FIXAÇÃO DOS FACTOS ASSENTES
FACTOS CONFESSADOS
FACTOS PROVADOS POR DOCUMENTO
BASE INSTRUTÓRIA
COMPROPRIEDADE
COMPOSSE
INVERSÃO DO TÍTULO DA POSSE
Sumário

I- Hoje indirectamente por força apenas do disposto no art° 646° n°4 Código de Processo Civil, continua a ser necessário, na fixação dos Factos Assentes, após despacho saneador, considerar os factos confessados, objecto de acordo das partes ou de prova documental.
II- Na Base Instrutória, continua a não ser lícito formular perguntas sobre questões de direito ou sobre outras que apenas se possam provar tarifadamente (v.g., documentalmente).
III- Em matéria de compropriedade ou composse, os termos da inversão do título são idênticos — consoante o art° 1265° C.Civ., por oposição explícita do detentor, por uma sua oposição implícita, ou por um acto de terceiro capaz de lhe transferir a posse.
IV- A oposição “explícita” passa por tornar directamente conhecida dos demais detentores a intenção de actuar, nos planos de facto e empiricamente, como titular único do direito;
V- Se os antecessores dos 1°s Autores reconheceram expressamente a propriedade dos RR. sobre uma parte do logradouro comum, tal reconhecimento tem que se ter como reportado ao elemento prévio à usucapião pelos Réus da parcela de terreno em questão, ou seja, como o reconhecimento da oposição explícita dos RR. à posse desses antecessores dos l°s AA.
VI- Não constituem oposição implícita — art° 1265° C.Civ. — os comportamentos equívocos e que podem compaginar-se com os poderes dos comproprietários.

Texto Integral

● Rec. 27-07.1TBVLP.P1. Relator – Vieira e Cunha.
Decisão de 1ª instância de 27/4/09.
Adjuntos – Des. Mª das Dores Eiró e
Des. Proença Costa.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo sumário nº27/07.1TBVLP, da comarca de Valpaços.
Autores – B…………… e mulher C………….. e D…………. e mulher E…………….
Réus – F………….. e marido G……………...

Pedido
a) Que os RR. sejam condenados a reconhecer os AA. como comproprietários do logradouro central, em forma de “U”, melhor descrito no artº 1º da Petição Inicial;
b) Que os RR. sejam condenados a se absterem de atentar contra o direito de propriedade dos AA. e consequentemente serem condenados a retirar do logradouro comum todos os seus pertences, passando a usá-lo sem privar os restantes consortes do uso a que igualmente têm direito.

Tese da Autora
É dono e legítimo possuidor, em exclusivo, de vários prédios urbanos e comproprietário de outros, prédios esses dizendo respeito à compartimentação de um casario, em forma de “U”, onde se foram fechando portas de umas para as outras casas, gozando todos os proprietários das casas, em compropriedade, do pátio ou logradouro central entre edifícios, desde o portão comum que dá acesso às casas individuais.
Tal logradouro foi adquirido pelos AA., na convicção de serem deles seus comproprietários, juntamente com outros proprietários de “casas” (prédios urbanos).
Os RR. arrogam-se a propriedade exclusiva do logradouro e dele vêm fazendo um uso consentâneo com tal jactância.
Tese dos Réus
Impugnam motivadamente a tese dos Autores, invocando a propriedade exclusiva de pelo menos parte do espaço aludido no petitório.

Sentença
Na sentença proferida pela Mmª Juiz “a quo”, decidiu-se reconhecer o direito de compropriedade dos Autores sobre o logradouro central em forma de “U”, referido em 9) dos Factos Provados, à excepção de uma parcela de 24 m2, contígua ao acesso à casa dos AA. D…………. e mulher e contígua a esse logradouro ou quintal, condenando-se os RR. a reconhecerem esse direito e absolvendo-os do demais peticionado.

Conclusões do Recurso de Apelação dos Autores (resenha)
1 – À face do disposto no artº 646º nº4 C.P.Civ., os factos quesitados sob 1º, 3º, 6º, 8º e 9º não poderiam ter sido dados como provados só à luz da prova documental e à revelia dos quesitos formulados, os quais foram considerados como irrespondíveis.
2 – A prova da propriedade dos casarios em forma de “U” deveria ter resultado provada, na pessoa de H…………..
