos pela insolvente.
Em 09/01/2012, como a insolvente não tinha efetuado qualquer depósito até então, a signatária enviou comunicação interpelando-a para, no prazo máximo de oito dias, informar o tribunal e a signatária das razões pelas quais não procedeu ao depósito de qualquer quantia, carta que posteriormente veio devolvida com a menção “objeto não reclamado” – cf. comunicação e devolução que se junta como docs. nºs 2 e 3.
Em 28/02/2013 foi enviada nova comunicação à Ilustre mandatária da insolvente a transmitir que a devedora/insolvente não transferiu qualquer valor a que se encontrava obrigada, conferindo o prazo de 10 dias para tais valores serem entregues (desde Fevereiro de 2011) ou fundamentar a razão pela qual não o fez.
Em 11/03/2013, a insolvente, na pessoa da sua distinta mandatária legal, endereçou requerimento à signatária, no qual foi alegado que a devedora/insolvente não possuía mais nenhum rendimento além do seu vencimento para fazer face a todas as despesas, incluindo as várias despesas que suportava com os seus dois filhos, que vivem com a insolvente e frequentavam o ensino superior.
Mais acrescentou que desse modo, não conseguiu e não conseguiria, até que os filhos terminem o ensino superior, entregar a parte da sua remuneração que excedia o rendimento excluído da exoneração.
Tal comunicação foi objecto de resposta na qual a signatária manifestou o seu entendimento de que não cabia nas suas funções ou competências proceder á apreciação do mesmo, sem prejuízo de a insolvente poder apresentar um pedido de alteração nos próprios autos – cf. e-mail resposta que se junta como doc. nº 4 “.
Desde 25.06.2014 que a entidade patronal da insolvente passou a transferir mensalmente a quantia de um terço para a conta aberta pela Exma. Sra. Fiduciária para o efeito.

A filha da insolvente Rita Mendes Rodrigues, é estudante universitária no curso de licenciatura em Turismo, Lazer e Património da Faculdade de Letras de Coimbra e o seu filho Pedro A está desempregado encontrando-se inscrito no Centro de Emprego na situação de desempregado à procura do primeiro emprego – cf. doc. n.º 8 e 9, juntos aos autos ao requerimento que a recorrente deu entrada em 18.04.2016.
Nem a Exma. Sra. Fiduciária, ou qualquer credor da Insolvência veio requerer a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do artigo 243º do CIRE, para o que tinham o prazo previsto no n.º 2 do artigo 243º do CIRE,
Também a não exoneração antecipada não foi decidida pelo Tribunal a quo.
Justifica a insolvente em sede de audição prevista no nº1 do artº 244º do CIRE não ter feito o depósito de um terço do seu vencimento liquido alegando a seguinte factualidade:
- A insolvente não possui mais nenhuma espécie de rendimentos ou bens de onde possa retirar mais alguns proventos, e foi sempre com tal salário que teve de fazer face a todas as suas despesas relacionadas com alimentação, vestuário, calçado, despesas médicas e medicamentosas, e em transportes, nas suas deslocações da sua residência para o local de trabalho.
- E foi também com tal salário que a insolvente teve e tem que suportar todas as despesas relacionadas com alimentação, vestuário, calçado, despesas médicas, medicamentosas e escolares da sua filha Rita M, a qual frequenta o ensino superior – licenciatura em Turismo, Lazer e Património – na Universidade de Coimbra, e do seu filho Pedro A, que vive com a insolvente, o qual está desempregado, atento a que o pai dos filhos da insolvente, após o divórcio, nunca deu qualquer tipo de ajuda à insolvente para prover ao sustento e educação dos filhos.
- Como foi dado conhecimento à Exma. Sra. Fiduciária, a insolvente passou a vive na Póvoa do Varzim em apartamento pertença do seu filho Axel que este adquiriu com recurso ao crédito bancário, sendo que desde setembro de 2010 que passou a insolvente a pagar tal prestação do crédito hipotecário, de cerca de 240€/mês, em virtude deste, embora continuando a estudar, ter deixado de exercer a actividade remunerada em “part time” que lhe permitia pagar tal empréstimo, conforme resulta do requerimento enviado à Ex.mas Sra. Fiduciária por fax pela mandatária da insolvente em 11.03.2013 cuja cópia e relatório de envio à fiduciária se encontram juntos aos autos no requerimento que a recorrente deu entrada em 18.04.2016, como doc. n.º 7.

De Direito
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas consubstancia-se em saber se a recorrente violou com dolo ou com grave negligência alguma das obrigações impostas pelo artigo 239.º do C.I.R.E. e nomeadamente a que a decisão sob recurso teve por violada, a da al. c) do n.º 4 do artigo 239º.
