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COMPRA E VENDA
EXERCÍCIO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO CONFINANTE
PRÉDIO RÚSTICO
PRÉDIO URBANO
MATÉRIA DE FACTO
Sumário
Constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias a questão de saber se um prédio misto é rústico ou urbano para efeitos de exercício do direito de preferência na compra e venda de prédio rústico confinante, pois está em causa a predominância do fim a que o mesmo se destina.
Texto Integral
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
A e mulher B, intentaram acção declarativa contra Urbanizações e Construções E.C. Costa Lda. e D e mulher E, todos com os sinais dos autos, a fim de, reconhecendo-se-os como titulares do direito de preferência na venda - porque proprietários de prédio rústico confinante com o também rústico identificado no artigo 5 da petição inicial, haverem para si, substituindo-se aos adquirentes (os segundos réus) na alienação que a primeira ré lhes fez em 13 de Janeiro de 1993, sendo ordenado o cancelamento do registo efectuado a favor daqueles e ordenado o registo a seu favor.
Contestando, os réus concluiram pela improcedência da acção por o prédio dos autores ser urbano e por os compradores destinarem o prédio que adquiriram à construção urbana.
Prosseguindo o processo seus regulares termos até final, procedeu totalmente a acção, por sentença que, sob apelação dos réus, a Relação de Coimbra revogou.
Recorreram os autores que, defendendo a revogação do acórdão, concluiram:
- os documentos autênticos juntos aos autos - não impugnados e definindo a existência de dois prédios distintos, um rústico (o preferente) e outro urbano - fazem prova plena dos factos neles descritos, de acordo com o artigo 371, n. 1 do Código Civil;
- o conceito de "quinta" não é jurídico, mas a considerar-
-se a existência de um único prédio de acordo com o disposto no artigo 204, n. 2 do Código Civil, este teria de ser qualificado como rústico face à provada subordinação das construções à destinação essencial do solo que sempre foi explorado para fins agrícolas;
- as características do prédio preferente definidas na matéria de facto provada enquadram-se nos requisitos necessários para o exercício do direito de preferência dos artigos 1380 e 1381 do Código Civil e são de molde a integrarem o espírito da lei no que se refere à proibição do fraccionamento e ao incentivo do emparcelamento, decorrente dos artigos 1377 alínea a) e 1382 do Código Civil;
- decidindo de forma diversa o douto acórdão da Relação violou o correcto entendimento dos preceitos citados.
Contra-alegando, defendem os réus a confirmação do acórdão.
Colhidos os vistos.
Factos que as instâncias consideraram provados: a)- os autores são donos de um prédio denominado "Arieiro - Quinta do ...", sito no Arieiro, da freguesia e concelho de Águeda, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 9520; b)- prédio esse composto de terreno de cultura, fruteiras e videiras; c)- com a área de 14130 m2; d)- na dita "Quinta do ..." existe ainda uma casa de habitação constituída por rés-do-chão, com cinco divisões e dependências cobertas, eira e casa da eira, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de Águeda sob o artigo 2250; e)- e na referida Quinta existe também uma outra casa de habitação, composta de rés-do-chão, com uma sala, três quartos, sótão para arrumos e casa de banho; f)- os autores reconstruiram sobre as ruínas as casas referidas nas alíneas d) e e), sendo as casas dotadas de uma piscina e jardim circundante; g)- por escritura pública outorgada em 13 de Janeiro de 1993, a ré sociedade vendeu ao réu D, por 2500000 escudos, um terreno de pinhal, denominado "Arieiro", sito no Arieiro, freguesia e concelho de Águeda, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 9519; h)- prédio que confronta do Norte com caminho, do Sul e Poente com o autor marido e do Nascente com F; i)- e tem uma área de 4800 m2; j)- os frutos das árvores existentes no terreno dos autores destinam-se aos moradores do prédio; l)- tal como os produtos das culturas; m)- os autores e seus antepossuidores cultivaram o terreno a que alude a alínea a) a milho;
Decidindo:
1.-Considerou a 1. instância que - os autores são donos de dois prédios distintos, muito embora confinantes, sendo um urbano, e outro rústico, no qual fundamentam o exercício do direito de preferência; mas que, a qualificar-se de misto o prédio, sempre resultaria fundamento para o exercício desse direito por a destinação prevalente daquele ser a agrícola; os réus não provaram que o terreno objecto da preferência se destinasse a fim que não seja a cultura.
