CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL
MORA
PAGAMENTO DE RENDAS
ACÇÃO DECLARATIVA
DESPEJO
Sumário

Não obstante o NRAU prever a possibilidade do senhorio proceder à resolução extrajudicial do contrato de arrendamento com fundamento em mora superior a três meses no pagamento da renda, continua a ser-lhe permitido lançar mão da acção declarativa de despejo para obter esse desiderato.

Texto Integral

Pc. 552/08.7TBPRG.P1 – 2ª Secção
(apelação)
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Relator: Pinto dos Santos
Adjuntos: Des. Ramos Lopes
Des. Cândido Lemos

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Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:

B………. e mulher C………., residentes em França e, quando em Portugal, no ………., ………., Peso da Régua, instauraram a presente acção de despejo, com a forma de processo sumário, contra D………., residente no mesmo ………., pedindo que, por falta de pagamento das rendas vencidas desde Setembro de 2005 até à propositura da acção, no montante global de 315,00€ (correspondente a 35 duodécirnos, no valor de 9,00€ cada), seja declarado resolvido o contrato de arrendamento para habitação celebrado com o demandado, atinente ao imóvel identificado na p. i. e que o réu seja ainda condenado a restituir-lhes o locado, livre e devoluto, e a pagar-lhes aquele montante de rendas, bem como as rendas que se vencerem até à entrega do prédio.

O réu contestou a acção apenas por excepção – não impugnou a materialidade fáctica alegada pelos autores -, invocando a excepção dilatória da nulidade do processado, por erro na forma de processo, por entender que, por lei (pelo NRAU), estava vedado aos demandantes o recurso à via judicial e que a resolução do contrato apenas poderia operar mediante notificação judicial.

Foi, depois, proferido saneador-sentença que considerou improcedente a defesa por excepção do réu e julgou a acção totalmente procedente, com a consequente declaração de resolução do contrato de arrendamento em questão, condenação do réu a despejar imediatamente o locado, devolvendo-o aos autores devoluto de pessoas e bens, e condenação do mesmo a pagar a estes as rendas vencidas – no montante de 315,00€ - e vincendas até efectivo despejo, à razão de 9,00€ por mês, com as actualizações que se venham a verificar.

Inconformado com tal decisão, interpôs o réu o presente recurso de apelação, cujas alegações concluiu do seguinte modo:
“1º. No âmbito dos presentes autos os AA/Apelados intentaram acção de despejo tendente a obter a resolução do contrato de arrendamento habitacional, tudo porque se encontravam em dívida rendas há mais de três meses.
2°. Sustentou o R/Apelante, em sede de contestação, que aos AA/Apelados estava vedado o recurso à presente acção, cabendo extrajudicialmente obter a resolução contratual por via de notificação judicial (arts. 1083°, nº 3 e 1084° n° 1, ambos do C.C.).
3°. Entendeu, contudo, a Mª. Juíza "a quo", (que) ao senhorio assiste o direito de instaurar acção declarativa destinada à resolução do contrato de arrendamento, mesmo quando tenha ao seu dispor a via da resolução extrajudicial (art. 9° do CC).
4°. E, consequentemente, declarou resolvido o contrato de arrendamento e o despejo imediato do local arrendado, com todas as legais consequências.
5°. Entendemos, salvo o devido respeito e com algumas dúvidas, que existe uma imposição legal quanto ao recurso à via extrajudicial, por via de simples comunicação à contraparte, para que o senhorio possa despejar o inquilino no presente caso, estando-lhe vedado o recurso à via judicial – arts. 14°, nº 1, do NRAU e 1084°, nº 1, do C.C..
6°. E, assim, os AA/Apelados não têm, no presente caso, interesse processual em agir (utilizando a acção de despejo), uma vez que o direito que pretendem fazer valer (resolução por falta de pagamento de rendas há mais de três meses) não carece de tutela judicial.
7°. A ausência de tal pressuposto processual (excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso – arts. 288°, nº 1 al. e), 493°, 494° e 495°, todos do C.P.C.) determina a absolvição do Réu da instância.
8°. Ao não decidir no sentido pugnado a M.a Juiza "a quo" poderá (com as reservas colocadas) não ter feito a melhor interpretação do preceituado nos arts. 14°, nº 1, do NRAU e 1084°, nº 1, do C.C..
Termos em que, deve revogar-se a douta sentença recorrida, decidindo-se no sentido pugnado (…)”.

