CONCURSO DE INFRACÇÕES
ABANDONO DE SINISTRADO
OMISSÃO DE AUXÍLIO
ENCOBRIMENTO
Sumário

I - Sendo o critério que distingue unidade e pluralidade de infracções o chamado critério teleológico, o agente cometerá tantos crimes quantas as pessoas sinistradas abandonadas.
II - O crime de abandono de sinistrado continuará a verificar-se, mesmo no caso de a vítima ter tido morte imediata no momento do atropelamento.
III - Com a revogação do CE/54 pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, o crime de omissão de auxílio previsto no artigo 60 deste diploma legal passou a ser abrangido pelas normas dos artigos 219 do Código Penal.
IV - As normas do n. 2 do artigo 60 do CE, que punia como encobridores as pessoas transportadas nos veículos ou animais que se não tenham oposto ao abandono, devem considerar-se revogadas desde a entrada em vigor do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, o qual não prevê a figura autónoma do encobrimento, mas tão-só as de autoria e cumplicidade.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Na comarca de Lisboa, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos A, B, C, D e E, todos com os sinas dos autos, imputando ao primeiro a prática de um crime de homicídio previsto e punido pelo artigo 59, n. 1, alínea a), com referência aos artigos 5, ns. 2 e 3, e 7, todos do Código da Estrada de 1954 (CE/54), em concurso com um crime de ofensas corporais por negligência previsto e punido pelo artigo 148, n. 1, do Código Penal (CP) e com dois crimes de abandono de sinistrado previsto e punido pelo artigo 60, n. 1, alínea a) do CE/54; e a cada um dos restantes a prática de dois crimes de abandono de sinistrado daquela previsão.
F, que foi admitido a intervir como assistente, e sua mulher G deduziram pedido de indemnização civil contra a Companhia de Seguros H S.A., pretendendo a condenação desta a pagar-lhes a quantia de 7300600 escudos, acrescida dos juros vencidos e vincendos até integral pagamento (folhas 144 e seguintes).
Oportunamente, a seguradora requereu o chamamento à autoria do arguido A (folha 189), que o aceitou nos termos constantes de folha 273.
2. Submetidos a julgamento, na 7. Vara Criminal de Lisboa foi proferido acórdão que decidiu: quanto à parte criminal:
- absolver o arguido A da prática do crime de ofensas corporais por negligência;
- condenar o arguido A, como autor de um crime de homicídio previsto e punido pelo artigo 59, alínea b), parte final, do CE/54, na pena de 18 meses de prisão e 200 dias de multa à taxa diária de 300 escudos ou, em alternativa, 133 dias de prisão, e pela prática de um crime de abandono de sinistrado previsto e punido pelo artigo 60, n. 1, alínea a) do CE/54, na pena de 16 meses de prisão e 160 dias de multa à taxa diária de 300 escudos ou, em alternativa 106 dias de prisão. Em cúmulo, foi condenado na pena única de 2 anos de prisão e 300 dias de multa à taxa de 300 escudos por dia (90000 escudos) ou, em alternativa 200 dias de prisão, e ainda 18 meses de inibição da faculdade de conduzir;
- condenar os arguidos B, C, D e E, pela prática de um crime de abandono de sinistrado previsto e punido pelo artigo 60, ns. 1, alínea a) e 2 do CE/54, na pena, cada um deles, de 9 meses de prisão e 90 dias de multa à taxa diária de 300 escudos (27000 escudos) ou, em alternativa, 60 dias de prisão;
- condenar os arguidos em custas;
- ordenar a entrega ao arguido A do veículo AT e seus documentos;
- declarar perdidos a favor do Estado, e ordenar a sua destruição, os objectos referidos na guia de folha 51;
- perdoar ao arguido A 1 ano de prisão e metade da multa bem como a correspondente prisão alternativa, e aos restantes arguidos toda a pena de prisão e metade da multa, bem como a correspondente prisão alternativa (artigo 14, ns. 1, alíneas b) e c), 3 e 4 da Lei n. 23/91, de 4 de
Julho). quanto ao pedido cível:
- condenar a demandada Companhia de Seguros H, S.A. no pagamento aos demandantes b e G da quantia de 3800600 escudos (300600 escudos + 1500000 escudos + 2000000 escudos), sobre a quantia de 300600 escudos, acrescem juros de mora, à taxa legal, desde 24 de Janeiro de 1992 até integral pagamento, e sobre a quantia de 3500000 escudos acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a presente data (do acórdão) até integral pagamento.
- condenar nas custas do pedido os demandantes e a demandada na proporção de vencido.
Inconformados, interpuseram recurso o Ministério Público e o arguido A, em cujas motivações formularam as seguintes conclusões:
O Ministério Público:
1. O artigo 30 do Código Penal perfilha o critério teleológico para estabelecer a distinção entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo ao número de tipos legais preenchidos pela conduta do agente ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime.
2. Tal distinção não reside só na violação de tipos incriminadores, mas também na unidade ou pluralidade de resoluções.
3. No atropelamento dos dois peões, o arguido A apenas quis a conduta indefinidamente perigosa, traduzindo-se a acção voluntária somente na forma como conduziu o veículo; tudo o mais não passou de meras consequências decorrentes do atropelamento.
4. No entanto, a conduta não se limitou ao atropelamento dos peões.
5. Tendo-se apercebido do atropelamento os arguidos puseram-se em fuga, não tomando qualquer atitude no sentido de serem prestados socorros aos peões, abandonando-os à sua sorte e desinteressando-se desta.
6. Ao deixarem as vítimas sem socorro, os arguidos menosprezaram duas vidas, com individualidade própria, protegidas cada uma de per si pelo comando do artigo 60 do CE/54.
7. Os arguidos cometeram duas condutas ilicitas e dolosas, justificando outras tantas censuras (cf. artigo 90, n. 1, do Código Penal).
8. Ao considerar que cada arguido cometeu um crime de abandono de sinistrado a decisão recorrida violou os comandos dos artigos 30, n. 1 do Código Penal e 60, ns. 1, alínea a) e 2 do CE/54.
Deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que condene o arguido A, para além da prática de um crime de homicídio negligente da forma que o foi, como autor material de dois crimes previstos e punidos no artigo 60, n. 1, alínea a) do Código Penal, alterando-se a pena única imposta; e
Os restantes arguidos deverão ser condenados como autores materiais de dois crimes previstos e punidos pelo artigo 60, ns. 1, alínea a) e 2 do CE/54, fixando-lhes pena única.
Beneficiam os arguidos do perdão do artigo 14 ns. 1, alíneas b) e c) 3 e 4 da Lei n. 23/91, mas não da Lei n. 15/94, de 11 de Maio, atento o disposto no artigo 9, n. 2, alínea c) desta lei.
O arguido A.
1. Sendo o crime de abandono de sinistrados punível com pena de prisão entre o mínimo legal de 24 meses; considerando que da omissão do auxilio não resultou agravamento do estado das vitimas, pelo que qualquer auxilio seria irrelevante, considerando também que qualquer auxílio, se necessário, era facilmente obtenível; considerando, ainda, que o I, que recebeu "uns arranhões na perna esquerda" não deve ter-se por sinistrado para os fins em causa; considerando enfim os atenuantes provados e a inexistência de agravantes; considerando tudo isto, a pena concretamente aplicada, dezasseis meses, é manifestamente excessiva, devendo reduzir-se por forma a aproximá-la do mínimo legal.
2. Punindo este crime como puniu, o tribunal "a quo" fez errada aplicação dos critérios dos artigos 71 e 72 do Código Penal, que assim resultaram violados.
3. O crime de homicídio não pode ser punido pela prática final do artigo 59 do CE/54, ao contrário do entendido pelo tribunal recorrido. Com efeito, o excesso de velocidade não foi determinante do acidente e a violação do n. 3 do artigo 5 do CE/54 não constitui manobra perigosa para o objectivo em vista, como se alcança do disposto na alínea b) do artigo 59 e na parte final do n. 1 do artigo 60, ambos desse Código.
4. Assim, a punição deverá fazer-se nos termos do n. 1 do artigo 136 do Código Penal e, considerando as atenuantes e a inexistência de agravantes, a pena de prisão haverá que quedar-se próximo do mínimo legal;
5. O tribunal recorrido, punindo este crime como puniu, violou, por aplicação indevida, o disposto na parte final do artigo 59 do CE/54 e por omissão da aplicação violou o disposto no n. 1 do artigo 136 do Código Penal;
6. Mas, ainda que se devesse entender que o crime é o previsto na parte final da alínea b) do artigo 59, sempre a pena concretamente aplicada deverá considerar-se excessiva, havendo que reduzi-la para próximo do seu limite mínimo, atento o número e qualidade das circunstâncias atenuantes e a inexistência de agravantes.
7. Aqui se dá por repetido mutatis mutandis o que se escreveu no antecedente artigo 2;
8. Enfim, quer se mantenham as penas aplicadas, quer se reduzam nos termos que vão defendidos, sempre os autos demonstram que se justifica a suspensão da execução da pena de prisão por verificação dos requisitos de que a lei faz depender tal, sendo que o tribunal a quo, não decretando a suspensão, violou, por erro de omissão, o disposto no n. 2 do artigo 48 do Código Penal.
O Ministério Público respondeu nos termos de folhas 362 e seguintes.
Após o processo ter subido a este Supremo Tribunal, o arguido A veio a falecer, pelo que foi julgado extinto o procedimento criminal, ficando por isso prejudicado o conhecimento do objecto do recurso a seu respeito (acórdão de folha 387).
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência a que se procedeu com o devido formalismo.
Cumpre decidir.
2. São os seguintes os factos dados como provados, pela decisão recorrida, que consideramos definitivamente fixados, por não ocorrer nem aliás vir alegado qualquer dos vícios enunciados no n. 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal (CPP).
1. Cerca das 2 horas do dia 6 de Outubro de 1990, o arguido A conduzia o seu veículo automóvel matrícula AT, marca "Mini", pela Rua Cidade de Goa, em Sacavém, Lisboa, no sentido Moscavide-Sacavém.
2. Veículo em que se faziam transportar os restantes arguidos.
3. Por essa mesma artéria, e em sentido oposto ao do referido veículo, seguiam na ocasião, a pé, I e J, caminhando um atrás do outro, e ambos na berma esquerda da estrada, atento o sentido que levavam.
4. Junto ao campo de futebol do Sacavenense, o arguido A apercebeu-se da aproximação dos ditos peões.
5. E resolveu então pregar-lhes um susto.
6. Assim não só não reduziu a velocidade a que seguia, superior a 60 quilómetros hora, como guinou bruscamente para o seu lado direito o volante da viatura, levando-a a sair da faixa de rodagem e a invadir o espaço à sua direita, sempre segundo o seu sentido, onde se encontravam os peões.
7. Embateu então com a parte lateral direita da viatura no I, atingindo-o na perna direita e, de seguida, colheu o J, projectando-o no ar e lançando-o a uma distância de pelo menos de 5 metros do local onde se deu o embate.
8. O B veio a cair, imobilizando-se no solo, junto ao muro perpendicular à estrada, que forma um gaveto com o muro onde se encontra o portão de entrada do aludido campo de futebol.
9. Acto contínuo, e não obstante todos os arguidos se terem apercebido perfeitamente dos atropelamentos, o arguido A não parou o veículo automóvel, saiu da berma da estrada retomando a sua mão e continuou em direcção a Sacavém, pondo-se em fuga, nada tendo feito os demais arguidos, seus acompanhantes, para impedir que se afastasse do local.
10. Vieram contudo a imobilizar-se já depois de passado o rio Trancão, onde o primeiro arguido cedeu o seu lugar ao volante da viatura ao arguido
B, passando a ser este a conduzi-la.
11. E nem assim tendo tomado qualquer dos arguidos qualquer atitude no sentido de serem prestados socorros aos peões que haviam deixado para trás.
12. Do referido embate resultaram para o I uns arranhões na perna direita.
13. E para o J as lesões descritas no relatório de autopsia de folhas 54 a 57.
14. As quais, como consequência directa e necessária, lhe causaram a morte.
15. O arguido A havia ingerido bebidas alcoólicas.
16. Este arguido imprimiu ao veículo que conduzia velocidade não adequada com as características do local e saiu da sua faixa de rodagem invadindo a berma por onde seguiam os peões, tendo agido com falta de cuidado, de atenção e de destreza a que sabia encontrar-se obrigado nessa sua actividade.
17. Todos os arguidos se aperceberam perfeitamente do embate e atropelamento daqueles peões de cuja sorte se desinteressaram por completo.
18. Bem sabendo que pela hora a que se deram os factos, reduzidas eram as possibilidades de aqueles serem socorridos.
19. Sabiam todos os arguidos que deviam prestar assistência aos peões, o que não fizeram de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que tal comportamento lhes era proibido por lei.
20. Cuidaram todos em silenciar o acidente.
21. E logo o arguido A providenciou pela reparação dos estragos resultantes na viatura em consequência do embate, colocando-a numa oficina sita em Santa Iria da Azóia, onde veio a ser encontrada na tarde desse mesmo dia 6 de Outubro de 1990.
22. O arguido A confessou os factos provados, exceptuando os descridos nos ns. 4 a 6 e 16.
23. Os arguidos B, C, D e E confessaram os factos provados.
24. A confissão dos arguidos teve relevo para a descoberta da verdade.
25. Todos os arguidos demonstraram arrependimento.
26. São todos delinquentes primários.
27. Os arguidos C e D são amigos do arguido B e apenas conhecem de vista os arguidos A e E.
28. Após o acidente todos os arguidos se dirigiram para a discoteca "Green Splash" onde estiveram até cerca das 3 horas e 30 minutos, que fica situada em Bobadela-Sacavém.
29. O arguido A é escriturário, auferindo a quantia mensal de 70000 escudos. Vive com a mãe, contribuindo com a quantia mensal de 40000 escudos para as despesas da casa.
30. Tem o 9. ano de escolaridade.
31. À data dos factos tinha 25 anos de idade; nasceu a 10 de Julho de 1965.
32. O arguido B exerce a actividade de delegado comercial, com o que aufere o vencimento mensal de 120000 escudos; vive com os pais, contribuindo com a quantia mensal de 10000 escudos para as despesas da casa.
33. Tem o 10. ano unificado.
34. À data dos factos tinha 22 anos de idade; nasceu a 11 de Setembro de 1967.
35. O arguido C é empregado de indústria hoteleira, auferindo o vencimento mensal de 140000 escudos.
36. A mulher é empregada de escritório e aufere o vencimento mensal de 80000 escudos.
37. Tem a 4. classe.
38. À data dos factos tinha 22 anos de idade; nasceu a 28 de Setembro de 1967.
39. O arguido D é vendedor de sistemas de limpeza auferindo o vencimento mensal de 100000 escudos. A mulher está desempregada; tem um filho de 7 meses de idade.
40. Como habilitações literárias tem o 8. ano.
41. À data dos factos tinha 22 anos de idade; nasceu a 13 de Dezembro de 1968.
42. O arguido E é operador de máquinas, auferindo o vencimento mensal de 75000 escudos.
Vive com a mãe, contribuindo com a quantia mensal de 30000 escudos para as despesas da casa.
43. Como habilitações literárias tem o 8. ano.
44. À data dos factos tinha 31 anos de idade; nasceu a 27 de Novembro de 1961.
45. Na ocasião do acidente fazia bom tempo e o piso estava seco.
46. No local do acidente a visibilidade era boa.
47. Os demandantes b e G eram pais do falecido J, o qual faleceu no estado de solteiro.
48. O arguido A havia transferido para a demandada Companhia de Seguros H, S.A. a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo AT-47-29, até ao limite de 50000 escudos, nos termos da apólice 824006.
49. O falecido J tinha, aquando do acidente, 20 anos de idade; nasceu a 28 de Novembro de 1969.
50. Era trabalhador e muito amigo da família.
51. Que lhe era totalmente dedicada.
52. Era saudável e alegre e tinha grande amor à vida.
53. Era amigo de todos, gozava de grande prestigio e admiração de todos os que com ele se relacionavam.
54. Foi sempre uma pessoa exemplar e irrepreensível.
55. Era bom estudante e frequentava na altura o 11. ano.
56. Os demandantes ficaram profundamente abalados do ponto de vista psíquico pela morte do filho.
57. E encontram-se num estado de depressão total, tendo necessidade de tomar medicamentos.
58. O falecido era bom filho, educado e muito amigo dos pais.
59. Tinha como objectivo ingressar o mais rápido possível na faculdade.
60. Toda a vida dos demandantes era organizada e orientada em função do seu filho, com entusiasmo e alegria, o dia a dia, os fins de semana e as férias.
61. Com a sua morte, os demandantes perderam todo o interesse pela vida.
62. Com o funeral do J os demandantes dispenderam a quantia de 140600 escudos.
63. E com a campa dispenderam 160000 escudos.
3. O recurso do Mistério Público (único que nos compete apreciar já que ficou prejudicado o conhecimento do recurso interposto pelo arguido A, por ter sido julgado extinto quanto a ele, por causa da sua morte entretanto ocorrida, o procedimento criminal) suscita duas questões:
- abandono do sinistrado: enquadramento jurídico-criminal, unidade ou pluralidade de infracções;
- medidas das penas aplicadas aos arguidos B Santinhos, C, D e E.
3.1 Abandono de sinistrados.
3.1.1 No caso sub judice, que se refere ao abandono de duas pessoas sinistradas, tratar-se-á de um crime único (tese do acórdão recorrido) ou antes de uma pluralidade de infracções, tantas quantas as vítimas (tese do Excelentíssimo Magistrado recorrente)?
Cremos assistir razão ao recorrente.
Dispõe o artigo 60 do CE/54:
1. Os condutores que abandonem voluntariamente as pessoas vítimas dos acidentes que tenham causado, total ou parcialmente, serão punidas:
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2. Serão punidas como encobridoras as pessoas transportadas nos veículos ou animais que tenham conhecimento do acidente e não se oponham ao abandono pelo modo que lhes seja possível.
Trata-se de um crime de omissão pura. O agente criou um perigo adequado à realização do evento, afectando bens pessoais de terceiros juridicamente protegidos, assistindo a estes o direito natural ao socorro que é o bem jurídico protegido (cf. acórdão deste Supremo, de 7 de Fevereiro de 1990, Colectânea de Jurisprudência, ano XV, tomo 1, páginas 28 e seguintes).
A vida e a integridade física são bens jurídicos que se não podem desligar da personalidade e que apenas podem ser violados na pessoa que os cria com o simples existir, por isso só podem ser protegidos individualmente na pessoa dos seus portadores, (Eduardo Correia, Direito Criminal I, 1968, página 308).
Assim, sendo várias as pessoas sinistradas, cada uma com individualidade e personalidade própria, o agente, abandonando-as à sua sorte, omite, em relação a cada uma, o dever natural de socorro, violando outros tantos bens jurídicos, sendo passível de uma pluralidade de juízos de censura correspondentes a outras tantas resoluções criminosas.
Sendo o critério que distingue entre unidade e pluralidade de infracções o chamado critério teleológico (cf. artigo 30, do Código Penal), o agente cometerá tantos crimes quantas as pessoas sinistradas abandonadas (cf. acórdãos deste Supremo, de 16 de Janeiro de 1985, Boletim do Ministério da Justiça, n. 343, páginas 184 e seguintes, e de 28 de Abril de 1994, recurso n. 43656).
3.1.2 Por outro lado, embora não esteja questionado no recurso, o crime de abandono de sinistrado continuará a verificar-se mesmo no caso de a vítima ter tido morte imediata no momento do atropelamento (cf. acórdãos deste Tribunal, de 1 de Março de 1990, 9 de Maio de
1991 e 22 de Fevereiro de 1992, Boletim do Ministério da Justiça, ns. 395 páginas 230 e seguintes, 407 páginas 141 e seguintes e 414 páginas 259 e seguintes, respectivamente).
3.1.3 Tem-se levantado a questão de saber se o artigo 60 do CE/54 foi ou não revogado face ao artigo 219 do Código Penal.
Este preceito dispõe assim:
1. Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade publica ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, saúde, integridade física ou liberdade de outrém, deixar de lhe prestar auxilio que se revele necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o seu socorro, será punido com prisão até 1 ano e multa até 100 dias.
2. Se a situação referida no número anterior foi criada por aquele que omitiu o socorro ou o auxílio devido, a pena pode elevar-se a 2 anos de prisão e a multa até 200 dias.
Ora, relativamente ao n. 1 do artigo 60 do CE/54, a jurisprudência dos tribunais superiores era no sentido de que tal preceito continuava em vigor por se tratar de uma disposição especial aplicável tão só aos condutores de veículos e nos casos referentes a acidentes de viação.
Actualmente, porém, com a revogação do CE/54 pelo Decreto-Lei n. 114/94, de 3 de Maio (artigo 2), o referido crime de omissão de auxílio passou a ser abrangido pelas normas do artigo 219 que consagram um dever de solidariedade social, e "onde não existe um resultado tipicamente relevante e por isso não entra em causa o problema de adequação da conduta à produção daquele", além de que o preceito do seu n. 2 "apenas exige a criação da situação pelo agente e não que essa criação tenha sido inadmissível ou ilícita" (cf. Figueiredo Dias, A propósito da "ingerência" e do dever de auxilio nos crimes de omissão - Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 116 páginas 23 e seguintes).
E quanto ao crime do n. 2 do citado artigo 60 que punia como encobridoras as pessoas transportadas nos veículos ou animais que se não tenham oposto ao abandono?
Cremos que esta norma se deve considerar revogada desde a entrada em vigor do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n. 400/82, de 23 de Setembro, o qual, contrariamente ao que dispunha o Código Penal de 1886
(artigo 106), não prevê a figura autónoma do encobrimento mas tão só as de autoria e cumplicidade.
Agora não há que distinguir entre pessoas transportadas e não transportadas no veículo que deu causa ao acidente. Todas estão sujeitas ao dever de solidariedade social traduzido na prestação de auxílio se verificados os pressupostos do artigo 219 do Código Penal.
Ora, resultando dos factos provados que os arguidos B, C, D e E, de forma livre e consciente, com conhecimento do carácter ilícito da sua conduta, abandonaram os peões sinistrados, não lhes tendo prestado qualquer socorro nem diligenciado nesse sentido, conclui-se terem incorrido, cada um deles, na prática de dois crimes da previsão do n. 1 do artigo 219 do Código Penal, por serem duas as pessoas que eles deixaram de socorrer.
Nada obsta à alteração da incriminação por o tribunal ser livre de proceder ao enquadramento jurídico dos factos que tiver por mais correcto (cf. "assento" n. 2/93, deste Supremo, de 27 de Janeiro de 1993).
3.2 Medida das penas.
Na determinação da medida da pena há que tomar em conta os parâmetros definidos no artigo 72, n. 1, do Código Penal, em que relevam a culpa do agente e as exigências de prevenção de futuros crimes, sendo ainda de atender aos factores enunciados exemplificativamente no seu n.
2 que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a a favor do agente ou contra ele.
No caso concreto, é normal o grau de ilicitude do facto e o dolo é directo e intenso. A sorte das vítimas foi indiferente aos arguidos, tanto mas que sabiam que, pela hora da ocorrência, eram reduzidas as possibilidades de socorro, o que indica estar-se perante personalidades mal formadas.
A seu favor, serem delinquentes primários, terem confessado os factos com relevo para a descoberta da verdade e terem-se manifestado arrependidos.
São grandes neste tipo de crime as exigências de prevenção geral.
Tudo conjugado, temos por equilibrado fixar em 6 (seis) meses de prisão e 50 (cinquenta) dias de multa à taxa de 300 escudos por dia ou, em alternativa desta, 33 dias de prisão, a pena por cada crime, e, em cúmulo jurídico, condenados cada um dos arguidos na pena única de 9 (nove) meses de prisão e 90 (noventa) dias de multa àquela taxa (27000 escudos) ou, em alternativa desta, 60 dias de prisão.
Nos termos do artigo 14, ns. 1, alíneas b) e c), 3 e 4 da Lei n. 23/91, de 4 de Julho e do artigo 8 ns. 1 alínea b) e 3 da Lei n. 15/94, de 11 de Maio, declara-se perdoada a totalidade das penas em que os arguidos foram condenados.
4. De harmonia com o exposto, acordam em conceder provimento parcial ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que condenou os arguidos B, C,
D e E pela prática de um crime do artigo 60 ns. 1, alínea c) e 2 do CE/54, os quais vão agora condenados como autores de dois crimes previstos e punidos no n. 1 do artigo 219 do Código Penal nas penas referidas em 3.2, totalmente perdoadas nos termos indicados. Quanto ao mais confirma-se a douta decisão recorrida sem prejuízo do decidido quanto à extinção do procedimento criminal relativamente ao arguido A.
Sem tributação.
Emolumentos de 7500 escudos ao Excelentíssimo defensor oficioso.
Lisboa, 27 de Setembro de 1995.
Vaz dos Santos.
Silva Reis.
Costa Figuerinhas.
Castro Ribeiro (dispensei o visto).
Decisão impugnada:
Acórdão de 6 de Julho de 1994 da 7. Vara 2. Secção de Lisboa.