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APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTOS
SEGREDO BANCÁRIO
INTERESSE JURIDICAMENTE ATENDÍVEL
Sumário
I – A obrigação de apresentação de coisas ou documentos está dependente dos seguintes requisitos: a) – Que o possuidor ou detentor desses documentos não os queira facultar; b) – Que essa recusa se faça sem ter motivos fundados para se opor à apresentação; c) – E que o requerente tenha um interesse juridicamente atendível na apresentação do documento ou no seu exame. II – Os herdeiros de um depositante não podem ser tidos como terceiros relativamente às contas do mesmo, razão por que não lhes pode ser oposto o segredo bancário. III – Não sendo alegada a existência de sonegação de bens por parte do cabeça de casal obrigado a prestação de contas da adminitração do respectivo acervo hereditário, não pode considerar-se que outro herdeiro tenha um interesse juridicamente atendível na apresentação de documentos relativos a depósitos bancários efectuados pelo “de cujus” e inerente movimentação no período que antecedeu o respectivo óbito.
Texto Integral
Desembargadora Relatora: Amélia Ameixoeira
Desembargadores Adjuntos: Carlos Portela
Joana Salinas
Proc. nº 26/08.6TBVCD.P1
Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO:
Intentou B…………., casada, residente na Rua ………., nº ….., Vila do Conde, a presente acção sob a forma de processo especial para apresentação de documentos contra “C…………, S.A.”, com sede na Av. ……., n.º ….., Lisboa e “D…………, S.A.”, com sede na Rua ………, n.º ….., Porto, peticionando a designação de dia e hora para que os RR lhe entreguem cópia dos extractos de conta-corrente referentes aos movimentos das contas bancárias tituladas ou co-tituladas por E………… e realizados durante o período que mediou a abertura das mesmas e o dia 12/03/2003.
Para tanto, alega ser filha de E……………, falecida em 12/03/2003. Que da herança aberta por óbito de Rosinda estão por partilhar os saldos e títulos existentes e associados às contas bancárias com os n.ºs ……….119 (C…….) e ………/0105 (D……..), os quais vêm sendo administrados pelo cabeça de casal, marido da falecida e pai da autora, F…………., o qual se recusa a prestar contas da sua administração aos interessados na herança. Alega que, por esse motivo, pretende exigir judicialmente a prestação de contas ao cabeça de casal, mas para isso precisa de ter acesso aos extractos bancários e demais documentos atinentes aos movimentos de conta até à data do óbito para instruir tal acção, o que lhe vem sendo negado pelos RR.
Válida e regularmente citados, contestaram os RR, por impugnação e por excepção.
Concretamente, o réu “D………., SA” alegou, em síntese, que, para os fins pretendidos pela autora não se mostra pertinente o conteúdo dos extractos bancários referentes aos movimentos que ocorreram entre a abertura de conta em 11/07/1989 e a data do óbito daquela co-titular de conta (sendo que os verificados posteriormente ao óbito já foram disponibilizados à autora). Por outro lado ainda, excepciona que tais documentos e respectivo conteúdo estão abrangidos pelo dever profissional de segredo bancário, o que a impede de os exibir à autora.
Por sua vez, o réu “C…………, SA” alegou, em síntese, que os documentos exigidos e respectivo conteúdo estão abrangidos pelo segredo bancário, a que está obrigada por lei, apenas podendo ser quebrado com a autorização do co-titular da conta, o que até à presente data não aconteceu, ou nos casos previstos no art.º 79º do RGICSF, o que também não se verifica in casu. No mais, alega que os documentos referentes aos movimentos ocorridos após o óbito da co-titular foram oportunamente disponibilizados à autora.
Concluem, ambos, pela improcedência da presente acção.
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Foi proferido despacho saneador sentença que decidiu julgar totalmente improcedente, por não provada, a acção proposta por B………….. e, em consequência, absolver os réus C…………, SA e D……………, SA do pedido.
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Inconformada com o teor de tal decisão veio a Autora recorrer, concluindo as suas alegações do modo seguinte:
A. A Autora não invocou como razão justificativa do pretendido acesso aos sobreditos documentos apenas a vontade de exigir a prestação de contas ao cabeça de casal.