Vejamos.
Segundo dispõe o nº 2 do art. 239º do CIRE, o despacho inicial sobre o pedido de exoneração do passivo “…determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte”.
De acordo com o disposto no nº 3 da mesma disposição legal, “integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: (…)
b). Do que seja razoavelmente necessário para:
i). O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
(…)”.
Tal como se refere no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE (2), o regime da exoneração do passivo restante pretende conjugar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.
Na concretização desse objectivo, entendeu o legislador que, para poder usufruir daquela exoneração, o devedor ficaria sujeito durante um determinado período – o período da cessão que corresponde aos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência –, a um conjunto de obrigações, entre as quais se incluem a de ceder o seu rendimento disponível com vista ao pagamento das despesas e, na medida do possível, ao pagamento dos credores.
Mas, sem deixar de ponderar o interesse e princípio fundamental do ressarcimento dos credores (e por isso estabelecendo que, durante um determinado período, o devedor teria que ceder o seu rendimento disponível), o legislador não deixou de atender também ao princípio, igualmente fundamental, da sobrevivência condigna do devedor e respectivo agregado familiar e, conciliando esses interesses, determinou que o património do devedor ficaria afectado à satisfação daqueles créditos, com ressalva da quantia necessária ao sustento minimamente digno do devedor e respectivo agregado.
O despacho inicial de deferimento do pedido de exoneração “ainda não é a oportunidade [do devedor] de iniciar a vida de novo, liberado de dívidas, mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável” (3).
Ou, segundo as palavras de Menezes Leitão (4), “o despacho inicial não consubstancia a decisão relativa à exoneração do passivo restante, garantindo apenas a passagem para a fase subsequente, o período de cessão, findo o qual, e cumpridos os ónus que impendem sobre o insolvente (artigo 239.º, n.º 4 CIRE), e proferida decisão final, concedendo ou não a exoneração do passivo restante”.
Assim, durante o período de cessão do rendimento disponível, o devedor fica sujeito a um conjunto de condições, previstas no artigo 239 nº4 do CIRE; de cujo cumprimento depende o benefício da exoneração.
Como salienta Assunção Cristas (5) os 5 anos assemelhar-se-ão a um purgatório: durante ele o devedor terá que ir pagando as suas dívidas, adoptando um comportamento adequado (art.º 239.º, n.º 2, 3 e 4, do CIRE), considerando a lei esse período para ocorrer o perdão de molde a facultar, então, ao devedor uma nova oportunidade.
O insolvente ao longo dos 5 anos irá somente dispor de um rendimento que lhe assegure o “sustento minimamente digno” para si e seu agregado familiar, para o que eventualmente o fará mudar de hábitos de vida e de consumo, de acordo com a subalín. i), da alín. b), do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE, sendo o restante rendimento disponível entregue a um fiduciário para posterior distribuição pelos credores (art.º 241.º n.º 1, alín. d) do CIRE).
Atendendo ao disposto na norma em questão e atendendo ao espírito do legislador e aos objectivos que pretendeu atingir, afigura-se-nos claro que a quantia a reservar para o devedor – e, como tal, excluída do rendimento disponível – há-de ser determinada, casuisticamente, em função das necessidades concretas do devedor e respectivo agregado, de forma a que, sendo assegurada a sua sobrevivência condigna, todo o rendimento que não seja necessário para esse efeito possa reverter em benefício dos credores.
E tal como referimos noutras decisões – cf. o Acórdão de 27 de Outubro de 2014 e 05 de Fevereiro de 2015 (6) – para o apuramento desse valor não relevam as concretas despesas que o devedor alega suportar, mas sim aquilo que é razoável gastar para prover ao seu sustento – e do agregado familiar que, eventualmente, tenha a seu cargo – com o mínimo de dignidade, sem prejuízo de deverem ser consideradas as concretas despesas que, razoavelmente, se devam ter como indispensáveis para fazer face a quaisquer necessidades específicas do agregado familiar.
Ou seja, o critério legal a atender não pode ser a mera soma contabilística, mesmo que comprovada, das despesas médias mensais dos devedores e do seu agregado familiar, sob pena de podermos cair no paradoxo de nos depararmos com despesas superiores aos rendimentos auferidos.
E em toda a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores se faz notar, aliás em consonância com a jurisprudência constitucional (7) que o salário mínimo nacional será um valor referencial a ter em conta como indicativo do montante mensal considerado como essencial para garantir um mínimo de subsistência condigna, cabendo ao tribunal fazer uma apreciação casuística das situações submetidas a escrutínio (8).
Não se podem contrair dívidas e, depois, nada pagar e continuar a vida como se nada tivesse acontecido.