3 - Os quesitos 10º, 12º e 20º não deveriam ter sido alvo de respostas restritivas, mas de respostas simplesmente positivas, face aos depoimentos de I……….. e J………….. e pelas contradições dos depoimentos de K……….., L…………, M………… e N………...
4 – Das respostas referidas não se pode extrair qualquer espécie de inversão do título de posse.
5 – A única manifestação de tal possível inversão ocorre por via de um documento particular datado de 4/5/04, celebrado com o irmão O…………., e só a partir de tal data foi o espaço delimitado por paus e troncos, acto a que o A. D…………. reagiu, a ele se opondo, através de carta enviada aos RR.
6 – O que aconteceu, ao longo do tempo, foi um uso por mera tolerância dos dois outros comproprietários, ausentes de ……..
7 – Inexistiu qualquer publicidade de actos materiais relativos à posse de tal tracto de terreno.
8 – De realçar que os RR. adquiriram a sua casa de habitação por força do documento (doação) de 16/10/75, junto de fls. 140 a 146.
9 – As fossas sépticas das habitações, situando-se no logradouro central, indiciam a comproprieddae do logradouro.
10 – Durante o tempo que medeou entgre 1975 (data da doação) e 1990 (data do decesso do último donatário e usufrutuário) foram praticados como representantes dos possuidores em nome de outrem, não exercendo os RR. poderes de facto sobre a coisa, nem agindo como beneficiários do direito.
11 – Tal resulta também do depoimento da testemunha O………..
12 – No mínimo, os RR. careciam de “animus” quanto à posse exercida sobre o referido tracto de terreno.

Os Apelados apresentaram contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

Factos Apurados em 1ª Instância
1.- Por justificação notarial foi declarado os RR. como comproprietários de um prédio urbano de um pavimento, composto de r/c, onde funciona um lagar e arrumações, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 49.º e situado no mesmo casario inicial, no ………, em …….. (A).
2.- Os RR. são também donos e legítimos proprietários de 1/5 do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 47, por compra a P…………. e Q………….. e 1/5 do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o n.º 48, por compra a R…………, formando com estes 2/5 a sua casa de habitação, sita no bairro ……, em ………, contígua ao prédio descrito em 1) (B).
3.- H……….. faleceu no dia 12/09/1939 (C – aditado).
4.- R…………., S…………, Q…………, T………… e U………… são filhos de H……….. (D – aditado).
5.- Encontra-se registado a favor de D…………. e mulher E…………., por aquisição por usucapião, na Conservatória do Registo Predial de Valpaços, sob o n.º 00221/260995, da freguesia de …………, um prédio urbano, sito em …….., descrito como uma casa de 2 pavimentos, com a sc. de 100 m2 e sd. de 36 m2, que confronta do Norte com herdeiros de R……….., do Nascente com a rua pública, do Sul com V………… e do Poente com T………… e herdeiros, inscrito na matriz sob o n.º 244 (E – aditado).
6.- No dia 18/08/1977, por escritura de doação celebrada no Cartório Notarial de Vila Pouca de Aguiar, R…………. e mulher W……….. declararam doar a O…………, por conta da quota disponível, 1/5 do prédio inscrito na matriz de ……….. sob o n.º 46 e 1/5 do prédio inscrito na matriz dessa freguesia sob o n.º 47, correspondente a uma casa de habitação, sita no Bairro ………., em ………, composta de rés-do-chão e primeiro andar, que confronta do Nascente com caminho, do Sul com T…………, do Norte e Poente com R…………, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de ………. (F – aditado).
7.- Encontra-se registado a favor de B…………. casado com C………….., por aquisição a O………… e mulher X…………, na Conservatória do Registo Predial de Valpaços, sob o n.º 00486/161105, da freguesia de …………, um prédio urbano, sito em Bairro ………, descrito como uma casa de habitação de rés do chão e 1.º andar, com a sc. de 74,80 m2 e quintal com 30 m2, que confronta do Norte com Largo Público, do Nascente com caminho, do Sul com T………… e do Poente com passagem de consortes, inscrito na matriz sob o n.º 154 (G – aditado).
8.- H………. usava vários edifícios, em forma de “U”, com um pátio ou logradouro central entre os edifícios, e com uma entrada comum, onde mais tarde e após o seu falecimento foi colocado um portão de acesso a esse pátio ou logradouro (1º).