B. Na verdade, em 7. da petição inicial a Autora, referiu claramente que «… na qualidade de herdeira de parte dos saldos e/outros títulos existentes em Instituições de Crédito em nome da falecida E…………… (art. 2157º CC), necessita que lhe sejam exibidos os extractos com os movimentos efectuados desde a abertura das referidas contas, até aos dias de hoje, de modo a poder apurar o conteúdo do seu direito, seja para exigir a prestação de contas por parte do administrador da herança, seja para, na sua sequência, dele reclamar o seu quinhão.»
C. Ou seja, contrariamente ao que se refere na sentença, a Autora não invocou unicamente a vontade de intentar uma acção de prestação de contas, tendo também referido que, na qualidade de herdeira de sua mãe, pretende conhecer o conteúdo do seu direito, ou seja, pretende saber que quantias fazem parte da herança de que é co-titular, para o que, naturalmente, precisa de aceder aos movimentos de tais contas bancárias, mesmo os anteriores à morte de sua mãe, pois, com se sabe, só mediante o acesso a tais elementos é que qualquer herdeiro pode conhecer o preciso conteúdo da herança, e, por arrastamento do seu direito (ou quinhão) a ela designada e principalmente a ocorrência de doações de dinheiro realizadas a benefício de algum outro herdeiro.
D. Sendo a Autora herdeira de determinada herança, tal circunstância chega bem para aferir sem mais do interesse jurídico que possa ter em aceder aos bens (móveis, imóveis e direitos de crédito) da herança, já que, sucedendo na posição jurídica do de cujus, o seu interesse e direito é exacta e precisamente o mesmo do Autor da herança.
E. A lei não refere a necessidade do Autor apelar a um qualquer interesse juridicamente relevante, mas tão somente a um interesse jurídico (artigo 574.º CC).
F. Um interesse jurídico não é um facto, contrariamente ao que supõe a sentença, mas sim uma razão ou conclusão de natureza estritamente jurídica.
G. Constitui inquestionável interesse jurídico, o do herdeiro que pretende conhecer o conteúdo da herança, apurar se dela fazem ou não parte quantias em dinheiro, se a autora da herança fez em vida, através das contas bancárias, disposições de valores em benefício de outro qualquer herdeiro, etc., etc.
H. Mesmo que se entendesse que a Autora teria de provar factos integradores do seu interesse juridicamente relevante, sempre seríamos levados a concluir que a sentença se equivocou quando refere que a Autora se esqueceu de indicar os seus meios de prova.
I. O tribunal – tendo entendido ser necessário produzir provas -ignorou que sendo o presente processo um processo especial, cumpria aplicar-lhe, como determina o artigo 463.º n.º 1 do CPC, em primeiro lugar as regras próprias – as dos artigos 1476.º a 1478.º do CPC, donde não consta qualquer alusão à indiciação e produção de provas – e, depois, as regras gerais e comuns – donde, como se sabe, igualmente não constam regras sobre a presentação de provas e sua produção - posto o que, em tudo o que não estiver regulado numas e noutras, se aplicarão as regras do processo ordinário, as quais, como se sabe, mandam elaborar uma base instrutória e notificar as partes para apresentarem as suas provas.
J. Ou seja, se entendia que era necessário produzir provas, o tribunal deveria ter saneado o processo, indicado os Factos Assentes e elaborado a Base Instrutória, posto o que notificaria as partes para indicarem as provas que deveriam ser produzidas, tudo nos termos do artigo 512.º do CPC.
K. Sucedendo a recorrente nos mesmos direitos da falecida e passando assim a ser co-titular das contas bancárias, é evidente a existência do direito da recorrente em obter todas as informações respeitantes às mesmas, incluindo informações sobre os movimentos bancários desde a data da sua abertura, bem como o direito a obter os documentos que materializam os extractos relativos a todos os movimentos bancários das contas.
L. Se a falecida tinha direito a obter os extractos bancários dos movimentos da conta desde a data da sua abertura, também à recorrente assiste, desde a abertura da sucessão, esse direito, nenhuma razão subsistindo a contrario.
M. De facto, o titular ou co-titular de uma conta bancária, para aceder às informações sobre os seus movimentos ou obter um qualquer extracto bancário, não necessita, para além de comprovar de que é titular ou co-titular da conta, de demonstrar um qualquer interesse concreto na obtenção das informações ou documentos.
N. O direito à informação e designadamente o direito à obtenção de informações documentada sobre os movimentos bancários extractos bancários - resulta da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta.