Tem necessariamente que haver aqui um custo na qualidade de vida do devedor.
No caso em apreço foi tal rendimento fixado por decisão devidamente transitada em julgado (informação em contrário não existe).
E as condições ali fixadas a insolvente/recorrente obrigou-se a aceitá-las e por consequência a cumpri-las.
Ora uma das condições a que a insolvente ficou adstrita em consequência de tal despacho foi a de ceder à Sra. Administradora 1/3 do seu vencimento liquido.
Se já desde 2010 se tem desdobrado em esforços para sustentar, com o fruto do seu trabalho e da sua labuta diária, sem quaisquer ajudas, os seus filhos menores, sendo a totalidade do seu salário absolutamente essencial à sua subsistência e dos seus filhos ( nos termos ora alegados também em sede de recurso) não devia como fez comprometer-se a cumprir as condições previstas no artº 239º do CIRE, nas quais se incluía a possível cedência de parte do seu rendimento, pois já sabia que iria falhar no cumprimento.
Não devia aceitar como aceitou a decisão de exoneração do passivo restante que lhe fixou um valor a despender de tal rendimento do qual não podia dispor.
Não devia deixar de dar conhecimento ao tribunal (e não à A.I) da alegada impossibilidade pois tal lho permitia e permite o artº 339 nº4 do CIRE e para tal foi devidamente advertida pela Sra. Administradora.
De efeito, a fixação, no despacho inicial, do rendimento disponível não é imodificável, já que, mesmo depois do seu proferimento- e até mesmo do trânsito em julgado- o juiz pode excluir desse rendimento, a requerimento do insolvente, do que seja razoavelmente necessário para quaisquer despesas do devedor (artº 239 nº1 iii do CIRE).
Não devia efectuar acordos de pagamento (pagamento da prestação do apartamento comprado pelo filho) pois a cessão prevista no citado artº 239 nº2 prevalece sobre qualquer acordo (nº 5 do mesmo artigo).
Porque não foi requerida cessação antecipada do procedimento da exoneração ao abrigo do disposto no artº 243º do CIRE não devia a recorrente acreditar na convicção de que o seu comportamento estava justificado, tanto mais que o artº 244º do CIRE prevê precisamente a possibilidade de não tendo havido a cessão antecipada o juiz recusar a exoneração pelos mesmos fundamentos dos legalmente previstos para a cessão antecipada.
Por fim não deixamos de anotar que a insolvente/recorrente pode sobreviver sem a totalidade do salário que recebe conforme resulta claro da circunstância de desde 25.06.2014 que a sua entidade patronal passou a transferir mensalmente a quantia de um terço para a conta aberta pela Exma. Sra. Fiduciária para o efeito em apreciação e nem assim a recorrente veio requer conforme podia a alteração do valor da cessão.
Terá a recorrente agido de forma dolosa?
Seguimos o entendimento do Acórdão da Relação de Coimbra de 03.06.2014 (9) segundo o qual: “Embora se conceba, sem dificuldade, que a violação dos deveres do insol¬vente – v.g., o de entregar ao fiduciário o rendimento disponível – possa resultar da inobservância de um dever de cuidado, a verdade é que lei não se contenta, para tornar lícita a revogação da exoneração, com a negligência: exige o dolo. Em contrapartida, na ausência de qualquer distinguo, é relevante qualquer modalidade de dolo.
O dolo comporta um elemento cognitivo e um elemento volitivo. O insol¬vente actua com dolo quando representa um facto que preenche a tipicidade dos deveres a que está adstrito durante o período da cessão, mesmo que não tenha consciência da ilicitude: o insolvente actua dolosamente desde que tenha a intenção de realizar, ainda que não directamente, a violação de um daqueles deveres e, por isso, mesmo que não possua a consciência de que a sua conduta é contrária ao direito. O dolo é intenção – mas não é necessariamente intenção com conhecimento da antijuridicidade da conduta.
Além disso, o insolvente só actua dolosamente quando se decida pela ac¬tuação contrária ao direito. Se a violação do dever – v.g., de entregar ao fiduciário o rendimento disponível – constitui intenção específica da conduta do insolvente, há dolo directo; se essa violação não é directamente querida, mas é desejada como efeito necessário da conduta, o dolo é necessário; finalmente, se a violação não é directamente desejada, mas é aceite como efeito eventual, mesmo que acessório, daquela conduta, há dolo eventual.
A violação, com dolo, da obrigação que vincula o insolvente há-de provo¬car um resultado: a afectação relevante da satisfação dos créditos da insolvência.