9.- Os edifícios em forma de “U”, com um pátio ou logradouro central, situavam-se e situam-se no Bairro ……… ou Largo ……., em ………, ficando próximo de um coreto (B).
10.- Encontrava-se inscrito sob o artigo 47, da Freguesia de …….., por inscrição de 18/08/1977, a favor de P………….., R………….., U…………, S…………. e T………….., na proporção de 1/5 para cada um, um prédio com dois pavimentos, sito no Bairro ………, a confrontar do Nascente com H…………, Poente com Y…………., Norte com R………….. e do Sul com Z……….., com a superfície coberta de 56 m2 e descoberta de 20 m2 e inscrito sob o artigo 46, da Freguesia …………, por inscrição de 18/08/1977, a favor de P……………., R……….., E……………. e T…………, na proporção de 1/5 para cada um e a favor de S………….. e BA…………, estes dois na proporção de 1/10 para cada um, um prédio com dois pavimentos, sito no Bairro ………., a confrontar do Nascente, Norte e Sul com a Rua e do Poente com Z…………., com a superfície coberta de 88 m2 e descoberta de 50 m2 (4º).
11.- O prédio descrito em 9) mantém ainda hoje a configuração em forma de “U”, com o pátio ou logradouro, tendo sido reformulado e reconstruído ao longo dos anos e o pátio, desde a morte de H…………., sempre tem sido usado de comum por todos os que aí residem, à excepção de 24 m2 utilizados pelos RR há mais de 25 anos, nos termos e circunstancias referidas em 19), 20) e 21) (10º).
12.- No pátio existe uma fossa e que através do mesmo se acede às casas dos AA e RR, respectivamente (11º).
13.- Todos os moradores do prédio referido em 9) utilizavam o pátio ou logradouro convictos que o mesmo lhes pertence, à excepção de 24 m2 utilizados pelos RR há mais de 25 anos, nos termos e circunstancias referidas em 19), 20) e 21) (12º).
14.- Os RR já despejaram água suja, sem cheiro, para o pátio ou logradouro (13º).
15.- E os RR aí depõem alfaias agrícolas, como carros de bois, charruas, lenha e estendem cordas de roupa a atravessar todo o espaço do logradouro (14º).
16.- Os RR utilizam um espaço do logradouro, próximo das escadas da casa dos RR B…………. e esposa, aí colocando diversos objectos, como bem entendem e como se fosse deles exclusivamente, cobrindo-os, por vezes, com plásticos pretos (15º).
17.- Os RR têm um cão que, por vezes, anda solto pelo pátio ou logradouro (19º).
18.- Os AA como os anteriores moradores do prédio referido em 9), sempre utilizaram o pátio ou logradouro em comum, como se fosse seu, à excepção de 24 m2 utilizados pelos RR há mais de 25 anos, nos termos e circunstancias referidas em 19), 20) e 21) (20º).
19.- Os RR, há mais de 25 anos, utilizam exclusivamente, um espaço de terreno, com cerca de 24 m2, contíguo ao acesso à casa dos AA. D……….. e mulher e contíguo ao logradouro ou quintal referidos em 9) (21º).
20.- Ali têm depositado lenhas, utensílios agrícolas, veículos automóveis, carro de bois (22º).
21.- Os RR actuam como descrito em 19) e 20), ininterruptamente, há mais de 25 anos, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém (23º).

Fundamentos
As questões colocadas pelo presente recurso de apelação são as seguintes:
- saber se, à face do disposto no artº 646º nº4 C.P.Civ., os factos quesitados sob 1º, 3º, 6º, 8º e 9º não poderiam ter sido dados como provados só à luz da prova documental e à revelia dos quesitos formulados, os quais foram considerados como irrespondíveis;
- saber se a prova da propriedade dos casarios em forma de “U” deveria ter resultado provada, na pessoa de Joaquim Delgado (q. 1º);
- saber se as respostas aos quesitos 10º, 12º e 20º não deveriam ter sido alvo de respostas restritivas, mas de respostas simplesmente positivas;
- saber se, de toda a prova produzida, apenas se pode retirar, quanto ao tracto de terreno considerado, na fundamentação, em exclusivo propriedade dos RR., um mero domínio fáctico, sem “animus” de proprietário e sem que existisse qualquer espécie de inversão do título de posse.
Apreciemo-las seguidamente.