O. Enquanto herdeira, a recorrente tem obviamente um interesse jurídico no exame dos extractos bancários das contas onde se encontram depositadas quantias que constituem bens da herança, seja para perceber que activos financeiros fazem parte da herança, seja para se certificar que outros herdeiros não beneficiaram em vida da Autora da sucessão de uma qualquer liberalidade feita em dinheiro e que, natural e obviamente, irá condicionar o conteúdo do seu direito (quinhão) à herança.
P. A própria sentença reconhece o direito e o interesse da Autora aceder aos documentos em questão, quando expressamente referiu que «… à priori ninguém questiona que, ingressando aquela na posição jurídica desta, porque herdeira, a autora tem o direito de aceder aos extractos bancários das contas tituladas pela autora da sucessão e sobre aqueles ser devidamente esclarecida, pois que esses bens pertencem "agora" ao acervo hereditário a partilhar e a autora, na qualidade de herdeira, tem todo o interesse em o preservar e saber o estado em que o mesmo se apresentava/possuía à data do óbito.»
Q. A própria Autora, como atrás se viu igualmente alegou esse interesse, quando referiu querer conhecer o conteúdo do seu direito (de herdeira) ao acervo hereditário, para o que importará, naturalmente, conhecer esse mesmo acervo hereditário, et por cause, o que dele fez parte e o destino que sofreu, mesmo em vida da Autora da herança, seja, como alegou, para reclamar o seu quinhão, seja, como alegou, para exigir a prestação de contas ao cabeça de casal.
R. Para a prestação de contas pelo cabeça de casal, a Autora sempre necessitará, antes do mais, de saber qual o património que ficou sob a sua administração, para o que, se quiser poder sindicar o que então e a propósito dirá o próprio cabeça de casal, terá de averiguar os bens existentes antes do decesso da Autora da herança.
S. As recorridas entidades bancárias têm o dever de informação, o dever de informar e documentar a recorrente sobre os movimentos das contas bancárias e de lhe fornecer os extractos bancários das mesmas.
T. O dever de sigilo bancário a cargo das recorridas impõe-se em defesa do cliente e perante terceiros, inserindo-se assim na perspectiva de relação extrínseca da actividade bancária.
U. A recorrente, enquanto herdeira da falecida co-titular das contas bancárias, não é terceira em relação a estas contas.
V. A recorrente ingressou na titularidade das relações jurídicas da falecida e assim passou a ser co-titular das contas bancárias de que a mesma era titular ou co-titular, independentemente do facto de se tratarem de contas solidárias -como é o caso da conta bancária do C………… com o número ……..119 mas já não da conta bancária do D………. com o número 1-……../0105.
W. Não sendo a recorrente terceira em relação às referidas contas bancárias, não lhe é oponível pelas recorridas o dever de sigilo bancário.
X. O M.mo Juiz a quo fez errada interpretação do artigo 575º do Código Civil, pelo que, salvo o devido respeito, violou-o quando indeferiu a acção.
Conclui no sentido de dever ser revogado o despacho/sentença recorrido, substituindo-o por acórdão que julgue a acção totalmente procedente, designando, em consequência, dia e hora para apresentação pelos recorridos dos documentos solicitados.
Os apelados não contra-alegaram.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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QUESTÕES A DECIDIR:
A questão fulcral a decidir no presente recurso consiste em saber se está demonstrado o interesse jurídico atendível da Autora em examinar os extractos das contas bancárias de que era titular a sua falecida mãe, entre a data da abertura das contas e a data do seu óbito.
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FUNDAMENTAÇÃO
A) DE FACTO:
Com relevo para a decisão dos autos importa reter os seguintes factos:
1. A autora é filha de E…………., falecida a 12/02/2003.
2. Por escritura pública de habilitação e partilha, outorgada a 12/01/2004, na Secretaria Notarial da Póvoa de Varzim, consta, para além do mais, que F………… é herdeiro de E…………. e assumiu as funções de cabeça de casal do acervo hereditário.
3. Por via da referida escritura foram partilhados os bens que se declarou constituírem o acervo dos bens da autora da herança.
4. Á Autora B…………., habilitada como herdeira, e interveniente na escritura de habilitação e partilha, foi adjudicada a torna de quatro mil oitocentos e trinta euros e sessenta e sete cêntimos, por não levar bens em espécie e que recebe de seu irmão F………….