Diversamente, a Relação, embora considerando ser misto o prédio, categoria que a lei não reconhece, qualifica-o, em função da predominância da aplicação efectiva do imóvel, como urbano, uma vez que a parte rústica perdeu autonomia funcionando como logradouro ou quintal - se bem que tenha uma superfície considerável, predominando o fim habitacional em relação à cultura.
As instâncias, tendo como aplicáveis as mesmas normas (Código Civil - artigos 1380 n. 1, 1381 alínea a), e 204 n. 2) e delas fazendo idêntica leitura, adoptam soluções diametralmente opostas por interpretarem e enquadrarem juridicamente de modo diverso os factos provados.
Com efeito, em ambas - se têm "terrenos de cultura" como equivalentes a "terrenos aptos para cultura"; - se afasta, para a classificação dos prédios, o critério do valor económico considerando-se que a lei manda atender à autonomia económica e à predominância da aplicação efectiva e que a conclusão que este critério permitir obter não é invalidada pela maior ou menor área da parte rústica do prédio; - se considera que, apesar de os terrenos serem de cultura, nenhum poderá constituir parte componente de prédio urbano nem se destinar a fim diverso da cultura; não constituindo obstáculo ao exercício do direito de preferência o facto de a soma das áreas dos dois prédios não perfazer a unidade de cultura.
Porém, onde a divergência reside é na interpretação dos factos e sua subsunção jurídica e, mesmo assim, limitada apenas ao prédio dos autores.
2.- Esta delimitação do problema vem permitir a constatação de não estar em crise uma questão de alteração da factualidade (vedada ao Supremo salvo no caso previsto nos artigos 722 n. 2 e 729 n. 2 do Código de Processo Civil) mas a da qualificação jurídica de um terreno (aqui, o confinante), e que importa definir se estamos face a uma unidade predial e se, em caso afirmativo, se a deve tratar como prédio rústico com parte urbana ou antes como prédio urbano com logradouro.
Enquanto a 1. instância teve como verificada a existência de dois prédios (um urbano e outro rústico), mas que a considerar-se existir uma unidade predial esta teria natureza rústica, a Relação concluiu haver uma unidade mas com natureza urbana.
Defendem os recorrentes que, ao não atender à força probatória plena dos documentos juntos aos autos e dos quais resulta a existência de dois prédios - um rústico (o confinante) e outro urbano, a Relação violou o disposto no artigo 371, n. 1 do Código Civil.
Estão a referir-se às inscrições matriciais e às descrições prediais.
Esta argumentação apenas merecerá ser analisada se o conjunto das normas relativas ao fraccionamento e emparcelamento de prédios rústicos - e em que se integram os artigos correspondentes ao direito de preferência (artigos 1380 e 1381 do Código Civil) - tomar como ponto de partida a adopção da classificação predial contida nos diplomas que regem umas e outras.
O intérprete deve atender à unidade do sistema jurídico (artigo 9, n. 1 do Código Civil).
O artigo 204, n. 2 do Código Civil diz-nos o que a lei civil entende por prédio rústico e por prédio urbano.
Mas em vão se procurará aí a noção de logradouro.
Pelo artigo 1381 alínea a) do Código Civil fica excluído do direito de preferência o proprietário de terreno confinante quando algum dos terrenos constituir parte componente de um prédio urbano. Mas também em vão se procurará quer aí quer no artigo 1377 alínea a) do Código Civil a definição de parte componente.
Todavia, não é só a noção de um e de outra que não é fornecida como ainda a lei não indica directamente qual o critério a seguir. E, como se verá adiante, "logradouro" e "parte componente" não são sinónimos, embora a compreensão daquele possa servir de contributo para a delimitação do conteúdo desta (vd. acórdão da Relação de Évora de 15 de Março de 1984 in CJ IX/2/274).
A delimitação do conteúdo de "parte componente" não poderá deixar de ter em vista os objectivos prosseguidos pela proibição do fraccionamento (salvo nos casos previstos no artigo 1377 do Código Civil) e com o desiderato do emparcelamento (Código Civil - artigo 1382, n. 1).
Quer-se "pôr termo à fragmentação e dispersão dos prédios rústicos... com o fim de melhorar as condições técnicas e económicas da exploração agrícola" (Código Civil - artigo 1382, n. 1; cfr. A. Varela - P. de Lima in CCAnot. III/278). O Relatório do novo regime de emparcelamento rural instituído pelo Decreto-Lei 384/88, de 25 de Outubro, salienta que se pretende orientar o progresso da agricultura de modo a rendibilizar os meios de produção para que a actividade agrícola aumente a sua competitividade e proporcione à população rural um nível de vida mais aproximado dos padrões verificados noutros sectores de actividade. Visa-se, como um dos meios para alcançar o objectivo prosseguido, o aumento da área dos prédios e das explorações agrícolas dentro de certos limites e, como referem A. Varela - P. de Lima (op. cit. p. 276), o direito de preferência "é somente admitido como meio de evitar os parcelamentos ilegais".
Retira-se daqui que não basta o aumento da área dos prédios mas que se terá de estar face ainda a uma exploração agrícola - a lei não define o seu dimensionamento nem condiciona a preferência a um certo dimensionamento desta (salvo na referência a unidade de cultura) pois que se requer que o terreno seja apto para cultura e que se mantenha esse fim. Retira-se ainda que não se procurou ir ao encontro da identificação matricial e/ou registral do "prédio" mas da unidade económica e produtiva que este representa (a respeito de tal matéria, veja-se com muito proveito o citado acórdão da Relação de Évora).
Irrelevante, assim, a questão suscitada pela 1. conclusão dos recorrentes.
3.- Enquanto a 1. instância refere que a aceitar-se que a Quinta do ... é um prédio "misto, a sua destinação prevalecente é a agrícola" (folhas 114), a Relação concluiu que se trata de um prédio misto (folhas 159 v) funcionando "como prédio urbano, uma vez que a parte rústica perdeu autonomia em relação áquele; predomina o fim habitacional em relação à cultura" (folhas 160).
É a Relação que, como instância que conhece do facto e do direito, fixa definitivamente os factos, mesmo que tal fixação envolva problemas de direito (acórdão Supremo Tribunal de Justiça in Boletim n. 274, página 196).
A qualificação do terreno, num caso como o dos autos, para efeito de saber se, com base na confinância, o proprietário goza ou não do direito de preferência na alienação do prédio rústico limite com o seu depende do recurso aos objectivos prosseguidos com a proibição do fraccionamento e com o desiderato do emparcelamento (Código Civil - artigo 1376 e seguintes).
Seja por esta especificidade seja porque, como antes ficou referido, a lei não define o que entende quer por logradouro quer por parte componente nem directamente fornece um critério para a distinção (o que, se não fosse aquela especificidade, não impediria que se qualificasse o terreno confinante quer como prédio rústico com parte urbana quer como parte rústica de um prédio urbano), cabe ao intérprete fazer, caso a caso, a distinção, determiná-la. E, na esteira da jurisprudência deste Supremo (v.g., acórdãos de 26 de Novembro de 1981 in Boletim n. 311, página 377 e 25 de Março de 1993 in Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça I/2/33), conclui-se estarmos, assim, perante uma questão de facto.
Conforme antes se concluiu, para a decisão probatória da mesma não tem relevância o disposto no artigo 371, n. 1 do Código Civil, pelo que não se verifica a ressalva do artigo 722, n. 2 do Código de Processo Civil.
Porque inalterável a matéria de facto fixada pela Relação, considerado o prédio dos autores como urbano do qual a parcela de terreno confinante é parte componente ou constitutiva (M. de Andrade in T. Ger I/237), está excluído que aqueles gozem de direito de preferência na alienação do prédio pela primeira ré aos segundos réus (Código Civil - artigo 1381, alínea a)).
Termos em que se acorda em negar a revista.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 16 de Abril de 1996.
Lopes Pinto.
Torres Paulo.
Ramiro Vidigal.