I
Vejamos um por um os quesitos a que os AA. se referem e, relativamente aos quais, a Mmª Juiz “a quo” declarou serem irrespondíveis, por abrangerem matéria de direito, apenas podendo ser respondidos por documento.
No quesito 1º perguntava-se se “H…………, natural de ……….. e nascido por volta de 1870, tinha uma propriedade de vários edifícios com entrada comum e em forma de “U”, com um pátio ou logradouro central entre os edifícios, onde mais tarde foi implantado um portão de acesso a esse logradouro”.
Foi respondido que “as respostas do tribunal ao quesitado neste artº 1º da BI, com respeito à propriedade, naturalidade e data de nascimento, é vedada em face do disposto no artº 646º nº4 C.P.Civ.; quanto ao que não é matéria de direito e não se prova apenas por documento, provou-se apenas que H……….. usava vários edifícios em forma de “U”, com um pátio ou logradouro central entre os edifícios e com uma entrada comum, onde mais tarde, e após o seu falecimento, foi colocado um portão de acesso a esse pátio ou logradouro”.
Nada existe a opor à resposta adoptada.
O despacho recorrido alerta, e bem, para o disposto no artº 646º nº4 C.,P.Civ., segundo o qual é vedado ao tribunal responder a questões de direito, a questões postas sobre factos que só possam ser provadas por documento ou que estejam já plenamente provadas no processo, seja por documento, seja por acordo ou confissão das partes.
Após a revisão do Código de Processo Civil de 95/97, com a eliminação da redacção do artº 511º nº1 C.P.Civ.61 (que destacava a necessidade de julgar assentes, na chamada “especificação”, os factos confessados, objecto de acordo das partes ou de prova documental), não pode olvidar-se que essa realidade, ou seja, a necessidade de especificar (ou julgar assentes) apenas “os factos confessados, objecto de acordo das partes ou de prova documental” continua a resultar da lei e da norma intocada do artº 646º nº4 C.P.Civ. – isto é, a elaboração da especificação ou dos “factos assentes” não abandonou as exigências de 61 e de pretérito, feitas de forma mais incisiva no antigo artº 511º nº1.
Daí que autores ligados à revisão do Código possam dizer, como Lopes do Rego, Comentários, artº 511º/I, que “a enumeração dos factos assentes continua muita próxima da anterior figura da especificação (embora naturalmente com a relevante particularidade de não resultar agora de uma actividade isolada e unilateral do juiz, sendo a decisão judicial precedida do debate com as partes)”.
O legislador do Código revisto ancora-se assim na epígrafe do novo artº 511º - selecção de “matéria de facto” – e em chamar a atenção para que seja do “debate” que nasçam, tanto como dos articulados, os factos a julgar desde logo admitidos. O que é de todo diferente de descaracterizar a figura da anterior especificação, quer por via do intuito perfunctório no processo, referente à elaboração do despacho, quer por via da manutenção do artº 646º nº4.
Por isso, a naturalidade e a data de nascimento provam-se apenas, como é sabido, por certidão registral atinente – documento, portanto.
E “propriedade” não é um facto – é um direito, que se adquire, como é sabido, por via originária ou derivada, mas que se sustenta em factos nessa dita aquisição.
Ora, se o processo visa perguntar, na Base Instrutória, sobre matéria de facto controvertida, concordaremos que não é, desde logo, matéria de facto o direito que, ele sim, se prova com factos.
Como escrevia J. Alberto dos Reis, Anotado, III/206 a 209, não é lícito formular quesitos sobre questões de direito – o juiz deve redigir os quesitos em ordem a interrogar o tribunal unicamente sobre a ocorrência de determinados factos materiais, isto é, sobre se se verificaram tais e tais acontecimentos, tais e tais realidades concretas.
E poderia o Tribunal ter acrescentado, em momento ulterior à audiência das testemunhas, mas antes do encerramento da audiência (no momento das respostas à matéria de facto), determinados factos que julgou provados por documento?
Lopes do Rego (op. cit., pg. 354) entende afirmativamente e considera que, por maioria de razão, vale hoje a doutrina fixada no Assento, hoje Ac.Jurispª S.T.J. 26/5/94 Bol.437/35, segundo o qual a especificação, tenha ou não havido reclamações, tenha ou não havido impugnação do despacho que as decidiu, pode sempre ser alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final do litígio.