5. À data do óbito da E………….., esta co-titulava com F………….. a conta bancária aberta no C………… com o n.° ………….119 e titulava a conta bancária aberta no D…………. com o n.º …………./0105.
4. A autora solicitou junto dos réus os extractos que documentem os movimentos efectuados nas contas referidas em 3. entre a data da abertura da conta e a data do óbito da E…………...
5. Os réus recusaram-se a exibir e entregar os extractos bancários referidos em 4.
6. O co-titular da conta n.° ………….119 não deu autorização ao co-réu C…………. para divulgar os movimentos de conta anteriores à data do óbito de E…………...
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DE DIREITO:
Tendo em consideração a delimitação do objecto do recurso impõe-se aferir se estão preenchidos os requisitos legais estatuídos no art.1476º do CPC necessários à procedência da acção especial de apresentação de documentos.
Ai se refere que:
“Aquele que, nos termos e para os efeitos dos arts.574º e 575º do CC, pretenda a apresentação de coisas ou documentos que o possuidor ou detentor lhe não queira facultar justificará a necessidade da diligência e requererá a citação do recusante para os apresentar no dia, hora e local que o juiz designar”
Por sua vez o art.574º estabelece que, no caso de apresentação de coisas, aquele que invoca um direito, pessoal ou real, ainda que condicional ou a prazo, relativo a certa coisa, é lícito exigir do possuidor ou detentor a apresentação da coisa, desde que o exame seja necessário para apurar a existência ou o conteúdo do direito e o demandado não tenha motivos para fundadamente se opor à diligência.
E o art.575º vem dispor que “As disposições do artigo anterior são, com as necessárias adaptações, extensivas aos documentos, desde que o requerente tenha um interesse jurídico atendível no exame deles”.
No dizer dos Profs Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, I Vol., págs.559/560, “para o exercício do direito de apresentação de coisa móvel ou imóvel, deve o requerente ter um interesse legitimo baseado num direito real ou pessoal relativo a essa coisa, isto é…a informação deve ser precisa para se apurar a existência ou o conteúdo do direito invocado.
O direito a ser apurado pode respeitar a terceiro, que não ao possuidor ou detentor da coisa.
Não obstante, como refere Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, edição da AEFDL, III Vol, pág.527, a obrigação de apresentação “forma-se na esfera de quem exerça poderes materiais sobre a coisa. A lei esgotou todas as possibilidades ao falar em possuidor ou detentor da coisa…”
Este autor faz depender a existência da obrigação de apresentação de documentos à existência de um alegado titular de um direito, pessoal ou real relativo a certa coisa, móvel ou imóvel, e com necessidade de examinar a coisa para apurar o conteúdo do seu direito.
Assim, a obrigação de coisas ou documentos está dependente dos seguintes requisitos:
a) Que o possuidor ou detentor desses documentos não os queira facultar;
b) Que essa recusa se faça sem ter motivos fundados para se opor à apresentação;
c) E que o Requerente tenha um interesse juridicamente atendível na apresentação do documento ou no seu exame.
Estará obrigado a prestar informações sobre a existência ou o conteúdo de um direito todo aquele que se encontre em situação de o fazer, contanto que as dúvidas do respectivo titular sejam fundadas.
(Neste sentido, cfr. Acórdão do STJ de 16/12/1993, in BMJ 432º, pág.375 e Acórdãos da RL de 18/12/2007, proc. nº 8473/2007-2 e de 26/11/2009, proc. nº 3176/08.5YXLLSB.L1.8, publicados in www.dgsi.pt)
Ainda segundo Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 5ª edição, págs.669, 670, a justificação da disciplina deste artigo compreende-se, uma vez que a lei não pode deixar de ter na devida conta os interesses em conflito: por um lado, a favor do direito de exigir a apresentação de coisas ou documentos, postula o interesse da descoberta da verdade e da defesa dos direitos dependentes da exibição da coisa ou documento e, eventualmente, o interesse da administração da justiça. Por outro, não se pode esquecer o interesse do detentor da coisa ou documento em não ver ofendida a sua liberdade individual.
Ponderando os requisitos exigidos e as razões subjacentes à previsão normativa, vejamos o caso dos autos:
Em causa está o pedido de apresentação de documentos relativos às contas bancárias de que era titular e ou co-titular a falecida mãe da recorrente.
Pretende a recorrente ter acesso aos extractos das contas bancárias entre a data da abertura das contas e a data do óbito de sua mãe.