(..), no caso de não cumprimento reiterado, sem a alegação de um motivo justificante, a acumulação do débito – dado o arco temporal de duração do período da cessão – acabará por redundar em dano relevante para os credores do insolvente, de todo incompatível com a cláusula de merecimento que se entende subjazer à concessão da exoneração”.
Ora, no caso dos autos provou-se que a Insolvente não entregou o mon¬tante à fiduciária a que estava obrigada, não cumprindo assim a sua obrigação.
E não deixamos de caracterizar a viola¬ção dessa obrigação como dolosa, pois e retomando o acórdão atrás citado de harmonia com regras de experiência e critérios sociais, julga-se irrecusável que aquela insolvente conhecia sabia, representou correctamente ou tinha consciência da sua vinculação ao dever de entregar o rendimento disponível e do não cumprimento dessa obrigação: a verificação do momento intelectual do dolo é, assim, irrecusável. E o mesmo sucede como o elemento volitivo desse mesmo dolo já que é patente a verificação, no caso de uma vontade dirigida a esse não cumprimento. Assim, mesmo que se conceda que aquele não cumprimento não foi o verdadeiro fim da conduta da apelante – e, portanto, que o dolo não é directo – tem-se por certo, a presença, no caso de um dolo necessário ou de segundo grau: o não cumprimento surge, não como pressuposto ou grau intermédio para alcançar a finalidade da conduta – mas como sua consequência necessária, no preciso sentido de consequência inevitável, se bem que lateral relativamente ao fim da conduta: o não cumprimento da obrigação e entrega do rendimento disponível cedido ultrapassou a mera representação dessa consequência como possível, para se ter como certa ou pelo menos altamente provável. A insolvente ao afectar os seus recursos a despesas do agregado alegada-mente inadiáveis, não pode deixar de representar como certa ou altamente provável – em face da exiguidade e da inelasticidade das suas receitas – o não cumprimento da obrigação de entrega ao fiduciário do rendimento disponível que se considera cedido.
Conduta esta da recorrente que afectou a satisfação dos créditos da insolvência no valor igual á diferença entre o rendimento disponível não cedido e o valor dos respectivos créditos.
Assim sendo, impõe-se a manutenção da decisão recorrida com a consequente improcedência do recurso e custas a cargo da recorrente que decaiu na sua pretensão (art 527º do C.P.C e 248.º, do CIRE).
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Podendo, deste modo, concluir-se, sumariando (art. 663º, nº7 CPC), que:
Se quando a insolvente apresenta pedido de exoneração do passivo restante sabia que a totalidade do seu salário era absolutamente essencial à sua subsistência e dos seus filhos e que não tinham outros rendimentos não devia comprometer-se a cumprir as condições previstas no artº 239º do CIRE, nas quais se incluía a possível cedência de parte do seu rendimento, pois já sabia que iria falhar no cumprimento.
A insolvente ao afectar os seus recursos a despesas do agregado alegada¬mente inadiáveis, não pode deixar de representar como certa ou altamente provável – em face da exiguidade e da inelasticidade das suas receitas – o não cumprimento da obrigação de entrega ao fiduciário do rendimento disponível que se considera cedido.
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III.Decisão
Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente Susana M e, em consequência, confirmar a decisão recorrida que não lhe concedeu a exoneração do passivo restante
Custas a cargo da recorrente.

Guimarães, 29 de Setembro de 2016
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)
(Maria Purificação Carvalho)
(Maria dos Anjos Melo Nogueira)
(José Cravo)
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(2)no ponto 45 do preâmbulo do Decreto-Lei 53/04, de 18 de Março.
(3)vide Assunção Cristas, “Exoneração do Passivo Restante”, Revista Themis, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, 2005, pág. 170.
(4)Direito da Insolvência, Almedina, 2.ª edição, pg. 312.
(5)Obra citada na nota 3, págs. 174.
(6)Proferidos nos processos nº 507/13.0 TBCBT.D. G1 e 159/13.7 TBPTB.
Ver também o acórdão da Relação de Coimbra, de 2012.01.31, Carlos Marinho, www.dgsi.pt.jtrc, proc. 1255/11.0TBVNO, enuncia as ideias chave que enformam a supracitada alínea.
(7)vide acórdão do TC nº. 177/2002, com força obrigatória geral, publicado no D. R., 1ª serie-a, nº. 150, de 2/07/2004.
(8)cf. Entre outros acórdãos da RL de 16/02/2012, proc. nº. 1613/11.0TBMTJ-D e da RG de 17/12/2013, proc. nº. 2059/13.1TBBRG-C, acessíveis em www.dgsi.pt.
(9)Acórdão da Relação de Coimbra de 03.06.2014 proferido no processo nº 747/11.6 TBTNV-J.C1 (relator Henrique Antunes).