Na verdade, o artº 646º nº3 C.P.Civ. continua a entender, como de pretérito, que na fundamentação da sentença o juiz deve levar em conta os factos admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito, para além daqueles que o tribunal deu como provados.
Sublinhe-se que a orientação do então “Assento” era largamente maioritária, à data em que o referido “Assento” foi proferido, provando-o, ex abundanti, os Ac.R.E. 17/7/86 Bol.361/626 ou Ac.R.C. 11/10/88 Bol.380/550.
Portanto, quando a Mmª Juiz “a quo” tem ainda o cuidado acrescido de estar atenta aos factos provados por documento, em momento no qual as partes se poderiam pronunciar livremente sobre o decidido, desde logo ao abrigo do disposto no artº 653º nº4 C.P.Civ., obviando, como foi sua preocupação, a decisão surpresa, não apenas não comete qualquer espécie de nulidade inominada, como procede de acordo com as regras do julgador escrupuloso, respeitador da lei e da melhor doutrina.
Os considerandos supra aplicam-se de pleno à resposta dada aos quesitos 3º, 6º, 8º e 9º, o primeiro contendo matéria de direito e os demais contendo factos apenas susceptíveis de prova documental – se a referida resposta aos quesitos não foi dada, as alíneas de Matéria Assente aditadas sufragam, pela forma processualmente adequada, a matéria que constava, incorrectamente, de tais quesitos.
Improcede, neste segmento, a pretensão recursória.
II
Saber se as respostas aos quesitos 10º, 12º e 20º não deveriam ter sido alvo de respostas restritivas, mas de respostas simplesmente positivas.
Para o efeito, foram ouvidos na íntegra os suportes áudio relativos ao julgamento realizado.
Verdadeiramente em causa encontra-se a resposta dada aos quesitos, no segmento em que excepciona do uso comum dos moradores do prédio referido em 1) uma parcela de 24 m2, utilizada pelos RR. há mais de 25 anos, nos termos e circunstâncias referidas em 21), 22) e 23) das respostas à Base Instrutória.
Para abreviar, perguntava-se nos quesitos 21º, 22º e 23º se “os RR. utilizam, desde 1963, em regime de exclusividade, um espaço de terreno com cerca de 24 m2, contíguo ao acesso à casa dos AA. D……….. e mulher e contíguo ao logradouro/quintal dos AA.”, “se ali têm depositado lenha, utensílios agrícolas, veículos automóveis e carro de bois” e “se o fazem ininterruptamente, há mais de 30 anos, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém”.
Foi respondido, restritivamente, que “os RR., há mais de 25 anos, utilizam exclusivamente um espaço de terreno com cerca de 24 m2, contíguo ao acesso à casa dos AA. D……….. e mulher e contíguo ao logradouro e quintal referidos em 1) da BI, tendo ali depositado lenha, utensílios agrícolas, veículos automóveis e carros de bois, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém”.
Ora, o que soe afirmar-se é que, sob pena de contradição, a resposta aos qq. relativos ao uso em comum do logradouro (10º, 12º e 20º, impugnados por esta via recursória) deveriam conter a restrição aludida em 1ª instância, de acordo com a convicção formada pela Mmª Juiz “a quo”.
Convicção que, em matéria de facto, também é a nossa, alicerçada no depoimento das testemunhas que, quanto à parte do pátio excluída nas respostas restritivas impugnadas, melhor razão de ciência apresentaram – e essas foram, indubitavelmente as testemunhas apresentadas pelos RR., ou algumas delas.
K……….., vizinho, reformado e de 78 anos, diz que os RR. sempre lá moraram desde que casaram, há mais de trinta anos; perguntado sobre o uso exclusivo dos RR. da parte situada entre a sua casa e a casa do A. B…………., é peremptório no sentido de que um tal uso é exclusivo há mais de 20 ou 25 anos, para “lenhas, carro da cria e estrumes”; idem para o depoimento de L……….., agricultor que fala no uso exclusivo daquele pedaço de terra, para os fins já indicados, há mais de 30 anos (“os RR. já têm netos”) – sempre lá pôs o carro, utensílios de lavoura, lenhas e palha para estrume.
Caracterizaram a parcela como tendo a área que resulta das respostas dadas na decisão impugnada.
Até J…………. fala nessa ocupação exclusiva “há dez ou quinze anos”, “estragada” pela vinda para o local de um morador habitual, o Autor B………….. (em 2005) – a partir daí “andaram sempre à bulha”.