A questão suscitada nos autos impõe a este tribunal a ponderação de duas questões distintas:
A primeira, a de saber se no caso as entidades bancárias estavam vinculadas ao dever de sigilo bancário.
Isto porque, sendo a recorrente filha da falecida e sua herdeira, entende que o sigilo bancário não lhe é aplicável.
O dever de sigilo bancário traduz uma obrigação de facto negativo, um non facere, e encontra-se disciplinado no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (Doravante referido pela sigla RGICSF), aprovado pelo DL nº298/92, de 31 de Dezembro.
Dispõe o nº1 do art. 78º deste diploma, epigrafado de dever de segredo, que "os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços".
Determina, por sua vez, o nº 2 do mesmo preceito que "estão, designadamente, sujeitos a segredo, os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias."
O dever de segredo profissional em questão não é, porém, um dever absoluto, não prevalece sempre sobre qualquer outro dever conflituante.
Sofre, desde logo, as excepções elencadas no art. 79º do cit. RGICSF, onde se estabelece, nomeadamente, que os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo podem ser revelados "nos termos previstos na lei penal e de processo penal" - alínea d) do nº 2.
Estabelece, por sua vez, o art. 84º do referido RGICSF que "( ... ) a violação do dever de segredo é punível nos termos do Código Penal», remetendo assim para o Código Penal vigente, de 1982 (na versão revista decorrente do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março) - cujos arts. 195º e 196º prevêem e punem como crime, quer a violação de segredo profissional, quer o seu aproveitamento indevido, desconsiderando (em inflexão relativamente ao regime pré-vigente, estabelecido pela versão original do Cód. Penal de 1982, no seu art. 185º) a fixação de uma causa específica de exclusão da ilicitude.
Haverá, assim, que atentar nas causas gerais de exclusão da ilicitude - cfr., neste sentido, o Acórdão, da Relação de Coimbra, de 29-11-95, proferido no Proc. 9510834 e COSTA ANDRADE (in "Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 1999, pág. 772) e MANUEL LOPES ROCHA (in Estúdios Penales en Memoria Agustin Femandez-Albor, 1989, p. 434).
Na abordagem do conflito de deveres, estatui o nº 1 do art. 36.° do Cód. Penal (já se defendeu que o nº 3 do art. 135º do CPP remete para o direito de necessidade previsto no art. 34º, do CP - cfr. o Acórdão da Relação do Porto de 17-2-97, proferido no Proc. 9710395) que "não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar". Como assim, não será ilícita a violação do segredo profissional se, perante um conflito de deveres, o agente satisfizer o dever de valor igualou superior ao do dever que sacrifica.
No Código de Processo Penal vigente, generalizou-se a possibilidade de quebra do segredo profissional.
Com efeito, as pessoas indicadas no referido art. 78.°, nº 1, do cit. RGICSF podem recusar-se a depor sobre factos objecto de segredo profissional mas, se a autoridade judiciária, concluindo embora pela legitimidade da recusa, não prescindir desse depoimento, pode requerer ao tribunal que o ordene; e o tribunal deverá ordenar a prestação do depoimento, com quebra do segredo profissional, sempre que entender que esta se mostra justificada em face das normas e princípios aplicáveis da lei penal e, nomeadamente, em face do princípio da prevalência do interesse preponderante – artº 135°, nºs 1 a 3, do CPP.
A possibilidade de apreensão, pela autoridade judiciária, de títulos, valores, quantias ou outros objectos, depositados em bancos ou outras instituições de crédito, relacionados com um crime e que possam revelar grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, bem como a possibilidade de exame pelo juiz de correspondência e documentação bancárias, estão prevenidas no art. 181° do CPP.
As pessoas obrigadas ao dever de segredo profissional podem recusar a apresentação de tais documentos ou objectos em seu poder, se invocarem, por escrito, segredo profissional.
Neste caso, o conflito de interesses e deveres será dirimido pelo tribunal, em termos idênticos aos previstos para a recusa de depoimento - arts. 182.° nº 2 e 135.°, do CPP.
