CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
INCUMPRIMENTO
INDEMNIZAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
MORA
Sumário

I - A execução específica do contrato-promessa de compra e venda de coisa imóvel só é possível no caso de mora e não de incumprimento definitivo.
II - A indemnização compensatória fixada no artigo 442, n. 4, do Código Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei 379/86, de 11 de Novembro, só pode ser afastada, ou por convenção das partes, ou quando o inadimplente abusou do seu direito.
III - Há abuso de direito no caso de "venire contra factum proprium".

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. No 8. Juízo Cível da Comarca de Lisboa, A intentou acção ordinária contra Companhia Geral de Crédito Predial Português, pedindo seja condenado a pagar-lhe o dobro das prestações entregues no montante de 8000000 escudos, acrescidos de juros vencidos desde a interpelação e os vincendos até integral pagamento, e na execução especifica do contrato de venda a sentença produzir os efeitos da declaração da Ré, condenando-a ainda em expurgar eventual hipoteca ou entregar-lhe o montante da mesma; e a não ser possível a execução específica, ser a Ré condenada em execução por equivalência numa indemnização a seu favor pelos danos emergentes e lucros cessantes motivados pela frustração da possibilidade de o Autor exercer o seu direito à execução específica, por uma importância necessária e suficiente para o Autor adquirir duas fracções semelhantes e na mesma zona da cidade de Faro - a liquidar em eventual execução de sentença - e sem maiores encargos para o Autor em termos de sisa e encargos, despesas com escrituras e registos, a que será deduzido o montante de 1500000 escudos, que o
Autor ainda tem a pagar, importância global esta que, actualmente, se estima em 39400000 escudos (preço actual das fracções 38000000 escudos, previsão do custo de sisa 2300000 escudos, previsão de maiores custos de necessárias escrituras e registos 600000 escudos); se for entendido que esses pedidos não são cumuláveis, mas apenas alternativos, opta pelo pedido da execução específica ou na indemnização, alegando, para tanto, que:
- em 15 de Julho de 1982 prometeu comprar e B e mulher prometeram vender-lhe duas fracções autónomas correspondentes ao 5. e 6. andares, direito, a constituir no prédio urbano em construção sito na avenida de ..., designado pelo lote 10, em Faro;
- a Ré adquiriu este lote em 23 de Outubro de 1987, assumindo as obrigações dos anteriores promitentes vendedores;
- a Ré vendeu a terceiro o referido lote em 15 de Junho de 1990;
- o preço acordado foi de 5500000 escudos para ambos, tendo o Réu pago o sinal de 4000000 escudos;
- o valor actual de ambas as fracções é de 38000000 escudos;
- A Ré sustenta na sua contestação, a improcedência, porquanto não lhe cabe qualquer culpa quanto ao incumprimento do contrato; os pedidos são incompatíveis; e o valor dos andares para efeitos do pedido de indemnização é o que tiverem à data do incumprimento contratual, em 31 de Dezembro de 1983.
- O autor respondeu, concluindo como na petição, pedindo a condenação da Ré como litigante de má fé.
Em despacho saneador foi:
- julgada inepta a petição na parte em que formula em cumulação os pedidos de restituição do sinal em dobro, do pagamento do valor da coisa e da execução específica, com absolvição da Ré da instância;
- julgados improcedentes os pedidos de indemnização e de execução específica, optados em alternativa, com absolvição da Ré.
2. O autor apelou, a Relação de Lisboa, por acórdão de
7 de Fevereiro de 1995, negou provimento ao recurso, confirmando o douto despacho saneador sentença recorrido.
3. O autor pede revista, formulando as seguintes conclusões:
1) o recorrido assumiu, por dação em cumprimento todos os direitos e obrigações dos promitentes compradores decorrentes dos dois contratos promessa celebrados com o recorrente e constantes dos autos:
2) apesar dos promitentes-vendedores terem entrado em mora debendi incumprindo as suas obrigações contratuais, os identificados contratos promessa de compra e venda mantém-se em vigor e a produzir os seus efeitos, pois a mora debendi não determine ipso facto nem ipso lege, a resolução do contrato.
3) o recorrente cumpriu todas as suas obrigações assumidas nos identificados contratos e mantém o interesse pela prestação, tendo interpelado o recorrido, logo que tomou conhecimento de que as fracções estavam prontas para a venda, para que este cumprisse as obrigações em prazo certo.
4) Confirmou-se nos autos que o Recorrido tinha entretanto vendido a outrém o prédio onde se localizavam as fracções prometidas vender ao recorrente e sem conhecimento deste.
5) O recorrido nem devolveu o sinal em dobro, nem manifestou intenção de obter, de novo, as fracções ou outras semelhantes para cumprir a promessa. E entende-se como sinal todas as prestações entregues a título do pagamento do preço.
6) A cláusula penal e o direito à execução específica são duas realidades distintas e diferentes.
7) A violação de qualquer cláusula de contrato promessa de compra e venda preclude a cláusula penal (contratual ou legal), mas não afasta o direito/obrigação à execução específica, que é legalmente imperativa, e de que, no caso dos autos, as partes não abdicaram.
8) Quer por vontade expressa dos outorgantes dos contratos identificados nos autos, quer por decorrer da lei (e de Assento do S.T.J.) não pode ser afastado o direito à execução específica, mesmo não tendo havido
"traditio".
9) Havendo incumprimento por parte do promitente-vendedor, o promitente comprador, além do direito à restituição do sinal em dobro, tem ainda direito aos juros moratórios a partir da interpelação, relativamente ao dobro das importâncias pagas a título de sinal ao seu reforço;
10) é contrário à ordem pública, por violação de norma imperativa, a conduta do promitente vendedor que frustrar a possibilidade da execução especifica, pois, para além de poder integrar ilícito criminal, não pode obter para si um enriquecimento sem causa à custa do património e dos legítimos e legais direitos do promitente comprador.
11) Teve o legislador a preocupação de acautelar o interesse dos promitentes compradores tornando imperativa a execução específica, mesmo não havendo traditio.
12) Há uma lacuna na lei, pois o legislador não previu o caso de o promitente-vendedor frustrar a possibilidade da execução específica real pela venda do bem prometido a outra pessoa. O legislador não admitiu que nem todos os vendedores fossem pessoas de bem.
13) Nos termos do artigo 10 do Código Civil e atendendo
à preocupação do legislador na protecção do promitente-comprador e tendo em conta Jurisprudência deste Supremo Tribunal e a doutrina acima citadas, a solução a encontrar, dentro do espírito do sistema, é criar norma que estabeleça o direito de requerer a execução especifica do contrato ou a execução por equivalente se a execução específica for tornada impossível.
14) Assim, não sendo possível a execução específica
(também chamada execução real, restauração ou reconstituição natural) tem o credor direito a uma execução por equivalência, ou seja uma indemnização em dinheiro que reponha o seu património na situação exacta que teria se o contrato promessa de compra e venda fosse integralmente cumprido conforme negociado.
15) As doutas decisões em recurso não aplicaram nem interpretaram correctamente as normas jurídicas aplicáveis ao caso sub judice, nomeadamente os artigos 9, 10, 406, 442, 566, 801, 802, 804 n. 1, 805 n. 2, 807 n. 1, 808, 827 e 830, todos do Código Civil, bem como o assento do S.T.J. de 19 de Dezembro de 1989.
16) O caso sub judice e tendo em conta a lei, incluindo a integração da lacuna, a preocupação do legislador, a jurisprudência e doutrina citadas, encontra a sua solução na opinião do Recorrente, em uma das seguintes hipóteses. a) Devolução do sinal em dobro, acrescido de juros vencidos desde a mora e até total liquidação e ainda à execução específica por equivalência igual a um montante em dinheiro que, deduzido do que o comprador tem de pagar, permita a este a compra de duas fracções da mesma tipologia e qualidade e na mesma zona da cidade de Faro e sem mais encargos para este, para além dos que teria se comprasse pelos preços e condições então estipulados; b) A devolução do dobro do sinal (sem juros) e a execução específica por equivalência, c) a execução específica por equivalência que sempre seria a opção do recorrente por ser a que menores prejuízos lhe causava (se não pudesse haver cumulação de sinal + execução), d) o sinal em dobro com juros (se não for possível a execução específica por equivalência, ou outra), e) Simplesmente o sinal em dobro (sem juros nem execução).