Estas as testemunhas que revelaram um conhecimento mais detalhado, factualmente mais rico, melhor razão de ciência.
O que nos conduz a confirmar, na íntegra, a matéria de facto, tal como vem fixada de primeira instância.
III
Vejamos agora a solução de direito encontrada na sentença recorrida.
Retira a aquela peça a compropriedade do logradouro existente entre as três casas de AA. (duas) e RR. (uma delas) do alegado e logrado provar sob os nºs 3, 8, 9, 11, 13, 16, 18, 19, 20 e 21.
Aliás, a compropriedade dos AA. sobre o logradouro central entre prédios, que é objecto desta demanda, não é objecto de discussão por esta via de recurso.
Só que, de idênticas respostas às citadas, retira a sentença também a posse exclusiva (e a propriedade, adquirida originariamente, pela usucapião) de uma parcela de 24 m2 “contígua ao acesso à casa dos AA. D………..” e ao logradouro comum.
A sentença recorda o disposto no artº 1406º nº2 C.Civ., quando prescreve que “o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título”.
Contorna porém tal dificuldade afirmando que, das respostas à matéria de facto nos nºs supra referidos, se retira que o logradouro comum nunca integrou o espaço de terreno referenciado em 19).
Esta conclusão é obviamente imprecisa.
Daqueles já citados números da matéria de facto provada facilmente se retira que a composse do logradouro central é muito anterior aos actos de detenção material (ou possessórios) exercidos pelos RR. sobre a parcela de terreno excluída da composse.
Desta forma, quando a sentença refere que os RR. há mais de 25 anos que vêm praticando actos de detenção material sobre uma parcela de terreno, não pode ignorar que essa parcela integrava, muito antes dos vinte e cinco anos, o logradouro em causa nos autos – de resto, não se tratava de qualquer res nullius, nem tal questão se pode simplesmente hipotizar.
A uma tal constatação se chega por pura interpretação da materialidade fáctica demonstrada no processo.
Desta forma, os RR., quando começaram a habitar o prédio de que hoje são proprietários (há mais de 25 anos) e, concomitantemente, a utilizar o logradouro comum entre as três casas, para acesso à respectiva residência e outra utilidades, fizeram-no enquanto compossuidores ou comproprietários do bem – mais concretamente, do tracto de terreno em que se traduzia a totalidade do logradouro.
Enquanto comproprietários, nos termos do artº 1403º C.Civ., eram simultaneamente titulares de um direito de propriedade sobre a mesma coisa.
A posse respectiva estendia-se à totalidade da coisa, mas com respeito pelos restantes compossuidores – artº 1406º C.Civ., isto é, possuindo os RR., e demais senhorios por quotas ideais (artº 1403º nº2 C.Civ.), quotas que têm importância na distribuição dos frutos e na medição de uma eventual divisão da coisa ou do produto da respectiva venda – artº 1405º C.Civ. e Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 4ª ed., pg. 259.
A administração da coisa, mesmo considerando o período de 25 anos em que os RR. tiveram a detenção material de parte do bem, deveria fazer-se nos termos do artº 1407º C.Civ. (já em vigor, a essa data).
IV
Esta constatação, conduz-nos a que se devamos repristinar a análise da norma do artº 1406º nº2 C.Civ. – os RR., enquanto compossuidores ou comproprietários do logradouro, tal como os demais moradores confinantes com o mesmo, deveriam ter justificado o uso exclusivo da coisa comum com a inversão do título.
De acordo com o disposto no artº 1265º C.Civ., a inversão do título de posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.
Trata-se, como refere Orlando de Carvalho, Revista Decana, 124º/262, de um processo meramente psicológico, a nível da intentio ou do animus. Partindo-se do pressuposto de uma detenção material, ou até de um corpus possessório, este detentor material procede a uma inversão do seu próprio animus, isto é, da razão subjectiva ou volitiva que preside ao senhorio, comportando-se agora contra o possuidor indirecto ou mediato, arrogando-se um animus de verdadeiro senhorio.
Não deixa de ser a causa de uma aquisição originária e instantânea da posse, pese embora implicar apenas com o elemento subjectivo da actuação do detentor material.