Como salienta Costa Andrade (In "Comentário ... " cit. I, pp. 795-796), «(... ) há-de ter-se presente o critério material adoptado pelo legislador e segundo o qual o tribunal competente só pode impor a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante». «Uma fórmula que se projecta em quatro implicações normativas fundamentais:
a) Em primeiro lugar e por mais óbvia, avulta a intencionalidade normativa de vincular o julgador a padrões objectivos e controláveis, não cometendo a decisão à sua livre apreciação;
b) Em segundo lugar, resulta líquido o propósito de afastar qualquer uma de duas soluções extremadas: tanto a tese de que o dever de segredo prevalece invariavelmente sobre o dever de colaborar com a justiça penal ( ... ) como a tese inversa, de que a prestação de testemunho perante o tribunal (penal) configura só por si e sem mais, justificação bastante da violação do segredo profissional ( ... );
c) Em terceiro lugar, o apelo ao princípio da ponderação de interesses significa o afastamento deliberado da justificação, neste contexto, a título de prossecução de interesses legítimos (...);
d) Em quarto lugar, com o regime do art. 135º do CPP, o legislador português reconheceu à dimensão repressiva da justiça penal a idoneidade para ser levada à balança da ponderação com a violação do segredo: tudo dependerá da gravidade dos crimes a perseguir (...).»
Dito doutro modo: não se deverá adoptar o entendimento, que se reputaria de maximalista, segundo o qual o dever de cooperação com a justiça prevalece sempre sobre o sigilo bancário (...) (Neste sentido, cfr. Garcia Marques, em declaração de voto exarada no parecer da P.G.R. nº 28/86 (in Pareceres do C.C. da PGR, VI, Os Segredos e a sua tutela, pág. 450). Antes «a resolução do problema se deverá encontrar com base na aplicação dos critérios que, no caso concreto, sejam idóneos para determinar o peso relativo das representações valorativas dos deveres em conflito» - Ibidem. «Ou seja, a prevalência do segredo ou do dever de cooperação com a justiça dependerá da conclusão a que, em concreto, se chegar quanto ao interesse dominante» - Ibidem.
Enquanto dever de segredo profissional é geralmente estabelecido a favor da integridade e liberdade das pessoas a quem aproveita (Cfr. o art. 26.º nº1 da Constituição).
Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (in "Constituição da República Portuguesa Anotada", 1993, pp. 181/182), não é fácil demarcar a linha divisória entre o campo da vida privada e familiar que goza de reserva de intimidade e o domínio mais ou menos aberto à publicidade (...). O critério constitucional deve talvez arrancar dos conceitos de "privacidade" e "dignidade humana", de modo a definir-se um conceito de esfera privada de cada pessoa, culturalmente adequado à vida contemporânea. O âmbito normativo do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada e familiar deverá delimitar-se, assim, com base num conceito de "vida privada" que tenha em conta a referência civilizacional sob três aspectos: (1) o respeito dos comportamentos; (2) o respeito do anonimato; (3) o respeito da vida em relação.»).
O dever de segredo profissional bancário tem a sua regulamentação inserida no Título VI do referido RGICSF, no qual se prevê um conjunto de regras de conduta que devem guiar a actuação das instituições de crédito, seus administradores e empregados nas relações com os clientes», visando proteger «de forma eficaz a posição do "consumidor" de produtos financeiros» (vd. preâmbulo do referido DL nº 298/92).
Em matéria cível, determina o art.519º, nº1 do CPC, que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, facultando o que for requisitado.
O nº3, al.c) deste artigo prevê como legitima a recusa em cooperar para a descoberta da verdade, sempre que a obediência importar violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou de segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº4.
Por esta via, deduzida escusa com aqueles fundamentos, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado, nos moldes acima expostos, na ponderação dos interesses em conflito e daquele que deve prevalecer, numa hierarquia de valores em jogo.
Como a este propósito se referiu no Acórdão da RL de 19/09/2006, proc. nº 5900/2006-7, publicado in www.dgsi.pt, na colisão do interesse ou dever de guardar segredo e o dever de informar a solução a encontrar terá de resultar de um juízo de ponderação e coordenação entre os mesmos, tendo em conta a situação em concreto, de forma a encontrar e justificar a solução mais conforme com as finalidades que, nessa situação, se pretende atingir, encarando eventuais limitações de cada um deles tão só enquanto necessárias para salvaguarda dos interesses ou direitos preponderantes em jogo, com respeito aos princípios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade – principio da ponderação de bens e interesses relevantes no caso concreto de modo a poder-se encontrar um sentido unívoco na ordem jurídica.
No caso dos autos, à data do óbito da E…………., esta co-titulava com F…………. a conta bancária aberta no C………… com o n.° ……….119 e titulava a conta bancária aberta no D……….. com o n.º …………/0105.
Em vida, e na qualidade, quer de depositante, quer de co-depositante, podia pedir as informações que tivesse por pertinentes, quer relativas ao depósito individual, quer conjunto.
Tal direito deverá considerar-se transmitido aos herdeiros uma vez que os depósitos, enquanto bens, passam a fazer parte do acervo da herança deixada em aberto por morte do depositante.
Consequentemente, os herdeiros de um depositante não podem ser tidos como terceiros relativamente às contas do mesmo, razão porque não lhe pode ser oposto o segredo bancário.
Este entendimento que sufragamos, e que foi firmado no supra citado Acórdão da RL de 19/09/2006 é recorrentemente firmado pela jurisprudência citando-se, entre outros, os arestos seguintes:
Acórdão do STJ de 28/06/1994, publicado in CJ Tomo II, pág.163, que entendeu que “o sigilo bancário não pode ser oposto aos herdeiros do cliente, em processo de inventário facultativo, onde foi acusada a falta de relacionamento de um deposito bancário”.
Acórdão da RL de 28/02/2002, proc. nº 00122732, publicado in www.dgsi.pt, onde se defendeu que “às relações do cliente com a instituição bancária a que alude o art.79º do DL nº 298/82, de 31/12, são chamados, por via da sucessão, os herdeiros.
Ora sendo inequívoco que o titular da conta tem direito de obter informações dos movimentos efectuados nessa mesma conta, esse direito transmite-se aos herdeiros.
Acórdão da RC de 02/10/2007, proc. nº 294/04, publicado in www.dgsi.pt, que entendeu que o dever de sigilo não é invocável perante herdeiros do titular da conta.
O Acórdão da RL de 05/12/2006, proc. nº 2294/06.9YRCBR, entendeu dever ser concedida a dispensa do dever de segredo bancário quando esteja em causa a determinação dos bens que compõem o acervo hereditário, cumprindo determinar em que medida a informação bancária é instrumentalmente necessária a essa determinação, designadamente quando esteja em causa, como passível de integrar a herança, dinheiro pertencente a tal acervo presumivelmente depositado nas contas de alguém, num determinado banco.
Também o Acórdão da RC de 14/02/2006, publicado in CJ Tomo I, págs.29/30, entendeu justificar-se a dispensa do segredo bancário, para o efeito de apurar uma eventual sonegação de bens.
No caso dos autos, a Autora alega na sua petição inicial no respectivo art.7º, o seguinte:
“A Autora, na qualidade de herdeira de parte dos saldos e/outros títulos existentes em Instituições de Crédito em nome da falecida E……….. (art.2157º CC) necessita que lhe sejam exibidos os movimentos efectuados desde a data da abertura das referidas contas, até aos dias de hoje, de modo a poder apurar o conteúdo do seu direito, seja para exigir a prestação de contas por parte do administrador da herança (seu pai, que segundo alega, sempre se recusou a prestar contas), seja para, na sua sequência, dele reclamar o seu quinhão”.
Funda nesse conjunto de circunstâncias o seu interesse jurídico atendível no exame desses documentos.
Subjacente a tal alegação está a alegada recusa por parte do cabeça de casal da herança aberta por óbito da falecida E…………, em prestar contas da sua actividade, no que concerne a eventuais depósitos bancários, já que foi outorgada escritura de partilha dos bens imóveis.
Como acima ficou exposto e agora se reitera, estará obrigado a prestar informações sobre a existência ou o conteúdo de um direito, todo aquele que se encontre em situação de o fazer, contanto que as dúvidas do respectivo titular sejam fundadas.
Ora no caso em apreço, a recorrente não invoca qualquer dúvida fundada como pressuposto do seu pedido.
A recorrente já obteve das entidades bancárias informação sobre os saldos existentes nas contas de que sua mãe era titular e ou co-titular com o seu pai e cabeça-de-casal, no período posterior ao falecimento de sua mãe (conforme confessa no art.18º da p.i.) e pretende agora examinar o conteúdo das contas desde a data das respectivas aberturas, uma delas ocorrida em 1989 até à data do óbito ocorrido em 12/03/2003, para descobrir qual o conteúdo do seu quinhão hereditário.
