ACÇÃO CÍVEL EMERGENTE DE ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACÇÃO PENAL
INDEMNIZAÇÃO
INQUÉRITO
PRAZO
PRESCRIÇÃO
Sumário

I - O alargamento do prazo prescricional previsto no artigo 498, n. 3, do C. CIV., aplica-se aos responsáveis meramente civis.
II - A acção de indemnização tem de ser obrigatoriamente exercida na acção penal, salvo se o processo de inquérito, dependente de queixa, estiver parado por seis meses.
III - O prazo de prescrição, quer o de 3 anos, quer o de
5 anos, começa a correr a partir do momento em que o lesado pode intentar livremente a acção civil.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
1. No Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, A intentou acção com processo sumário contra B Limitada, C, D, E e Companhia de Seguros F, pedindo que sejam condenados solidariamente a pagar a quantia de 18330220 escudos, segundo a responsabilidade da Seguradora Limitada ao valor do respectivo seguro, acrescido dos juros legais monetários à taxa de 15 porcento a contar da citação, quantia esta correspondente aos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe advieram de um acidente de viação ocorrido a 23 de Junho de 1986 e traduzido no embate entre o autocarro de passageiros OM conduzido pelo Réu C, e o veículo ligeiro UB conduzido pelo Réu D, veículos estes que na ocasião do acidente circulavam sob a direcção efectiva e no interesse dos restantes demandados, com excepção da entidade Seguradora que apenas havia assumido a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo veículo ligeiro.
- Os Réus contestaram,tendo a entidade proprietária do autocarro invocado a prescrição da sua responsabilidade.
- No despacho saneador foi considerada improcedente a excepção invocada, tendo sido interposto recurso de agravo de tal decisão pela entidade que a invocou
- Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença a condenar os R.R., solidariamente, a pagarem à autora o montante de 14346720 escudos, sendo a responsabilidade da seguradora limitada ao valor do respectivo seguro, quantitativo aquele acrescido de juros à taxa legal, contados desde a citação.
- Todos os R.R. apelaram, com excepção do R. C, não, tendo, todavia, os apelantes E e D apresentado alegações.
2. A Relação do Porto, por acórdão de 26 de Maio de 1994, decidiu:
- negar provimento ao agravo interposto pelo agravante B, Limitada.
- julgar deserto o recurso interposto pelos apelantes D e E.
- julgar procedente a apelação interposta pela apelante Companhia de Seguros F e, em consequência, revogar a sentença apelada na parte em que condenou solidariamente aquele apelante e os apelados D e E, no pagamento da indemnização arbitrada, os quais ora se absolvem do pedido; e,
- não tomar conhecimento, porque prejudicada da apelação interposta pela apelante B Limitada.
3. A Ré B Limitada pede revista, devendo ser revogado o acórdão que condenou o recorrente, e substituir-se por outro que a absolva do pedido pelo decurso do prazo prescricional para ser demandado e, para tal, formulou as seguintes conclusões:
1) No crime de ofensas corporais por negligência previsto e punido no artigo 148 n. 1 do Código Penal o prazo de prescrição do procedimento criminal é de dois anos.
2) Sendo mais curto o prazo de prescrição do procedimento criminal, não há nenhuma razão para não ser aplicado o prazo-regra de prescrição do direito de indemnização, previsto no artigo 498 n. 1 do Código Civil, por ser um prazo mais dilatado.
3) Tendo o acidente ocorrido em 23 de Junho de 1986 e tendo o comitente sido citado para a acção em 9 de Junho de 1990, há muito haviam decorrido 3 anos
4) Em concurso de responsabilidade civil extracontratual baseado no risco, o prazo de prescrição do correspondente direito de indemnização é o de 3 anos, previsto no artigo 498 n. 1 do Código Civil.
4. A recorrida apresentou contra-alegações, onde salienta:
1) a conduta do comissário da recorrente integra a prática de um crime de ofensas corporais por negligência previsto e punível pelo artigo 148 n. 3 do Código Penal - cujo prazo de prescrição do procedimento criminal é de cinco anos (artigo 117 n. 1 alínea c), 143 alínea b) e 148 n. 3, todos do Código Penal.
2) o disposto no artigo 498 n. 3 do Código Civil também se aplica aos responsáveis meramente civis e, portanto, à recorrente.
3) tendo o acidente dos autos ocorrido a 23 de Junho de 1986 e tendo a presente acção sido intentada a 22 de Junho de 1990, é manifesto que naquela data - ou na de 29 de Junho de 1990 em que a Recorrente foi citada - ainda não havia decorrido o prazo de prescrição alongada de cinco anos.
4) ainda que se entendesse ser aplicável o disposto no artigo 498 n. 1 do Código Civil, nem assim estaria prescrito o direito da recorrida - uma vez que o processo crime esteve sem movimento desde 8 de Junho de 1988.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
Questões a apreciar no presente recurso:
A apreciação e a decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, passa análise da questão de saber se se encontra prescrito o direito de indemnização da autora em relação à Ré B Limitada.
Abordemos tal questão.
III
Se se encontra prescrito o direito de indemnização da Autora em relação à Ré B Limitada.
1. Elementos a tomar em conta:
1. No dia 23 de Junho de 1986, cerca das 23 horas e 45 minutos, circulava pela Rua Nicolau de Almeida, na cidade de Vila Nova de Gaia, no sentido norte-sul, o automóvel ligeiro de passageiros, marca Fiat 127, com a matrícula NB, conduzido pelo R. D;
2. Pela Rua Raimundo de Carvalho, vindo do Porto em direcção a Oliveira do Douro circulava, pelo lado direito da faixa de rodagem, o autocarro de passageiros, matrícula OM, propriedade de B Limitada, conduzido por C.
3. Ao chegarem ao cruzamento das Ruas Raimundo de carvalho e Nicolau de Almeida, o NB e o OM prosseguiram em frente, colidindo entre si.
4. O embate ocorreu quando sensivelmente dois terços do NB já se encontravam dentro da Rua Raimundo de Carvalho.
5. Em consequência do acidente, a Autora sofreu ferimentos tendo sido socorrida de urgência no Hospital de Vila Nova de Gaia, donde foi transportada ao serviço de urgência do Hospital de Sto António, onde foi admitida em coma com descertação e sem inspiração espontânea, endo sido ligada ao R.P.C.
6. Naquele serviço de urgência, a autora esteve internada em grave perigo de vida até 14 de Agosto de 1986, data em que foi transportada para o serviço de Medicina Física e Reabilitação do Hospital Semide em estado de Tetraparesia de predomínio traqueal direito e parecia do facial esquerdo.
7. A autora esteve totalmente incapacitada para o trabalho desde o acidente até finais de Junho de 1989, data em que foi dada como clinicamente curada;
8. Em consequência das lesões sofridas no acidente em causa, a Autora encontra-se afectada de uma incapacidade permanente para o trabalho de 100 porcento.
9. A presente acção foi proposta em 22 de Junho de 1990;
10. Da certidão de folha 13, emanada dos serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, e datada de 8 de Junho de 1990, consta que os autos de inquérito referentes ao acidente em causa encontravam-se "sem movimento desde 8 de Junho de 1988".
2. Posição da Relação e das partes em recurso:
2 a) A Relação de Lisboa decidiu não se encontrar prescrito o direito de indemnização da autora em relação à Ré "B Limitada, com os seguintes fundamentos.
- a conduta estradal do comissário da Ré B Limitada integra a prática de crime de ofensas corporais por negligência, ilícito este cujo prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal ser de cinco anos - artigos 117 n. 1, alínea c), 143 alínea b) e 148 n. 3 todos do Código Penal.
- somente através da coincidência do indicado prazo prescricional quanto a todos os responsáveis é possível assegurar ao lesado a efectiva garantia de vir a ser ressarcido dos danos sofridos.
- ainda que se considerasse que o prazo de prescrição da responsabilidade indemnizatória do comitente era de três anos, tal prazo ainda não havia decorrido, porquanto, à data da ocorrência do acidente (23 de Junho de 1986) encontrava-se em vigor o Código de Processo Penal de 1929.
- na situação "sub judice", os autos de inquérito preliminar referentes ao acidente em causa encontravam-se "sem movimento desde 8 de Junho de 1988".
- ocorrendo o termo do período temporal de seis meses a 9 de Dezembro de 1988, é portanto manifesto que, à data da propositura da presente acção, ainda não havia decorrido o aludido de prazo de três anos, sendo portanto a acção tempestiva.
2 b) A recorrente B Limitada sustenta dever ser aplicado o prazo regra de prescrição do direito de indemnização previsto no artigo 498 n. 1 do Código Civil, por duas ordens de razão:
- a primeira, os casos apontados integram o crime de ofensas corporais por negligência previsto e punido pelo artigo 148 n. 1 do Código Penal, sendo neste caso de dois anos o prazo de prescrição do procedimento criminal (artigo 117 n. 1 alínea d) do Código Penal).
- a segunda, nos casos de concorrência de responsabilidade civil baseada na culpa por parte do comissário, com a responsabilidade civil extracontratual baseada no risco do comitente, a solução que melhor se coaduna com o espírito da própria norma que delimita a responsabilidade do comitente é a que considera prescrita a obrigação do comitente, um embargo da manutenção do direito do lesado, baseada na conduta criminosa do agente (Antunes Varela, Rev. Leg. ano 123, 48).
2 c) A recorrida Adefende não se encontrar prescrito o seu direito à indemnização em relação à recorrente por, por um lado, a conduta do comissário da recorrente integra a prática de um crime de ofensas corporais por negligência do artigo 148 n. 3 do Código Penal, cujo prazo de prescrição do procedimento criminal é de cinco anos - artigos 117 n. 1, alínea a), 143 alínea b) e 148 n. 3, todos do Código Penal.
Por outro lado, ainda que se entendesse ser aplicável o disposto no artigo 498 n. 1 do Código Civil, nem assim estaria prescrito o direito da recorrida, uma vez que o processo crime estava sem movimento desde 8 de Junho de 1988.
Que dizer?
3. O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete (artigo 498 n. 1 do Código Civil) mas, no caso de o ilícito constituir crime para o qual a lei estabelece prazo mais longo de prescrição é esse o prazo aplicável (n. 3 do artigo 498, Código Civil).
Face aos factos alegados e provados, resultantes da matéria fáctica fixada pela Relação, o comissário da Ré B Limitada teria cometido crime previsto e punido pelo artigo 148 n. 3 do Código Penal, pelo que teríamos um prazo de cinco anos - artigo 117 n. 1 alínea c), do Código Penal.
4. O prazo mais longo de cinco anos, também se aplica aos responsáveis meramente civis, como o comitente?
- Este Supremo Tribunal, embora não uniformemente, tem seguido a orientação de que o alongamento do prazo prescricional previsto no artigo 498 n. 3 do Código Civil se aplica aos responsáveis meramente civis
(Acórdãos de 6 de Julho de 1993 e de 22 de Fevereiro de 1994, na Colectânea de Jurisprudência - acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - ano I, tomo II, 180, e ano II, tomo I, 126).
- O Professor Antunes Varela ao anotar o acórdão deste Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 1985 (que firmou a doutrina "que o prazo alongado do n. 3 do artigo 498 do Código Civil é aplicável a quem, nos termos do n. 1 do artigo 503, tem mera responsabilidade pelo risco, se agiu por intermédio de um comissário cuja condução tenha integrado um ilícito criminal, sendo certo que esta doutrina foi firmada com um voto de vencido), sustenta "que" o direito de indemnização do lesado, com base no risco, respondem solidariamente com o autor do facto criminoso gerador do dano prescreve no prazo geral fixado no n. 1 do artigo 498 do Código Civil e não no prazo mais longo, excepcionalmente aberto no n. 3 da mesma disposição legal" (Revista Leg. e Jur., ano 123, páginas 42 a 49).
Também o Professor Vaz Serra já defendera a mesma doutrina ao escrever: "o direito de indemnização, não contra o autor do facto, mas contra as pessoas obrigadas à vigilância dele, não tem que prescrever no prazo da prescrição penal, pois estas pessoas não respondem pelo crime, mas só pela indemnização. Como a prescrição se aplicaria somente quando o seu prazo for mais longo que o da prescrição civil, não tem aquelas pessoas que estar sujeitas a essa prescrição de mais longo prazo" (Boletim do Ministério da Justiça n. 87, páginas 60 e 61).
- A doutrina propugnada pelo Professor Antunes Varela foi proficientemente analisada e afastada no acórdão deste Supremo Tribunal de 22 de Fevereiro de 1994 (Colectânea de Jurisprudência - acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça - ano II, tomo I, 1994 - páginas 126 e seguintes), sendo certo que a crítica desenvolvida neste acórdão a servir de argumentação à doutrina que firmou (o do artigo 498 n. 3 do Código Civil também se aplicar aos responsáveis meramente civis), de sorte a tornar-se desnecessária a sua repetição para se secundar tal doutrina.
5. Ainda que se subscrevesse a doutrina do Professor Antunes Varela, a coincidir com a do acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Junho de 1988 (Boletim do Ministério da Justiça n. 379, páginas 588 e seguintes), teríamos de firmar doutrina no sentido de não se encontrar prescrito o direito de indemnização da autora (ora recorrida) contra a Ré B Limitada (ora recorrente) por o prazo certo de três anos (previsto no artigo 498 n. 1 do Código Civil) não ter ainda decorrido quando da propositura, em 22 de Junho de 1990, da presente acção.
- Esse novo entendimento apoiar-se-ia no facto de o caso "sub judice" encontrar-se abarcado numa das excepções ao princípio da adesão obrigatória da acção cível ao processo penal consagrado no artigo 29 do
Código de Processo Penal de 1929 (vigente à data do acidente de viação em causa).
- Referimo-nos à excepção prevista no proémio do artigo 30 que prescreve: "a acção civil de perdas e danos por infracção penal que não depender da acusação ou participação particular pode propor-se em separado perante o Tribunal civil quando a acção penal não tiver sido exercida pelo Ministério Público dentro de seis meses a contar da participação em juízo ou estiver sem andamento durante este lapso de tempo.
"Na verdade, uma vez que a infracção penal dependia de queixa (artigo 148 n. 4 do Código Penal) a acção civil tinha "obrigatoriamente" de ser exercida na acção penal, salvo se o processo de inquérito estivesse sem andamento durante seis meses.
- Foi o que se verificou.
- O processo de inquérito encontrava-se "sem movimento desde 8 de Junho de 1988", conforme informação do Ministério Público, datado de 8 de Junho de 1990 (cfr. facto referido em 10), n. 1 do presente parágrafo), o que equivale a dizer que o prazo de prescrição só começa a correr decorridos seis meses após a data em que ficou sem movimento o processo de inquérito, ou seja, a partir de 9 de Dezembro de 1988 - artigo 306 n. 1 do Código Civil.
Começando a correr o prazo de prescrição do direito de indemnização ao Autor relativo à Ré B Limitada em 9 de Dezembro de 1988, é manifesto que, à data da propositura da acção, ainda não havia decorrido o prazo de três anos.
- A acção indemnizatória em causa é, pois, tempestiva quando se adopte (o que não é o caso) a doutrina do artigo 498 n. 3 do Código Civil não aproveitar os responsáveis meramente civis.
- Conclui-se, assim, que não se encontra prescrito o direito de indemnização da Autora em relação à Ré B Limitada.
IV
Conclusão:
Do exposto, pode extrair-se que:
1) o alargamento do prazo prescricional previsto no artigo 498 n. 3 do Código Civil se aplica aos responsáveis meramente civis.
2) a acção de indemnização, tem de ser exercida obrigatoriamente na acção penal, salvo se o processo de inquérito, dependente de queixa, tiver parado por seis meses - artigos 29 e 30 do Código de Processo Penal de
1929.
3) O prazo de prescrição - quer o de três anos (artigo 498 n. 1) quer o de 5 anos (artigo 498 n. 3) - começa a correr a partir do momento em que o lesado pode intentar livremente a acção civil.
Face a tais conclusões, em conjugação com os elementos reunidos nos autos, poderá precisar-se que:
1) Não tinha decorrido o prazo prescricional do direito de indemnização da Autora em relação à Ré B Limitada quando a presente acção foi intentada.
2) O acórdão recorrido não merece censura por ter observado o afirmado em 1).
Termos em que se nega provimento ao recurso e, assim, confirma-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 8 de Junho de 1995.
Miranda Gusmão.
Araújo Ribeiro.
Sá Couto.
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 31 de Março de 1993 do 1. Juízo - 2. Secção de Vila Nova de Gaia;
II - Acórdão de 26 de Maio de 1994 da Relação do Porto.