Em matéria de compropriedade ou composse, os termos da inversão do título são idênticos – consoante o artº 1265º C.Civ., por oposição explícita do detentor, por uma sua oposição implícita, ou por um acto de terceiro capaz de lhe transferir a posse (neste sentido, Orlando de Carvalho, op. e loc. cits. e ainda pgs. 292ss.).
Ora, deixemos de lado a hipótese de um acto de terceiro capaz de transferir a posse, matéria de que os autos não curam.
Aos RR. cabia oporem-se explícita ou implicitamente aos demais detentores.
A oposição “explícita” passa por tornar directamente conhecida dos demais detentores a intenção de actuar, nos planos de facto e empiricamente, como titular único do direito – cf. P. de Lima e A. Varela, Anotado, III, artº 1265º, nota 3.
Consoante Oliveira Ascensão, op. cit., pg. 98, a oposição tem de ser categórica, de modo a sobrepor-se à aparência que era representada pelo título – por exemplo, o usufrutuário (…) faz saber ao proprietário a sua oposição.
Tal declaração tem de ser levada ao conhecimento do possuidor – a declaração é que qualifica os actos, pese embora a posse do inversor seja pública (veja-se Orlando de Carvalho, op. e loc. cits., pg. 283) – o que resulta da ideia de comportamento declarativo ou notificativo actum facere – levar a alguém o conhecimento de alguma coisa.
Veja-se ainda, no mesmo sentido, S.T.J. 3/6/08 Col.II/95, S.T.J. 8/11/07 Col.III/137 ou Ac.R.C. 16/7/85 Col.IV/55.
Note-se que o citado acórdão de 2007 versa uma hipótese em que, apesar da divisão física de um tracto de terreno em duas partes, perfeitamente demarcadas por parede, e nas quais (em cada uma delas) se construiu uma casa de habitação, não foi considerada a oposição explícita do detentor contra o seu comproprietário.
Da mesma forma, no acórdão de 2008, apesar da existência de um acordo verbal entre dois condóminos para porem fim à comunhão numa garagem, e apesar da divisão material desta garagem, não foi considerada a oposição explícita do detentor, porque os direitos não foram explicitamente opostos aos direitos dos iniciais e sucessivos condóminos das fracções vizinhas.
O que toca a questão dos autos.
Na declaração de fls. 121, os antecessores dos Autores B………… e esposa reconheceram a propriedade dos RR. sobre a parte agora excepcionada, nos factos provados, de 19 a 21.
O documento foi assinado quer pelos antecessores dos 1ºs AA., quer pelos ora RR.
Tal reconhecimento, que se tem que ter, conjugado com a demais matéria fáctica, como reportado à usucapião pelos Réus da parcela de terreno em questão comporta, como elemento prévio, a oposição explícita dos RR. à posse desses antecessores dos 1ºs AA.
Todavia, em nada contende com a posição dos 2ºs Autores.
Ou seja: constatamos a existência de uma oposição explícita liberadora, com inversão do título, relativamente aos AA. B…………. e esposa, por via do acto do respectivo antecessor.
Tal poderá traduzir-se, quanto ao tracto de terreno mencionado de 19 a 21 numa posse de quota superior à dos RR., abertamente permitida pelo disposto no artº 1406º nº2 C.Civ. – todavia, não produz qualquer efeito quanto aos AA. D………… e esposa, já que não é oponível a estes qualquer espécie de inversão do título – neste sentido, veja-se também Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3ª ed., pg. 238.
V
A oposição implícita aos possuidores dá-se “se através de um acto inequívoco o detentor revelar que se arroga uma posição jurídica real, ou uma posição jurídica mais densa do que aquela de que já desfruta”; “existem vários factos concludentes e até, ao invés do que se exige na declaração de vontade tácita (em que basta uma concludência probabilisticamente segura), factos absolutamente concludentes; esses factos podem ser factos empíricos – v.g., a aposição de marca ou cunho próprio – como factos jurídicos e factos judiciários; é o caso da alienação da coisa por quem não está legitimado para isso, mas se assume como dono dela, ou de quem transige judicialmente sobre a propriedade, o usufruto ou o direito de servidão” (ut Orlando de Carvalho, op. cit., pg. 264).
Ora, nos autos apenas vem provada a utilização exclusiva de um espaço de terreno, com cerca de 24 m2, com depósito de lenhas, utensílios agrícolas, veículos automóveis, carro de bois, ininterruptamente.