O que está subjacente à sua pretensão é uma mera desconfiança ou suspeita, na existência de dados ocultados e que não encontram suporte em qualquer alegação factual conducente à confirmação com factos objectivos, de uma mera suspeita subjectiva.
No limiar, a conduta da Autora visa obter conhecimento de elementos de facto que traduzem uma total devassa da vida económica de sua falecida mãe durante cerca de 14 anos, sem qualquer suporte factual relevante.
Sufraga-se nesta parte o teor da sentença proferida em sede de 1ª instância, quando refere o seguinte:
“Em tese, não se questiona o interesse, a utilidade, que a autora possa ter na propositura de uma acção de prestação de contas contra o cabeça de casal que administra a herança aberta e aceite por óbito de E………..
Na realidade, de acordo com o art.° 2093° do Código Civil, o administrador da herança deve prestar anualmente contas da sua actividade, pelo que, não o fazendo, podem os demais herdeiros exigir judicialmente que isso aconteça através, precisamente, da propositura de uma acção de prestação de contas que segue a tramitação prevista no art.° 1014° e sgs. do Código de Processo Civil.
Acontece, porém, que em concreto, não se vislumbra que utilidade possa ter o conteúdo dos extractos bancários, referentes a movimentos anteriores à data do óbito da titular ou co-titular da conta, para uma acção de prestação de contas, se nesse tipo de acção apenas se questiona (ou pode questionar) a gestão dos bens pertencentes à herança aberta e aceite e não o que eventualmente existiu e esteve na disponibilidade do autor da sucessão enquanto vivo.
Coisa diversa seria a autora necessitar de tais documentos para apontar e demonstrar uma eventual sonegação de bens por parte de algum herdeiro, nomeadamente, o cabeça de casal, mas tal não foi o que sucedeu nos presentes autos, estando o tribunal impedido, sob pena de violar o princípio fundamental do dispositivo, de ir além ou conjecturar o realmente querido alegar e peticionar pelas partes nos seus articulados.
Assim, necessário se mostra concluir que para a propositura e procedência de uma eventual acção de prestação de contas, está já a autora, segundo reconhece, devidamente informada e suportada documentalmente (cfr. art.°s 17° e 18° da petição inicial), não carecendo de elementos bancários reportados a momento anterior à data do óbito do autor da sucessão.
Importa, então, concluir em conformidade com o vindo de expor, ficando prejudicada, dessa forma, a apreciação dos demais pressupostos necessários à procedência da presente acção”.
O caso dos autos não encontra identidade com qualquer uma das decisões dos Tribunais Superiores acima indicados, nos quais ressalta, como elemento comum, a existência de sonegação de bens que deveriam integrar a herança e a necessidade de obter prova dessa sonegação, fundada em dados objectivos.
No caso dos autos nenhum elemento de facto foi alegado que leve este tribunal a poder concluir pela existência da apontada sonegação de bens.
Não integra tal conclusão a mera recusa do cabeça de casal em prestar contas sobre a administração da herança, já que a Autora teve acesso aos elementos bancários reportados à datada da sua abertura.
Conclui-se assim, que a recorrente não alegou factos que revelem a existência de interesse jurídico atendível no exame dos documentos, sendo certo que lhe incumbia a observância de tal ónus, nos termos do art.342º, nº1, do Código Civil, por corresponder à invocação de factos integradores da respectiva causa de pedir.
Não integra a observância de tal ónus, a mera alegação de que o cabeça de casal se recusa a prestar contas sobre a administração da herança, até porque as entidades bancárias lhe facultaram os elementos bancários reportados ao momento do óbito da falecida E…………., sua mãe.
Não estando alegados factos que permitam vir a comprovar a existência do interesse jurídico atendível, que é requisito fundamental da acção de apresentação de documentos, os autos não tinham que prosseguir para ulterior fase de indicação de meios de prova, por não existirem factos relevantes a provar.
E sendo assim, bem andou o Tribunal a quo em julgar a acção improcedente, absolvendo os Réus do pedido.
Consequentemente, a apelação deve improceder.
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DECISÃO
Nos termos expostos, Acordam os Juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação improcedente, mantendo na íntegra a decisão objecto de recurso.
Custas a cargo da Apelada
(Este Acórdão foi elaborado pela Relatora e por ela integralmente revisto)
Porto, 25 de Fevereiro de 2010
Maria Amélia Condeço Ameixoeira
Carlos Jorge Ferreira Portela
Joana Salinas Calado do Carmo Vaz