17) Deve ser dado provimento ao seu pedido e a decisão ser a de considerar a hipótese, a) relegando-se para a execução de sentença o apuramento do quantum da execução específica por equivalência, pois é necessário apurar quanto custam hoje, na mesma zona da cidade de Faro dois apartamentos da mesma tipologia e qualidade e quais os gastos a mais que o recorrente tem de fazer, nomeadamente quanto a sisas, registos, escrituras, etc.
4. O recorrido apresentou contra-alegações a pugnar pela manutenção do acórdão recorrido.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
Elementos a tomar em conta:
1) Em 15 de Julho de 1982, B e mulher prometeram vender ao autor e este comprar-lhes o 5. andar direito a constituir no prédio urbano em construção na Avenida ..., Faro, pelo preço de 2750000 escudos, tendo o Autor pago o sinal de
2000000 escudos e ficando a cargo dos promitentes vendedores a marcação da escritura notarial do contrato de compra e venda cuja data de realização não deveria exceder o dia 31 de Dezembro de 1983;
2) em 15 de Julho de 1982, B e mulher prometeram vender ao autor e este comprar-lhes o
6. andar direito do mesmo prédio em construção pelo preço de 2750000 escudos, tendo o Autor pago o sinal de
2000000 escudos e ficando a cargo dos promitentes vendedores a marcação da escritura notarial de compra e venda cuja data de realização não deveria exceder o dia
31 de Dezembro de 1983.
3) O Réu emprestara dinheiro aos promitentes vendedores sob hipoteca incidente sobre o prédio referido.
4) Por escritura notarial de 29 de Outubro de 1987, os promitentes vendedores deram ao Réu em pagamento deste empréstimo o prédio referido.
5) Pela mesma escritura de 29 de Outubro de 1987, o Réu assumiu todas as responsabilidades provenientes de contratos promessas respeitantes ao imóvel entregue em dação, desonerando-os de quaisquer responsabilidades perante os promitentes compradores;
6) Em 15 de Junho de 1990, o prédio onde se situam os andares em causa foi vendido pelo Réu a C, por 51000000 escudos.
7) Não foi marcada a escritura de compra e venda referente aos contratos promessa referidos, em que interveio o Autor.
8) Os outorgantes convencionaram entre si, nos termos do artigo 830 do Código Civil, atribuir a natureza de execução específica aos contratos-promessa pelo que se algum deles não cumprisse a promessa podia o outro obter sentença que produzisse efeitos de declaração negocial do faltoso, entendendo ambos que a nada se opõe a natureza das obrigações assumidas.
9) O Autor cumpriu todas as obrigações previstas nestes contratos, pagando todas as verbas convencionadas e nos prazos acordados.
10) Os mesmos contratos não foram resolvidos nem denunciados por qualquer das partes outorgantes.
11) O Réu emprestou dinheiro aos promitentes vendedores desses contratos sob hipoteca que recaiu sobre o mencionado prédio.
III
Questões a apreciar no presente recurso:
- o artigo 684 do Código de Processo Civil trata de delimitação subjectiva e objectiva do recurso.
- No que concerne à delimitação objectiva se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas é licito restringir o recurso a qualquer delas, sendo certo que nas conclusões das alegações pode o recorrente restringir, ainda, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso.
- Tendo presente o sentido da expressão "partes da decisão" - o de considerar-se correspondente ao dever imposto pelo artigo 660 de o Tribunal resolver todas as questões que as partes tivessem submetido à sua apreciação - poderá apontar-se que a parte dispositiva contém duas partes distintas: a primeira, a inadmissibilidade das cumulações peticionadas, por incompatibilidade substancial dos pedidos; a segunda, a improcedência do pedido opcional formulado pelo autor.
- Nas conclusões das suas alegações o Autor formula diversos pedidos em alternativa (cfr. conclusão 16), de tal sorte que poderá apontar-se que não pede, agora, a reapreciação da "questão" da inadmissibilidade das cumulações peticionadas, por incompatibilidade substancial dos pedidos, o que significa que a questão a apreciar será tão somente a da improcedência do pedido opcional formulado pelo Autor.
- Os pedidos alternativos formulados pelo Autor são os que se encontram na petição inicial, uma vez que não houve alteração dos mesmos no articulado resposta.