Os autores contra-alegaram em defesa do decidido na sentença recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
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II. Questões a apreciar e decidir:

Sabendo-se que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (arts. 684º nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3 do CPC, na redacção actual, dada pelo DL 303/2007, de 24/08, aqui aplicável, atenta a data da propositura da acção) e que este Tribunal não pode conhecer de matéria nelas não incluída, a não ser em situações excepcionais, a única questão que importa apreciar e decidir neste acórdão consiste em saber se ao abrigo do NRAU a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas só pode ser efectuada por via extrajudicial.
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III. Factos provados:

No saneador-sentença recorrido consideraram-se provados os seguintes factos (que o recorrente não põe em causa):
1) Está descrito na Conservatória do Registo Predial de Peso da Régua sob o nº 00093/040486, a favor dos autores, pela ap. 03/040486 - aquisição por compra a E………. e mulher F……… -, o prédio urbano sito no ………., freguesia de ………., concelho de Peso da Régua, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 105.
2) Do escrito que faz fls. 10, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, intitulado "contrato de arrendamento", destinado a habitação do arrendatário, consta como senhorio E………. [mencionado em 1] e como inquilino D………. [ora Réu], relativo ao primeiro andar do prédio sito em ………, ………., inscrito na matriz da freguesia de ………. sob o artigo 105, "pelo prazo de 1 ano, a começar em 1 de Julho de 1997 e a terminar no último dia do mês de Maio de 1978, considerando-se prorrogado por igual período e nas mesmas condições (...)", com a renda anual de 9 600$00, que deverá ser paga em duodécimos de 800$00 em casa do senhorio, ou do seu representante, no primeiro dia útil do mês anterior àquele a (que) disser respeito".
3) Com o decorrer do tempo o referido contrato foi sofrendo actualizações no que diz respeito ao valor da renda, sendo que hoje o valor da renda a pagar mensalmente é de 9,00€ (nove euros), ou seja, 108,00€ (cento e oito euros) anualmente.
4) O Réu desde o mês de Setembro do ano de 2005 e até 21 de Julho de 2008 não tem procedido ao pagamento das rendas, nem no primeiro dia da cada mês, nem nos primeiros oito dias do mês a que corresponde, nem delas fez depósito liberatório.
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IV. Apreciação jurídica:

Os autores pediram que se declarasse resolvido o contrato de arrendamento – para habitação - que os vincula (enquanto actuais proprietários do imóvel) ao réu, com fundamento no facto deste ter deixado de pagar, há mais e por mais de três meses, a renda mensal a que estava obrigado.
A sentença recorrida deferiu tal pretensão, declarando resolvido o contrato de arrendamento em questão e condenando o réu a entregar o imóvel arrendado livre de pessoas e bens e a pagar as rendas em dívida e as que se vencerem até efectivo despejo.
Porque o contrato de arrendamento urbano em causa [é inequívoco que se trata de contrato desta natureza, já que se mostram verificados os elementos integradores da noção constante do art. 1022º do CCiv.] tem conexão com várias leis que se sucederam no tempo – já que quando foi celebrado [em Junho de 1977] ainda não estava em vigor o RAU, ao passo que quando a acção deu entrada em juízo não só já não vigorava o RAU como se encontrava, como ainda encontra, em vigor a Lei nº 6/2006, de 27/05 [desde 27 de Junho de 2006, conforme resulta do nº 2 do art. 65º desta Lei] que promulgou o Novo RAU (NRAU) e alterou vários artigos do Código Civil que regulam o contrato de “locação”, entre os quais o art. 1083º que se reporta aos “fundamentos da resolução” deste contrato -, importa, antes de mais, determinar a lei aplicável ao caso, já que é por ela que teremos que aferir os fundamentos da acção e deste recurso.
A solução desta questão prévia decorre do que estabelecem os arts. 12º nº 2 do CCiv., 26º e 59º da Lei nº 6/2006, de 27/02.
Começando por estes últimos, dispõe o nº 1 do art. 26º da Lei nº 6/2006 que “os contratos celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes”, ao passo que o nº 1 do art. 59º da mesma Lei prescreve que “o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais que subsistam nessa data, sem prejuízo das normas transitórias”, acrescentando, ainda, o nº 3 do mesmo preceito que “as normas supletivas contidas no NRAU só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável”.
Da conjugação destes dispositivos resulta o seguinte quadro:
● Em primeiro lugar, que as normas do NRAU, aprovado por aquela Lei nº 6/2006, são, em princípio, aplicáveis aos contratos de arrendamento urbano que subsistiam à data da sua entrada em vigor, quer esses contratos tenham sido celebrados durante a vigência do RAU (situação directamente prevista no nº 1 do referido art. 26º) quer o tenham sido em data anterior (conforme previsão mais alargada do nº 1 do art. 59º) - nem faria sentido outra solução, até por atenção ao que estabelece o art. 27º da mesma Lei que manda aplicar o capítulo em que está inserido, nomeadamente, “aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU”.
● Em segundo, que o NRAU só não é aplicável a esses contratos de pretérito em duas situações:
- se estiver em causa algum dos casos salvaguardados nas normas transitórias previstas nos seus arts. 26º e segs..
- ou se se verificar a circunstância aludida no nº 3 do citado art. 59º.
Finalmente, que não é pelo momento da instauração da acção que se determina a lei aplicável, mas sim pela data da entrada em vigor daquela Lei e da subsistência, nessa data, dos contratos que passaram a ser abrangidos por ela.
Ora, olhando para as normas transitórias dos arts. 26º e segs. da Lei nº 6/2006, constata-se que nenhuma existe que afaste a aplicação desta Lei a casos como o presente em que a resolução do contrato de arrendamento assenta (tem por fundamento) na falta de pagamento de rendas.
Também não há que chamar à colação o nº 3 do art. 59º, por não estar em causa a aplicação de normas supletivas, mas sim de regras imperativas e por os casos que cabiam na previsão do art. 64º do RAU serem agora enquadráveis na estatuição dos arts. 1083º e 1084º do CCiv., na redacção dada pela Lei nº 6/2006.
Como tal e porque quando esta Lei entrou em vigor (a 27/06/2006) subsistia o contrato que vinculava os autores e o réu, apresenta-se manifesto que a pretensão a dirimir demanda a aplicação do regime ora consagrado no NRAU, aprovado pela dita Lei.

Feitas estas considerações acerca da lei aplicável «in casu», passemos então à apreciação da questão colocada pelo apelante.
Trata-se de problemática já várias vezes apreciada por esta Relação e que sempre obteve a mesma decisão (pelo menos nos arestos que conhecemos), contra o entendimento ora sustentado pelo réu-apelante, ou seja, admitindo que assiste ao senhorio o direito de instaurar acção declarativa destinada à resolução do contrato de arrendamento, mesmo tendo também ao seu dispor a via da resolução extrajudicial.
Poderíamos, por isso, limitar-nos a proferir decisão nos termos permitidos pela parte final do nº 5 do art. 713º do CPC, na redacção aqui aplicável dada pelo DL 303/2007, de 24/08, ou seja, a remeter para um desses doutos acórdãos, juntando aos autos cópia do mesmo.
Seremos, pois, sintéticos a apontar os fundamentos que estão na base de tais decisões, fazendo apelo, com a devida vénia, a um desses doutos acórdãos [o acórdão desta Relação de 19/02/2009, in CJ ano XXXIV, 1, 223-236].
Exarou-se aí o seguinte:
Em matéria de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio com fundamento na falta de pagamento de rendas, estabelece o nº 3 do art. 1083° do CC (com as alterações introduzidas pelo NRAU) que é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda.
Segundo o nº 1 do art. 1084° do CC, a resolução pelo senhorio quando fundada em causa prevista no nº 3 do art. 1083º, bem como a resolução pelo arrendatário, operam por comunicação à contraparte, onde fundamentadamente se invoque a obrigação.
Prevê-se no art. 9º, n° 7 do NRAU que a comunicação pelo senhorio destinada à cessação do contrato por resolução, nos termos do n° 1 do art. 1084º do CC, é efectuada mediante notificação avulsa, ou mediante contacto pessoal de advogado, solicitador ou solicitador de execução, sendo neste caso feita na pessoa do notificando.
Por seu turno, o art. 14º nº 1 do NRAU dispõe que a acção de despejo se destina a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento, sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação, e segue a forma de processo comum declarativo.
A questão que se coloca é assim a de saber se para o senhorio obter a resolução do contrato de arrendamento fundada em causa prevista no nº 3 do art. 1083º do CC, na qual se inclui a falta de pagamento da renda em caso de mora superior a três meses, continua a ser possível o recurso à acção de despejo, prevista no art. 14º n° 1 do NRAU, ou se só é lícito ao senhorio o recurso à via extrajudicial, mediante comunicação ao arrendatário a efectuar através da forma prevista no art. 9º nº 7 do mesmo Diploma.
Acompanhando os argumentos aduzidos (…) por Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge [in “Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar”, 2ª ed., pgs. 324 e segs.] e Gravato Morais [in “Novo Regime do Arrendamento Comercial”, 2006, pgs. 104-105] (…) constituem vantagens da possibilidade de recurso à acção de despejo:
- evitar o "compasso de espera" de 3 meses de duração da mora para o senhorio poder efectuar a comunicação destinada à resolução extrajudicial do contrato;
- evitar um novo "compasso de espera" de mais 3 meses, subsequentes à comunicação do senhorio, para eventual purgação da mora, conforme previsto no art. 1084º nº 3 do CC, e para a exigibilidade da desocupação do locado nos termos do art. 1087º do CC (já que na acção de despejo pode decretar-se o despejo imediato);
- evitar as vicissitudes e dificuldades inerentes à notificação avulsa ou contacto pessoal exigidos pela lei para efectivar a resolução extrajudicial, em especial nos casos em que o paradeiro do arrendatário é desconhecido;
- evitar que a execução para entrega de coisa certa fique suspensa se for recebida oposição à execução (art. 930°-B, nº 1, al. a) do CPC);
- obviar a uma eventual responsabilização nos termos do art. 930º-E, do CPC, norma cujo campo de aplicação se circunscreve à execução fundada em título extrajudicial;
- cumular o pedido de resolução com o de indemnização ou rendas, ou com o de denúncia. quando esta tenha de operar pela via judicial (art. 1086º do CC) ou cumular vários fundamentos de resolução, evitando assim que o litígio sobre a resolução do contrato seja tratado em dois processos distintos, ou seja, na acção de despejo e na oposição à execução;
- permitir ao arrendatário que deduza logo pedido reconvencional, em especial com fundamento em benfeitorias, evitando que a discussão dessa matéria seja relegada para a oposição à execução;
- forçar a uma purgação da mora mais célere (até ao termo do prazo para a contestação), esgotando-se o recurso a essa faculdade, já que apenas pode ser usada uma única vez na fase judicial (art. 1048º, nºs 1 e 2 do CC);
- lançar mão do incidente de despejo imediato previsto no artº 14º, nºs 1 e 5, do NRAU.
Este entendimento não só encontra o mínimo de correspondência no texto legal como é o que melhor reconstitui o pensamento legislativo tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias específicas do tempo em que é aplicado, bem como o desejável acerto e adequação das soluções consagradas (artigo 9º do CC).
E a ele não obsta a noção algo redutora de acção de despejo constante do art. 14°, nº 1, do NRAU, acima transcrito, por se tratar de preceito que foi decalcado do artº 55º, n° 1 do RAU (DL nº 321-B/90, de 15/10), sem ter havido o cuidado de adaptação ao novo regime, em que a resolução do contrato de arrendamento por iniciativa do senhorio já não tem de ser sempre declarada judicialmente.
Aliás, a exclusão do respectivo regime da figura da acção de despejo criaria incongruências, como a não aplicação do disposto no art. 14º do NRAU relativamente ao incidente de despejo imediato por falta de pagamento de renda.
(…)
O legislador não pretendeu, de modo algum, retirar direitos ao senhorio, designadamente afastar o direito de resolução judicial do contrato quando a mora tenha duração igual ou inferior a três meses, nem sequer quando tenha duração superior a três meses.
E se a redacção dos arts. 1083°, nº 3 e 1084°, nº 1 do CC permite uma interpretação literal no sentido de que se pretendeu impor uma solução extrajudicial, não é isso que decorre de outras normas, nomeadamente do art. 1048º do Código Civil – que, embora seja uma norma geral da locação, viu a sua redacção ser alterada precisamente para o harmonizar com o NRAU - e do art. 21º do NRAU.
Este último preceito, relativo à "impugnação do depósito", estipula no seu nº 2, que, quando o senhorio pretenda resolver extrajudicialmente o contrato por não pagamento da renda, a impugnação deve ser efectuada em acção de despejo a intentar no prazo de 20 dias contados da comunicação do depósito. De onde resulta que o senhorio pode quando assim o pretenda resolver judicialmente o contrato por não pagamento de renda; e terá obrigatoriamente de a intentar, mesmo que tenha feito a comunicação extrajudicial, se quiser impugnar o depósito efectuado.
Se a intenção do legislador fosse inviabilizar o recurso à acção de despejo para resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas nos casos em que esta podia operar por via extrajudicial, a redacção do art. 15º nº 1, al. e) do NRAU teria sido diferente, pois não faria sentido exigir-se o contrato de arrendamento para servir de título executivo [documento que não é exigido pela al. f) do mesmo artigo], quando é sabido que, muitos arrendamentos de pretérito (sobretudo habitacionais) não estão reduzidos a escrito, sendo inviável a formação de titulo executivo.
Por outro lado, dispondo o nº 3 do art. 1084º do CC que a resolução pelo senhorio, quando opere por comunicação à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de 3 meses, já o nº 4 do mesmo preceito, relativo a outra situação de resolução extrajudicial do contrato, fundada na oposição pelo arrendatário à realização de obra ordenada por autoridade pública, não comporta a referência "quando opere por comunicação à contraparte".
Portanto, o legislador sentiu necessidade dessa referência para precisar que a possibilidade de purgação da mora prevista no art. 1084º, nº 3 do CC é aplicável unicamente aos casos em que a resolução por falta de pagamento de renda opera extrajudicialmente, o que indica que também pode operar judicialmente, por via da acção de despejo.
É o que também decorre da Exposição de Motivos da Proposta de Lei do Arrendamento Urbano nº 34/X, cujo ponto 2, intitulado "A agilização processual" (em particular o último parágrafo do Ponto 2 da Exposição de Motivos - "nos casos de cessação por resolução com base em mora no pagamento da renda superior a 3 meses, ou devido a oposição do arrendatário à realização de obra ... se o senhorio proceder à notificação judicial avulsa do arrendatário e este mantiver a sua conduta inadimplente, permite-se a formação de título executivo extrajudicial" - ou o parágrafo constante do Ponto 1, com o seguinte teor "O regime jurídico manterá a sua imperatividade em sede de cessação do contrato de arrendamento, mas abre-se a hipótese à resolução extrajudicial do contrato, com base em incumprimento que, pela sua gravidade, ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento"), evidencia que se pretendeu apenas permitir/facultar a formação de título executivo extrajudicial, possibilitando ao senhorio o recurso imediato à acção executiva, mas não impor-lhe esta via.
E também não seria razoável que, perante um incumprimento com a gravidade de que a falta de pagamento de renda se reveste, o legislador tivesse pretendido limitar de forma tão gravosa o direito de acção do senhorio, obrigando-o a esperar seis meses para poder recorrer aos tribunais, e forçosamente à acção executiva, que poderá ficar suspensa, designadamente se for recebida oposição à execução (art. 930º-B do CPC).
Uma interpretação no sentido de considerar vedado ou inadmissível o recurso à acção de despejo para resolução do contrato de arrendamento fundada em falta de pagamento das rendas em caso de mora superior a três meses implicaria um retrocesso na tutela judicial do direito de propriedade do senhorio, constitucionalmente consagrado no art. 62° da CRP e uma denegação do direito de acção, contrariando os princípios consagrados no art. 20º também da Lei Fundamental.
Conclui-se, deste modo, que a intervenção do legislador na matéria em causa, embora infeliz quanto à redacção e inserção sistemática do n° 3 do art. 1083º do CC, não visou limitar o direito de acção do senhorio, mas apenas facilitar/acelerar a entrega coerciva do arrendado, tornando dispensável, em certas situações, a acção declarativa de despejo.

Ante o que fica transcrito – que foi, igualmente, seguido noutros arestos desta Relação [cfr. Acs. de 31/01/2008, proc. 0736573, de 26/02/2008, proc. 0820751, de 20/04/2009, proc. 0837636, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp; no mesmo sentido, veja-se, ainda, o Ac. da Rel. de Lisboa de 31/03/2009, in CJ ano XXXIV, 2, 107-109] e na sentença recorrida -, outra solução não resta que não seja a de proclamar que o réu-apelante não tem razão no que defende nas conclusões das suas alegações e que, por isso, a apelação tem que improceder e a sentença recorrida que ser confirmada.
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Sumariando o que fica exposto (art. 713º nº 7 do CPC):
● Não obstante o NRAU prever a possibilidade do senhorio proceder à resolução extrajudicial do contrato de arrendamento com fundamento em mora superior a três meses no pagamento da renda, continua a ser-lhe permitido lançar mão da acção declarativa de despejo para obter esse mesmo desiderato.
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V. Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes desta secção cível da Relação do Porto acordam em:
1º) Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
2º) Condenar o recorrente nas custas.
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Porto, 2010/03/02
Manuel Pinto dos Santos
Cândido Pelágio Castro de Lemos
João Manuel Araújo Ramos Lopes