COMPRA E VENDA
VENDA A CONTENTO
PRESSUPOSTOS
EFEITOS
Sumário

I - É de venda a contento o contrato de compra e venda feito sob reserva de a coisa agradar ao comprador (artigo 923 n. 1 do C.CIV. de 1966).
II - A venda a contento considera-se como proposta de venda (id).
III - A proposta considera-se feita se, entregue a coisa ao comprador, este não se pronuncia dentro do prazo de aceitação, nos termos do artigo 923 n. 2, id).

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. Relatório
A, propôs na comarca de Lisboa, acção condenatória contra "SDT - Electrónica Lda.", a pedir a condenação desta em 4000000 escudos, correspondente à quantia entregue por ele como caução, em troca do fornecimento, por esta, à experiência por seis meses, de material de radiodifusão que não serviu para o fim em vista e cuja devolução já lhe ofereceu infrutiferamente, e bem assim nos juros de mora, desde a entrega daquela importância.
A ré contestou a legitimidade do demandante porque estabelecera relações comerciais com a socidade Frequência Mais Nova - Sociedade Comercial de Radiodifusão Lda, impugnou os factos e deduziu reconvenção em que pediu o pagamento de 3254000 escudos correspondentes à prestação em falta pela efectivada compra desse equipamento, no termo daquele prazo de seis meses, a 19 de Maio de 1988 e juros de mora à taxa legal, desde esta data.
O autor, na réplica esclareceu que a sociedade fora dissolvida, e contrariou a reconvenção.
Foi lavrado despacho saneador que reconheceu legitimidade como autora, àquela sociedade entretanto dissolvida, agindo o requerente como seu liquidatário, e depois veio a ser organizada a especificação e o questionário.
Oportunamente realizou-se o julgamento e a sentença condenou a ré na quantia pedida, á excepção dos juros de mora que só seriam contados desde a citação, e em contrapartida, absolveu a autora do pedido reconvencional.
A ré, inconformada, apelou, mas a Relação confirmou a sentença.
Mais uma vez recorreu, agora para este Tribunal, para obter a improcedência da acção e a procedência da reconvenção, conluindo deste modo as suas alegações:
1 - Está provado que a recorrida e a recorrente acordaram no fornecimento, pela última à primeira, de material de radiodifusão, com valor de 7254000 escudos, com um período experimental de seis meses, findos os quais, se a recorrida decidisse adquirir o equipamento teria de pagar o remanescente do preço e se decidisse não o adquirir, devolvê-lo-ia e a recorrente devolveria a quantia entregue a título de caução.
2 - Para que a compra e venda se não concretizasse, a recorrida deveria, dentro do prazo de seis meses, devolver o equipamento.
3 - Da verificação ou não de tal devolução implicaria, respectivamente, a não concretização ou a concretização da compra e venda.
4 - À recorrida competia provar que dentro do prazo convencionado devolvera o material ou, pelo menos, o pusera à disposição da recorrente.
5 - Por tal motivo, foi, em 1. instância, elaborado um quesito do teor seguinte: <<Não tendo o material agradado
à autora (ora recorrida), esta, antes de decorrido o prazo de seis meses, pediu à ré (ora recorrente) para retirar o equipamento e lhe devolver o valor da caução prestada e respectivos juros?>>.
6 - O ónus da prova de tal matéria quesitada, chave da decisão da causa, competia à recorrida.
7 - Tal quesito foi considerado não provado.
8 - Foi provado que a recorrente pediu à recorrida, muito depois de decorrido o prazo de seis meses, o pagamento do saldo do preço.
9 - Era à recorrida que competia provar que dentro do prazo se pronunciara pela não aceitação.
10 - E tal não foi provado pela recorrida.
11 - Pelo que, nos termos do artigo 923 do Código Civil, a compra e venda se considerava concretizada.
12 - Está provado que o material continuou na posse da recorrida após o decurso do prazo de seis meses.
13 - As partes atribuiram, por convenção, ao silêncio ou inacção da recorrida o valor de manifestação da vontade de concluir a compra e venda.
14 - Competia à recorrida provar que, dentro do prazo convencionado, não houvera de sua parte silêncio ou inacção.
15 - E tal não foi provado pela recorrida.
16 - O douto acórdão recorrido violou, pois, o disposto nos artigos 923 e 218 do Código Civil.
17 - Pelo que deve ser revogado e substituido por outro que julgue a acção improcedente e a reconvenção procedente.
A parte contrária alegou, defendendo a legalidade do julgado.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
2. Fundamentos
Os Factos:
Seriando cronologicamente a matéria de facto, ficou provado na Relação:
I - A autora e ré acordaram no fornecimento pela última à primeira de material de radiodifusão, com o valor de 7254000 escudos (incluindo IVA), com um período experimental de seis meses, findos os quais, se a autora se decidisse adquirir o equipamento teria que pagar o remanescente do preço do equipamento e se decidisse não o adquirir devolveria este e a ré devolveria a quantia entregue a título de caução (alínea A da especificação).
II - Em 19 de Novembro de 1987 a ré forneceu à autora o equipamento referido em I) (alínea B da especificação).
III - Na mesma data a autora entregou à ré, a título de caução, dois cheques no valor de 2000000 escudos cada um, cujo montante a ré recebeu (alínea C da especificação).
IV - O equipamento referido em I) havia sido importado pela ré (alínea D da especificação).
V - Em 2 de Setembro de 1988, a ré enviou à autora uma carta, acompanhada de uma factura com o valor de 3254000 escudos, com o seguinte conteúdo:<<Junto enviamos a nossa factura n. 88035 referente ao emissor FM a qual não foi enviada em devido tempo a pedido da Direcção Comercial, dado que seria entregue em mão na reunião com
V. Exas., que se tem vindo a arrastar sucessivamente.
Solicitamos que procedam ao pagamento do montante em dívida o mais rapidamente possível>> (resposta ao quesito 4-A).
VI - Em 6 de Junho de 1989 a autora enviou à ré uma carta com o seguinte conteúdo: <<Na sequência dos vários contactos telefónicos entre nós, que se vão arrastando há longos meses, informo V. Exa., de se dignarem no mais curto prazo possível retirar v/material, aqui mencionado ... Agradecendo a N/favor a caução que nós fizemos a título experimental. Caso subsista demora, teríamos de recorrer à cobrança de juros sobre esse capital, com início em data de 19 de Maio de 1988 segundo a taxa ao abrigo da lei em vigor>> (alínea F da especificação).
VII - Em 5 de Dezembro de 1990 o equipamento referido em
I) foi apreendido pela Alfândega de Lisboa, com o fundamento na permanência de tempo superior ao permitido de material importado sem o pagamento de "direitos" (alínea E da especificação e resposta ao quesito 4-B).
Foram dados como não provados os seguintes quesitos:
1 - Não tendo o material referido em A) agradado à "Frequência Mais Nova", esta, antes de decorrido o prazo de seis meses referido em A), pediu-lhe para retirar o equipamento e para lhe devolver o valor da caução prestada e respectivos juros?
2 - A "Frequência Mais Nova" utilizou o equipamento referido em A), para além do período de seis meses (até Dezembro de 1998) referido em A)...?
3 - ... sem que, dentro desse prazo, comunicasse à ré qualquer decisão no sentido de não adquirir aquele equipamento?
4 - Autora e ré negociaram o pagamento em prestações, do saldo do preço do equipamento?
5 - A ré confirmou a aceitação dessa forma de pagamento, através da carta enviada à autora em 7 de Dezembro de 1988?
O Direito:
Em primeiro lugar, há que definir o contrato celebrado entre as partes.
Poderia ser-se tentado a configurá-lo como um empréstimo garantido por uma caução, a que seguiria uma venda se o equipamento servisse para o fim em vista, abatendo-se no preço, o valor da caução. Não parece ser esta, a situação mais adequada à realidade, visto que na estrutura do comodato a coisa pertence ao comodante e é entregue apenas para que o comodatário a utilize e a restitua ao fim de certo tempo ou quando a outra parte o pedir. O que se verificou foi que o equipamento foi cedido para que o autor o experimentasse e o adquirisse se lhe agradasse, convencionando-se para o efeito da aquisição, um prazo de seis meses.
Também não se verificam requisitos para o identificar como um aluguer-venda, visto que não houve intenção de locar, nem correspondente retribuição.
O acordo enquadra-se, antes, num contrato de compra e venda a contento, como aliás a qualificaram as instâncias, ou seja, uma compra e venda sob reserva de a coisa agradar ao comprador, como a define o artigo 923 do Código Civil (diploma ao qual pertencerão os restantes artigos que vierem a ser citados).
Com efeito, a ré forneceu à autora, um equipamento de radiodifusão, que esta se propôs adquirir, se, ao fim de seis meses de utilização, lhe agradasse, pagando, então, a diferença entre o valor da caução e o preço acordado.
É certo que, paredes meias com esta modalidade, existe a venda sujeita a prova, em que a coisa objecto de contrato
é entregue à experiência, para ser adquirida se tiver a idoneidade ou as qualidades asseguradas pelo vendedor (artigo 925).
No caso "sub iudice", não ressalta, porém, suficientemente nítido, que o contrato dependesse de um exame a efectuar ou de uma apreciação sobre a aptidão do equipamento por parte do comprador, antes resultasse, de uma faculdade discricionária deste.
De qualquer modo, sempre se teria de entender que as partes adoptaram a primeira modalidade, como na dúvida, dispõe o artigo 926.
Como passo subsequente, impõe-se indagar o regime desse contrato. A compra e venda a contento, é feita sob reserva de a coisa agradar ao comprador.
Não há desde logo uma venda efectiva, pois que o acto do vendedor vale como uma proposta de venda. Ele deve facultar a coisa e é só no momento da aceitação que o contrato se forma, como resultado do encontro da proposta e dessa aceitação (P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, II, p. 224).
Valendo este contrato como uma proposta de venda, o proponente, nos termos da alínea a) do n. 1 do artigo 228
é obrigado a manter a proposta pelo prazo fixado para a aceitação.
Por sua vez o comprador deverá, em princípio, manifestar a sua vontade emitindo uma declaração de aceitação ou de não aceitação a fim de que se conclua ou não, o contrato.
Mas, a proposta também se considera aceite - conforme é expresso o artigo 923 n. 2 - se, entregue a coisa ao comprador, este se não pronunciar dentro do prazo da aceitação, nos termos do n. 1 do artigo 228.
Atribuiu-se ao silêncio determinado significado.
É que, doutrinariamente, o silêncio tem sido entendido de diversos modos.
Defenderam-se, ao longo dos tempos, pelos menos, três posições que ficaram conhecidas pelos seguintes brocardos: a) "quem cala consente"; b) "quem cala quando pode e deve falar consente", ou "parece consentir"; c) "quem cala não nega nem confessa", "não quer dizer sim nem não".
Nenhuma destas singelas regras é suficiente, porém, pois que a vida é muito mais complexa.
Assim, embora a última máxima, possa dizer-se subjacente ao artigo 218, a verdade é que, em casos especificados, aquela disposição considerou justificável atribuir determinado valor, ao silêncio.
Deste comando extrai-se a regra de que o silêncio não vale como declaração, nada significa, salvo se por lei, uso ou convenção lhe for atribuido determinado significado negocial. Trata-se de posição decorrente da já anteriormente seguida por Cabral de Moncada (Lições de Direito Civil, 1995, p. 563 e seguintes) e Manuel de Andrade, (Teoria Geral da Relação Jurídica, II, p. 134 e seguintes); (cfr. ainda Stolfi, Teoria del Negócio Jurídico, Madrid, 1959, p. 208).
Ora, precisamente, o citado n. 2 do artigo 923, ao dispor que a proposta, na venda a contento, se considera aceita se, entregue a coisa ao comprador, este não se pronunciar dentro do prazo da aceitação, constitue um dos paradigmáticos casos em que por lei, o silêncio, vale como aceitação (cfr. Mário de Brito, Código Civil Anotado, I,
244; Rodrigues Bastos, Das Relações Jurídicas, II, 148 e Notas ao Código Civil, I, 248; Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 63, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 426; P. Lima e A. Varela, Código Civil,
Anotado, I, 209 e II, 224).
Trata-se de um silêncio juridicamente "eloquente" ou "comprometido", impondo-se ao comprador um ónus de emitir uma declaração de vontade, sob pena de se ter por aceite a proposta.
No caso dos autos, o equipamento foi entregue pela ré à autora em 19 de Novembro de 1987 contra a entrega de 4000000 escudos, e fixado pelas partes o prazo de seis meses para a aceitação, o qual terminaria, pois, em Maio de 1988. Em 2 de Setembro de 1988 a ré, enviou carta, solicitando o pagamento do resto do preço em dívida, de 3254000 escudos, enquanto que a autora em 6 de Junho de 1989 pediu a devolução do dinheiro entregue e a retirada do material.
Não tendo a autora, naquele prazo, tomado nenhuma iniciativa, significa que o deixou escoar sem qualquer declaração ou manifestação de vontade, pelo que não há senão que interpretar o seu silêncio, como aceitação, a levar ao aperfeiçoamento do contrato.
Não se pode concluir como fizeram as instâncias, ao arrepio daquelas normas, que à ré é que incumbiria provar
- o que não conseguira - que a autora tinha aceitado a proposta de compra, dando, na sequência deste raciocínio, o realizado.
Procedem, nesta matéria, as conclusões da alegação da recorrente, tendo ela direito ao pagamento do resto do preço do equipamento.
Mas não se provou que esse pagamento tivesse sido clausulado com prazo certo, (ainda em 2 de Setembro de 1988 a ré pedia que ele se fizesse o mais rapidamente possível e em 6 de Junho de 1989 a autora retorquia invocando mora da parte contrária), deve entender-se que os juros de mora serão devidos, nos termos dos artigos 804, 805 e 806, desde a notificação à autora, da reconvenção.
3. Decisão
Pelo exposto, concede-se a revista, absolvendo-se a ré do pedido e condenando-se a autora a pagar àquela a quantia de 3254000 escudos com juros de mora à taxa legal, desde
28 de Fevereiro de 1992.
Custas neste tribunal e nas instâncias, pela recorrida.
Lisboa, 9 de Janeiro de 1995
Ramiro Vidigal.
Cardona Ferreira.
Oliveira Branquinho.