- Só esses pedidos vieram a ser apreciados pela
Relação, de sorte que só serão esses a serem, agora, reapreciados (e não os demais formulados na conclusão
16) quer em homenagem ao princípio da preclusão quer por serem os que se contêm na finalidade dos recursos: destinam-se a reapreciar "questões e não a decidir "questões novas" por tal apreciação equivaler a suprir um ou mais graus de jurisdição, prejudicando a parte que ficasse vencida, impedindo-a (quando fosse este Supremo Tribunal a conhecer de tal questão) de recorrer.
- Daqui que as questões a serem apreciadas e decididas no presente recurso são apenas duas: a primeira, se é admissível o pedido de execução específica do contrato-promessa em causa; a segunda, se
é admissível o pedido de indemnização pelos danos emergentes e lucros cessantes motivados pela frustração da possibilidade do autor exercer o seu direito à execução específica.
Abordemos tais questões.
IV
Se é admissível o pedido de execução específica do contrato-promessa em causa.
1. Posição da Relação e do recorrente:
- A Relação de Lisboa decidiu que tornou-se inviável a execução específica com a venda das fracções em 15 de Junho de 1990 a C, sendo certo que não veio alegado má fé por parte desta.
- Por sua vez, o recorrente sustenta que, por um lado, com o assento de 19 de Dezembro de 1989 ficou fixada jurisprudência julgando que no domínio dos artigos 442 n. 2 e 830 n. 1 do Código Civil, com a redacção do
Decreto-Lei n. 236/80, o direito à execução específica não depende de ter havido tradição da coisa objecto do contrato para o promitente comprador - B.M.J. n. 392, página 139.
Por outro lado, a imperatividade da execução específica introduzida pelo Decreto-Lei n. 379/86, de 11 de
Novembro, aplica-se aos contratos-promessa de compra e venda anteriores (Menezes Cordeiro, B.M.J., n. 306, página 27.
- Do exposto resulta que o direito do recorrente à execução específica dos contratos celebrados é inquestionável não só por força da lei, mas também por as partes terem previsto nos contratos não prescindirem do direito à execução específica.
Que dizer?
2. O recurso à execução específica só é possível, face ao artigo 830 quer na sua redacção actual e na intercalar quer na primitiva, no caso do promitente vendedor não violar definitivamente a promessa, impossibilitando o seu cumprimento mediante a alienação da coisa a terceiro, ressalvando-se a hipótese de o contrato promessa gozar de eficácia real.
A chamada execução especifica é, no plano funcional, a mesma coisa que a acção de cumprimento: apenas esta se dirige à condenação do devedor no adimplemento da prestação, enquanto aquela produz imediatamente os efeitos da declaração negocial do faltoso, ou seja, o credor obtém o que poderemos chamar cumprimento funcional, isto é, o resultado prático de cumprimento, independentemente e mesmo contra a vontade do promitente faltoso, em via imediata e sem ter de recorrer à sentença de condenação, nem obviamente, ao processo executivo (Calvão da Silva, Sinal e Contrato
Promessa, páginas 97 e 98).
Dada a função da execução específica o recurso à mesma por parte do credor é sempre possível enquanto perdure o interesse deste na execução, ainda possível, embora retardada do contrato-promessa, ou seja, que esta obrigação ainda perdure, o que não acontece no caso de incumprimento definitivo: - ou por impossibilidade definitiva de celebrar o contrato prometido por o objecto deste ter sido alienado a terceiro, em resultado de o contrato-promessa não ter eficácia real, ou por o credor, em consequência da mora, ter perdido o interesse que tinha na prestação, ou, ainda, esta não ter sido realizada dentro do prazo suplementar, que razoavelmente foi fixado pelo credor.
Quer dizer, a execução específica encontra-se na esfera da disponibilidade do credor para evitar o incumprimento definitivo ou a falta definitiva de cumprimento, justamente porque ainda é possível e útil para si o resultado prático do cumprimento (execução) retardado (Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção
Pecuniária Compulsória, 316).
Se a execução específica não passa do direito ao cumprimento, através dela se obtendo o mesmo resultado prático deste, haverá lugar ao seu recurso enquanto não houver falta definitiva do cumprimento do contrato-promessa (caso de alienação da coisa a terceiro) e enquanto perdure o interesse do credor.
Por outras palavras, o recurso à execução específica só será afastado quando se verifique que uma das seguintes situações: ou falta definitiva de cumprimento (caso de alienação de coisa a terceiro, quando o contrato-promessa não tem eficácia real) ou incumprimento definitivo (perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento - artigo 808 do Código Civil).
3. Face ao que se deixa exposto, em conjugação com a matéria factual fixada pela Relação (e referida no parágrafo II do presente acórdão) poderá precisar-se (concluir-se) que o recurso à execução específica não se encontra na disponibilidade do Autor (recorrente na medida em que nos encontramos na situação de falta definitiva de cumprimento: alienação das fracções, objecto dos contratos-promessa em causa, a terceiros.
V
Se é admissível o pedido de indemnização pelos danos emergentes e lucros cessantes motivados pela frustração da possibilidade do Autor exercer o seu direito à execução específica.
1. Posição da Relação e do recorrente:
- a Relação de Lisboa decidiu que face ao teor dos contratos promessa sub judice é inadmissível a peticionada indemnização por a tal obstar o n. 4 do artigo 442 do Código Civil.
- Por sua vez, o recorrente sustenta que:
- há uma lacuna na lei, pois tendo o legislador tornado imperativo o direito à execução específica não previu que pudesse acontecer esta situação concreta de o vendedor frustrar o cumprimento dessa obrigação imperativa utilizando o artifício da venda a outro e sobre esta hipótese nada legislou,
- há assim que recorrer ao disposto no artigo 10 do
Código Civil e integrar a manifesta lacuna da lei,
- as soluções possíveis que se integram dentro do espírito do sistema são: a do acórdão do S.T.J. de 27 de Julho de 1967 - no B.M.J. n. 163, página 296; a do
Professor Antunes Varela, na Rev. Leg. e Jurisp. ano
119, página 215; e a do Professor Almeida Costa, no
Direito das obrigações, 4. edição, página 104.
Que dizer?
2. A sanção única prevista no artigo 442, ns. 2 e 3 do
Código Civil, na sua primitiva redacção, estava programada apenas para a desistência de qualquer das partes ou para a resolução do contrato por impossibilidade culposa da prestação ou por falta de cumprimento da obrigação.
O facto de o contrato sem sinal abrir as portas da execução específica e de outro tanto não suceder com a promessa de contratar acompanhada de sinal era apenas o corolário natural do pensamento que a lei considerava imanente a todos.
A promessa com o apêndice do sinal: o desejo de os contraentes manterem até final a sua liberdade de contratar ou não contratar, circunscrevendo à perda de sinal ou à restituição do sinal em dobro a sanção do não cumprimento (mais do que o ressarcimento do dano realmente causado)" Antunes Varela, sobre o Contrato-Promessa, página 72.
Era de manifesta insuficiência a sanção imposta no artigo 442, na sua primitiva redacção, ao promitente-vendedor que se recusava a cumprir a promessa ou deliberadamente resolvia não cumprir.
A indemnização aplicável à generalidade desses casos não equivalia, mercê de contínua desvalorização da moeda, à importância inicialmente desembolsada pela contraparte, não cobria de modo nenhum o dano emergente da resolução do contrato, como bem acentua Antunes
Varela, obra citada, página 73.
Daqui que o Decreto-Lei n. 236/80, de 18 de Julho, tivesse aditado ao n. 2 do artigo 442 o seguinte:
"ou, tendo havido tradição da coisa, o valor que esta tiver ao tempo do incumprimento ou, em alternativa, o de requerer a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830".
Com tal aditamento é inquestionável que se conferiu ao promitente-comprador o direito de exigir o valor da coisa objecto do contrato-prometido apenas na hipótese de ter havido traditio res.
Calvão Da Silva, ao fazer a análise do direito ao valor da coisa do contrato-promessa com traditio res, sustenta que ele se justifica ainda no caso do contrato-promessa em que não haja entrega antecipada do objecto do contrato prometido, inclusivamente para evitar que, pela consequente rarefacção da traditio res, a protecção pretendida acaba por visar-se contra o protegido. Daqui que tenha proposto novo articulado para o n. 3 do artigo 442 (...) com a seguinte motivação:
"o n. 3 consagra, em termos de opção um desvio ao regime-regra do sinal, quanto ao montante da indemnização devida pelo promitente-vendedor faltoso. É norma interpretativa relativamente aos casos em que tenha havido traditio res; já é norma inovadora para os casos em que não haja traditio res, hipótese em que só dispõe para o futuro" (Sinal e Contrato-Promessa, 4. edição páginas 180, 181 e 211).
O legislador não foi sensível ao articulado proposto por Calvão da Silva o artigo 442 n. 2, 2. parte, na redacção dada pelo Decreto-Lei n. 379/86, de 11 de
Novembro, manteve a "traditio res" como requisito de direito ao valor da coisa.
3. O alcance dado ao artigo 442, n. 2, 2. parte, na sua versão actual, permite definir o âmbito de aplicação da norma do n. 4, da mesma disposição legal, e que é do seguinte teor:
"Na ausência de estipulação em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda de sinal ou de pagamento do dobro deste, ou do aumento do valor da coisa ou do direito à data do não cumprimento".
Tal norma tem de ser interpretada no sentido de no caso de contrato-promessa em que haja de constituição de sinal, a indemnização compensatória devida pelo promitente faltoso consistirá: ou, na perda do sinal ou da entrega do dobro deste (no caso de não ter havido
"traditio res") ou na perda do sinal ou de entrega do dobro deste ou no aumento do valor da coisa ou do direito à data do não cumprimento (no caso de ter havido "traditio res").
O artigo 442 n. 4 exclui, assim, qualquer outra indemnização compensatória devida pelo promitente faltoso. Tal exclusão não é absoluta pois admite o seu afastamento por convenção das partes (explícita ou implícita).
E o afastamento da norma também terá lugar sempre que se chegue à conclusão de que o inadimplente abusou do seu direito: a ilegitimidade do abuso do direito pode dar lugar à obrigação de indemnizar.
Neste sentido Antunes Varela quando diz: "Apurada a existência do abuso, os efeitos do exercício irregular do direito serão os correspondentes à forma de actuação do titular... Se o exercício abusivo do direito causou algum dano a outrem, haverá lugar à obrigação de indemnizar; se o vício se tiver reflectido na celebração este será, em princípio nulo (artigo 296), e assim por diante" - Das obrigações em geral, vol. I, 6. edição, páginas 517 e seguintes.
Conclui-se, assim, que a indemnização compensatória será calculada segundo as regras gerais da responsabilidade sempre que o exercício abusivo do direito do promitente-vendedor tenha causado dano ao promitente-comprador, apesar de ter havido constituição de sinal.
4. Saber se o inadimplente promitente-vendedor exerceu abusivamente o seu direito é questão que se prende com o instituto do abuso do direito estatuído no artigo 334 do Código Civil. Daqui o abrir-se um parêntese.
5. A noção de abuso do direito foi sempre referida em termos de contornos difíceis, conforme se depreende dos ensinamentos de Manuel Andrade - Teoria Geral das obrigações, 1958, páginas 63 e 64.
Dificuldades surgiram como apurar, em concreto, a existência do mesmo, desenhando-se duas correntes: uma, a subjectivista, coloca como critério decisivo ter o titular do direito procedido com o mero intuito de prejudicar o lesado; outra, a objectivista, o abuso do direito manifesta-se na oposição à função social do direito, excedendo-se anormalmente o seu uso.
O abuso de direito foi consagrado no Código de 1966
(artigo 334) segundo a concepção objectiva, conforme salienta Antunes Varela ao escrever: "para que haja lugar ao abuso de direito, é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito" (Das obrigações em geral, vol. I, 6. edição, página 516).
Esta contradição é patente nos casos do "VENIRE CONTRA
FACTUM PROPRIUM": são os casos em que a pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando por exemplo, determinada causa de nulidade e anulação, resolução ou denúncia de um contrato, depois de fazer crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação do contrato" (Antunes
Varela, obra citada, página 517).
A proibição do "VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM" cai no
âmbito do "ABUSO DE DIREITO" através da formula legal que considera ilegítimo o exercício de um direito
"quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé" (Antunes Varela, obra citada, página 517; Baptista Machado, Tutela de confiança e
Venire Contra Factum Proprium", in "Obra Dispersa, vol.
I, página 385).
6. A ideia imanente na proibição do "VENIRE CONTRA
FACTUM PROPRIUM" é a dos "DOLUS PRAESENS" que a conduta sobre que incide a valoração negativa é a conduta presente, sendo a conduta anterior apenas ponto de referência, tendo em conta a situação então criada, se ajuizar da legitimidade da conduta actual, conforme sublinha Baptista Machado, que acrescenta que o efeito jurídico próprio do instituto só se desencadeia quando se verificam tais pressupostos:
1. uma situação objectiva de confiança; uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura.
2. investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a confiança legítima vier a ser frustrada.
3. Boa-fé da contra-parte que confiou: a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa fé e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico" - obra citada, páginas 415 a 418.
Perante as condições expostas, em conjugação com a matéria factual fixada pela Relação (a referida no parágrafo II do presente acórdão) não temos dúvidas em precisar que o caso "sub judice" é um caso de "VENIRE
CONTRA FACTUM PROPRIUM".
Por um lado, a Ré ao receber em pagamento o prédio onde se integravam as fracções objecto do contrato-promessa celebrados com o Autor, não só desonerou os construtores do prédio (os promitentes-vendedores) de quaisquer responsabilidades perante os promitentes-compradores (o autor), mas também assumiu todas as responsabilidades provenientes dos contratos-promessa respeitantes ao prédio, sendo certo que nesse assumir de responsabilidades se encontrava a convenção das partes no sentido de atribuírem a natureza de execução específica aos contratos-promessa
(cfr. factos referidos em 4) e 5) e 8, parágrafo II presente acórdão).
Esta conduta da Ré não pode ter tido outro sentido para o Autor que não fosse o de a Ré cumprir os contratos-prometidos e não frustrar a execução específica dos contratos-promessa.
Criou com essa sua conduta uma situação de confiança.
A Ré ao vender, mais tarde, todo o prédio a terceiro violou a situação de confiança que criara.
Por outro lado, o Autor, com base na situação de confiança criada pela conduta assumida pela Ré, à data da dação em pagamento do prédio, não tratou de "reaver" as quantias que tinha entregue aos promitentes-vendedores, de tal sorte que a violação da base de confiança criada pela Ré veio a determinar que o Autor sofresse danos que, neste momento, não podem ser quantificados.
Daqui o concluir-se, como concluímos que é admissível o pedido de indemnização pelos danos emergentes e lucros cessantes motivados pela frustração da possibilidade do
Autor exercer o seu direito à execução específica.
VI
Conclusão:
Do exposto, poderá extrair-se que:
1) a execução específica do contrato-promessa de compra e venda de coisa imóvel só é possível no caso de mora e não de incumprimento definitivo.
2) a indemnização compensatória fixada no artigo 442 n.
4, do Código Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n. 379/86, só pode ser afastada ou por convenção das partes ou quando o inadimplente abusou do seu direito.
3) Há abuso de direito no caso "venire contra factum proprium".
Face a tais conclusões, em conjugação com os elementos
"reunidos", nos autos, poderá precisar-se que:
1. o autor não tem direito a pedir a execução específica do contrato-promessa em causa;
2. a Ré abusou do seu direito;
3. o Autor tem direito a indemnização pelos danos emergentes e lucros cessantes motivados pela frustração da possibilidade do autor exercer o seu direito à execução específica;
4. o acórdão recorrido não pode manter-se por ter inobservado o afirmado em 3).
Termos em que se concede a revista e, assim, revoga-se o acórdão recorrido e condena-se a Ré a pagar ao Autor a indemnização por perdas e danos resultante do incumprimento dos contratos-promessa que tinham por objecto duas fracções do prédio urbano sito na Avenida ..., Faro, indemnização esta a liquidar em execução de sentença.
Custas nas instâncias e neste Supremo Tribunal pela Ré/recorrida.
Lisboa, 5 de Março de 1996
Miranda Gusmão,
Sá Couto,
Sousa Inês.
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 22 de Dezembro de 1993 do 8. Juízo
Cível/3. Secção de Lisboa;
II - Acórdão de 7 de Fevereiro de 1995 da Relação de
Lisboa.