Tal comportamento é equívoco e pode compaginar-se com aquilo que vimos serem os poderes dos comproprietários, que podem estender-se à totalidade ou parte da coisa, desde que não privem os demais do uso que fazem da mesma.
Tal como conclui o Ac.S.T.J. 8/11/07 cit., o que decorre dos actos enumerados nas respostas referidas é que se trata de actos que cabem, naturalmente no exercício de facto do direito de qualquer proprietário, mas cabem também no exercício de facto de qualquer comproprietário – enquanto comproprietários, com os AA., do logradouro em causa, os RR. poderiam praticar os actos descritos.
Note-se, para finalizar, que não é concebível a aplicação por analogia (artº 10º C.Civ.), ao caso dos autos, da usucapio libertatis (artº 1574º C.Civ.), que autores como Oliveira Ascensão, op. cit., pg. 324, e Durval Ferreira, op. cit., pg. 230, aceitam que se aplique a outras figuras dos direitos reais.
Isto porque, como explica o segundo dos autores citados, o instituto pressupõe uma actividade de progressão do corpus, do domínio empírico. Quer porque, por exemplo, se destrói um caminho, quer porque não se permite efectivamente uma passagem, quer porque se tapa a entrada do caminho ou se mura todo o prédio – tem de haver um modo de exercício como garantia de inequivocidade da posse, que vimos já não existir no caso dos autos.
Resta assim o inêxito do recurso, in totum, apenas quanto aos AA. B………… e esposa; e o êxito do recurso quanto aos AA. D………… e esposa.

Resumindo a fundamentação:
I – Hoje indirectamente por força apenas do disposto no artº 646º nº4 C.P.Civ., continua a ser necessário, na fixação dos Factos Assentes, após despacho saneador, considerar os factos confessados, objecto de acordo das partes ou de prova documental.
II – Na Base Instrutória, continua a não ser lícito formular perguntas sobre questões de direito ou sobre outras que apenas se possam provar tarifadamente (v.g., documentalmente).
III - O artº 646º nº3 C.P.Civ. continua a entender, como de pretérito, que na fundamentação da sentença o juiz deve levar em conta os factos admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito, para além daqueles que o tribunal deu como provados, ou seja, a especificação, tenha ou não havido reclamações, tenha ou não havido impugnação do despacho que as decidiu, pode sempre ser alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final do litígio.
IV – De acordo com a norma do artº 1406º nº2 C.Civ., os RR., enquanto compossuidores ou comproprietários do logradouro, tal como os demais moradores confinantes com o mesmo, deveriam ter justificado o uso exclusivo da coisa comum com a inversão do título – artº 1265º C.Civ.
V - Em matéria de compropriedade ou composse, os termos da inversão do título são idênticos – consoante o artº 1265º C.Civ., por oposição explícita do detentor, por uma sua oposição implícita, ou por um acto de terceiro capaz de lhe transferir a posse.
VI - A oposição “explícita” passa por tornar directamente conhecida dos demais detentores a intenção de actuar, nos planos de facto e empiricamente, como titular único do direito; se os antecessores dos 1ºs Autores reconheceram expressamente a propriedade dos RR. sobre uma parte do logradouro comum, tal reconhecimento tem que se ter como reportado ao elemento prévio à usucapião pelos Réus da parcela de terreno em questão, ou seja, como o reconhecimento da oposição explícita dos RR. à posse desses antecessores dos 1ºs AA.
VII - Todavia, tal reconhecimento em nada contende com a posição dos 2ºs Autores e apenas se poderá traduzir, quanto ao tracto de terreno mencionado de 19 a 21, numa posse de quota superior à dos RR.
VIII – Não constituem oposição implícita – artº 1265º C.Civ. – os comportamentos equívocos e que podem compaginar-se com os poderes dos comproprietários.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar parcialmente procedente, por provado, o interposto recurso de apelação e, consequentemente, revogar em parte a sentença recorrida, declarando agora que os AA. são comproprietários do logradouro central em forma de “U”, referido em 9) dos Factos Provados, à excepção de uma parcela de 24 m2, contígua ao acesso à casa dos AA. D………….. e mulher e contígua a esse logradouro ou quintal, de que são comproprietários apenas os RR. e os AA. D………… e E………….
Custas por Apelantes e Apelados, na proporção de metade para cada um.

Porto, 23/II/2010
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa