RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
REPOSIÇÃO NATURAL
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CLÁUSULA OBRIGACIONAL
LUCRO CESSANTE
RENUNCIABILIDADE DE DIREITOS
Sumário

I - O princípio da reposição natural quanto à obrigação de indemnização deve submeter-se ao da conversão da indemnização em dinheiro sempre que o prejuízo causado ao devedor por efeito daquela reposição seja consideravelmente superior ao sofrido pelo credor se esta se não verificar.
II - O credor, no caso de conversão da resposição natural em indemnização em dinheiro, tem direito não só ao valor da coisa anterior aos danos, mas ainda ao valor do prejuízo resultante de não poder continuar a usar a mesma coisa antes da reparação.
III - O valor do dano resultante da não continuação do uso da coisa enquanto não utilizável deve ser apurado mediante critérios de equidade: razões de conveniência, de oportunidade e, especialmente, de justiça concreta.
IV - O artigo 809 do Código Civil não proíbe, em princípio, a renúncia prévia ao direito de indemnização de lucros cessantes por cláusulas limitativas de responsabilidade contratual.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Montalegre, A intentou a presente acção com processo ordinário contra Companhia de Seguros o Trabalho, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe:
- o conserto da máquina Ford, usada, 6000
- o prejuízo já apurado de 2104000 escudos e os prejuízos futuros que lhe advém da não utilização da referida máquina até ao conserto, prejuízos que por perdurarem no tempo se relegam para a liquidação em execução de sentença
- os juros de mora, da quantia já apurada, de 2104000 escudos, a partir da citação e aqueles que resultarem dos danos a fixar em execução de sentença.
- Fundamenta os seus pedidos de, em consequência, de um acidente de viação, ocorrido em 30 de Abril de 1992, pelas 10 horas e 15 minutos, na estrada nacional Braga-Chaves, por culpa de C, condutor do veículo automóvel ..., de que era proprietário, ter ficado danificada uma sua máquina Ford, usada, 6000, que esse veículo transportava, de acordo com um contrato de transporte que o mesmo C celebrara com ele (autor), sendo certo que a legitimidade da Ré deriva do facto de o transportador ter transferido para ela a responsabilidade civil pelos danos causados à mercadoria transportada pelo veículo SM.
Contestou a Ré, dizendo que reconhece, na sua qualidade de seguradora do transportador, a sua obrigação de ressarcir o Autor; restringe, porém, a sua responsabilidade ao valor da máquina ao tempo do sinistro, excluindo, portanto, dessa responsabilidade, quer o dever de pagar o valor da sua reparação - dada a sua excessiva onerosidade - quer de pagar os pretensos prejuízos do autor emergentes da impossibilidade do uso da máquina - porque excluída de tal responsabilidade no contrato.
- Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença no sentido de julgar a acção parcialmente provada, condenando a Ré no pagamento da quantia de 1104000 escudos ao Autor, absolvendo-a do pedido na parte restante.
2. O Autor apelou. A Relação do Porto, no seu acórdão de 18 de Abril de 1995, decidiu julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré a pagar ao Autor as quantias de 2743887 escudos, mais o IVA, e 140400 escudos, acrescida esta de juros a
15 porcento, desde a citação até efectivo pagamento, e confirmou a sentença recorrida na parte restante.
3. A Ré "O Trabalho" Companhia de Seguros, S.A., pede revista - revogação do acórdão recorrido, com manutenção do decidido na 1. instância, formulando conclusões no sentido de que não pode ser condenada a pagar ao autor um valor superior a 1000000 escudos, valor da máquina antes de acidentada, dado que, por um lado, o artigo 566 n. 1 do Código Civil substitui a reconstituição natural pela indemnização em dinheiro, quando aquela se revele excessivamente onerosa para o lesante e, por outro lado, isso resulta da responsabilidade contratual do transportador que não pode ser superior em caso de deterioração da mercadoria ao que seria em caso de perda da mesma.
4. O Autor pede revista subordinada - dever atribuir-se-lhe indemnização pelos lucros cessantes a liquidar em execução de sentença - formulando conclusões no sentido de que, por um lado, os lucros cessantes não se identificam com as "perdas indirectas ou de mercado" excluídas na cláusula 8, alínea j) do contrato de seguro e, por outro lado, esta cláusula ser nula por constituir uma renúncia prévia ao direito de indemnização por lucros cessantes.
5. A Ré apresentou contra-alegações onde conclui pela improcedência do recurso do autor.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
Questões a apreciar nos presentes recursos.
- A apreciação e a decisão dos presentes recursos passam pela análise de duas questões: a primeira, se a Ré não pode ser condenada a pagar ao autor um valor superior ao da máquina antes de acidentada; a segunda, se ao autor deverá atribuir-se indemnização pelos lucros cessantes a liquidar em execução de sentença.
- Abordemos tais questões.
III
Se a Ré não pode ser condenada a pagar ao autor um valor superior ao da máquina antes de acidentada.
1. Elementos a tomar em conta:
1. No dia 30 de Abril de 1992, pelas 10 horas e 15 minutos, pela E.N. Braga - Chaves, e neste mesmo sentido circulava o veículo pesado de mercadorias, de matrícula ..., conduzido pelo respectivo dono,
C, e no interesse do mesmo.
2. Na referida estrada, próximo do lugar de Penedones, o veículo SM capotou, o que determinou que a máquina "Ford" usada, modelo ..., da qual é dono o Autor, transportada naquela viatura, sofresse danos.
3. Antram - Associação Nacional de Transportadores
Públicos Rodoviários de Mercadorias, celebrou um contrato de seguro com a Ré, transferindo para esta a responsabilidade inerente à perda ou deterioração das mercadorias por aquelas transportadas, até ao limite de capital de 20000000 escudos.
4. O contrato a que se alude no número anterior, abrange os transportes de mercadorias efectuados pelos associados da Antram.
5. C era, à data dos factos, associado da Antram.
6. A reparação dos danos referidos em 2) importava em
2743887 escudos, excluindo o IVA.
7. O autor procedeu à reparação parcial da referida máquina a fim de a utilizar em pequenos trabalhos.
8. A máquina, antes de acidentada, tinha o valor de cerca de 1000000 escudos.
2. Posição da Relação e da recorrente/Ré.
2a) A Relação do Porto decidiu que a Ré terá de pagar ao Autor o custo da reparação da máquina no montante de 2743887 escudos, mais IVA, porquanto se, por um lado, importando a reparação dos danos da máquina quasi o triplo do valor que a mesma tinha ao tempo do sinistro revela-se ela mesma bastante onerosa para Ré; por outro lado, a Ré não logrou fazer a prova da excessiva onerosidade dessa reparação; não alegou quanto passou a máquina a valer após o sinistro ou qual era o valor duma máquina nova e não alegou que, pelo preço de
1000000 escudos, seria ao autor possível adquirir uma outra máquina no estado em que, antes de danificada, se encontrava a sinistrada.
2b) Por sua vez, a recorrente sustenta ser um dado da experiência comum haver uma enorme desproporção entre o valor do bem danificado e o custo da sua reparação de sorte que não poderá deixar de concluir-se que o nosso legislador estabeleceu a referida "excepção ao princípio da restauração natural" para situações como a presente.
Que dizer?
3. O artigo 562 do Código Civil estabelece o princípio da reposição natural quanto à indemnização: o dever de se reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, o dever de reposição das coisas no estado em que estariam, se não se tivesse produzido o dano.
A reposição natural, conforme sublinha Vaz Serra, "não supõe necessariamente que as coisas são repostas com exactidão na situação anterior: é suficiente que se dê a reposição de um estado que tenha para o credor valor igual e natureza igual aos que existiam antes do acontecimento que causou o dano. Com isto, fica satisfeito o seu interesse".
E acrescenta:
"É discutível se o credor pode exigir que o devedor substitua o velho pelo novo, indemnizando ele credor a diferença de valor. Enquanto uns defendem esse critério, outros impugnam-no. É assim que Enneccesus -
Lehmann, contra Ocrtmann, julgam que tal critério não é equitativo e que, se o devedor quiser, pode repor o velho pelo novo, mas sem direito de reclamar a diferença de valor.
"E deverá admitir-se, sem mais, o critério expresso no adágio popular: "quem estraga velho, paga novo".
E acrescenta:
"Em regra, não é razoável que tenha de adquirir um objecto já usado e com valor igual ao que perdeu.
Temos, portanto, que, para a reparação do dano, deve dar-se o preço do objecto a adquirir para substituir o outro:
"Como, porém, o credor vem assim a obter um lucro, deve dar ao devedor a diferença de valor... quando isso não representar um encargo não - equitativo para ele credor... Cabe ao Juiz apreciar, em fase das circunstâncias se é ou não equitativa esta solução..."
(Obrigação de Indemnização, in Boletim Ministério da Justiça n. 84, páginas 132 a 138).
- Esta posição de Vaz Serra, resultante da análise de abundante doutrina estrangeira, formada perante o estatuído legalmente nos respectivos países, não obteve inteira consagração legal no Código de 66.
- Por um lado, o artigo 566 n. 1 manda, em princípio, reparar o dano mediante a reconstituição natural: se o dano (real) consistiu na destruição ou no desaparecimento de certa coisa... ou em estragos nela produzidos, há que proceder à aquisição de uma coisa da mesma natureza e a sua entrega ao lesado, ou ao conserto (reparação) ou substituição da coisa por conta do Agente" (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 6. edição, página 875).
- Por outro lado, o princípio da reposição natural, nos termos deixados expostos, sofre as limitações referidas no próprio artigo 566 n. 1: sempre que não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Quando poderá dizer-se que a reposição natural do dano
(a aquisição da coisa nova quando houve destruição; o conserto - reparação - da coisa estragada) é excessivamente onerosa para o devedor?
- A reconstituição natural será excessivamente onerosa para o devedor" quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável, conforme sublinham P. Pires de Lima e A. Varela, que acrescentam: "Imaginemos um caso: inutilizou-se um automóvel velho que vale 100 e são precisos 200 para o substituir por um novo. Seria injusto à substituição, onerando o devedor com um encargo superior ao prejuízo e beneficiando o credor com a substituição dum automóvel velho por um novo" -
Código Civil anotado, vol. I, 4. edição, página 582.
No mesmo sentido está Menezes Cordeiro quando diz:
"Recorrendo aos princípios gerais, diremos que uma indemnização específica é excessivamente onerosa quando a sua exigência atente gravemente contra os princípios da boa fé" - Direito das Obrigações, 2. vol., página 401.
4. Se a reposição natural não tiver lugar, mercê da verificação de ser excessivamente onerosa para o devedor, terá lugar a indemnização em dinheiro (artigo 566) que tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente - que será a do encerramento da audiência - e a que seria nessa data se não existissem os danos - artigo 566 n. 2, do Código Civil.
É a consagração pela lei da teoria da diferença, teoria esta a determinar que o montante da indemnização abranja, no caso de onerosidade, não só o valor da coisa antes da verificação do dano, mas também o dano
(emergente) suportado pelo lesado por não poder manter o seu veículo em circulação, com devida reparação.
Dado que esse dano não tem valor haverá que atender ao artigo 566 n. 3 que prescreve que "se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o Tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados". Nestes casos - o da não determinação (prova) do valor dos danos - os danos têm de ser apreciados equitativamente.
A apreciação equitativa vem a significar que o julgador não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável à espécie vertente; tem a liberdade de subtrair-se a esse enquadramento rígido e proferir a decisão que lhe parecer mais justa, ou seja, o Juiz funciona como um árbitro, ao qual lhe fosse conferido o poder de julgar "ex aequo et bono".
A equidade funda-se, em suma, em razões de conveniência, de oportunidade, e, principalmente, de justiça concreta.
5. Perante os enunciados princípios, em conjugação com a factualidade, temos de precisar que o autor tem direito a ser indemnizado pelo valor da máquina antes de acidentada (acrescido, naturalmente, dos juros de mora fixados e não discutidos) e, ainda, pelo dano que sofreu, consistente em não poder manter o seu veículo em circulação, com a devida reparação.
E na atribuição dessa indemnização não se pode atender ao contrato de seguro, mas antes ao contrato de transporte celebrado entre o Autor e C que viu a sua responsabilidade contratual transferida para a Ré, mercê de um contrato de seguro celebrado entre esta e a Antram, contrato este a beneficiar o transportador C mercê da sua qualidade de associado da seguradora (vide factos referidos em 1), do presente parágrafo).
Tem direito o Autor à indemnização de 1000000 escudos, que era o valor da máquina do Autor antes de acidentada por entender-se que entre o valor da máquina antes de acidentada e o valor da sua reparação - 2743887 escudos, excluído o IVA - existe uma "considerável" diferença, de sorte a poder dizer-se que o prejuízo causado ao devedor (transportador) com a repararão da máquina é consideravelmente superior ao prejuízo sofrido pelo autor com a não reparação da máquina.
Neste sentido temos jurisprudência recente deste
Supremo Tribunal: considerou ser excessivamente onerosa para o devedor a reparação de 3000000 escudos num veículo com o valor de 1750000 escudos, antes de acidentado (Acórdão de 20 de Maio de 1995, Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do S.T.J., ano III, 1995, tomo II, página 97).
O autor tem ainda direito a indemnização pelo dano que sofreu, consistente em não poder manter o seu veículo em circulação, com a devida reparação.
A esse dano fixa-se o valor de 500000 escudos (quinhentos mil escudos).
Conclui-se, assim, que o Autor tem direito a receber a indemnização de 1500000 escudos (um milhão quinhentos mil escudos). Somatório do valor venal da máquina e do encargo resultante da não circulação da mesma, na devida reparação.
V
Se ao autor deverá atribuir-se indemnização pelos lucros cessantes.
1. Elementos a tomar em consideração.
1. No contrato de seguro celebrado entre a Antram -
Associação Nacional de Transportadores Públicos de
Mercadoria e a Ré encontra-se inserida a cláusula 8, alínea j) que diz constituir exclusão do âmbito de cobertura do seguro "as perdas indirectas ou de mercado".
2. Posição da Relação e do Recorrente/Autor.
2a) A Relação de Lisboa decidiu que considerando que o
Autor está a demandar apenas a seguradora, desacompanhada do transportador, apenas pode exigir dela a indemnização relativa às responsabilidades que o transportador para ela transferiu. No contrato de seguro em causa não foi transferida a responsabilidade do transportador pelo pagamento dos lucros cessantes porquanto nas "Condições Particulares da apólice do seguro em causa, no capítulo das exclusões (ponto 8, estipulou, na alínea j), que constituem exclusão do
âmbito da cobertura do seguro, entre outras, "as perdas indirectas ou de mercado". Tal cláusula tem o sentido de que se quis excluir os lucros cessantes e danos futuros, tendo presente que danos indirectos são "as consequências mediatas ou remotas do dano directo" -
Antunes Varela, Das Obrigações em Geral vol. I, 1. edição, página 424).
2b) Por sua vez, o Autor/recorrente sustenta que os lucros cessantes, prejuízos sofridos pelo autor em consequência da lesão, devem ser incluídos na obrigação de indemnizar a cargo da Ré por duas razões (alternativas):
1- o lucro cessante, componente do dano patrimonial, não se confunde com "perdas indirectas ou de mercado" - alínea j) da cláusula 8 - e excluídos do contrato de seguro, uma vez que, por dano indirecto" ou "danos patrimoniais indirectos" entende-se "os danos patrimoniais que derivam da ofensa de bens não patrimoniais: vida, saúde, honra, etc. - Professor
Pereira Coelho, Obrigações, 1967 página 157.
2- Mesmo incluindo o lucro cessante nas "perdas indirectas de mercado" esta cláusula é nula por se estar no domínio da responsabilidade contratual (artigo 809 do Código Civil), pois a mesma constitui uma renúncia prévia ao direito de indemnização por lucros cessantes.
Que dizer?
2. A obrigação do transportador - a de indemnizar o autor mediante a reconstituição natural da situação que existiria não fora o seu incumprimento (artigos 798 e 562, ambos do Código Civil) não foi assumida pela Ré Seguradora, conforme resulta da cláusula 8, alínea j) das Condições Particulares da Apólice.
Com a inserção desta cláusula, as partes quiseram excluir do âmbito do contrato de seguro "as perdas indirectas ou de mercado".
O que se deve entender por "perdas indirectas ou de mercado"?
ANTUNES VARELA faz a distinção entre "danos directos" e
"danos indirectos" dizendo que os primeiros, "são os efeitos imediatos do facto ilícito ou a perda causada nos bens ou valores juridicamente tutelados", e que os segundos, "são as consequências mediatas ou remotas do dano directo" (Das Obrigações em Geral, vol. I, 6. edição, página 572).
VAZ SERRA faz a distinção nos seguintes termos: o primeiro, é a modificação prejudicial que no bem atingido pelo facto danoso é causada por este mesmo facto; aparece primeiro como dano real e a sua extensão resulta da comparação entre o estado actual do bem danificado e o seu estado antes de ser danificado. O segundo (a que qualifica de dano mediato em contraposição ao primeiro, o dano imediato) compreende os prejuízos que mais tarde se juntam e, em regra, se dão, não no próprio objecto do dano, mas só no património".
E a completar esta distinção, acrescenta:
"Como o dever de indemnizar abrange, em princípio, os danos imediatos e os mediatos, Larenz refere que a opinião dominante não costuma fazer tal distinção, mas observa que esta é importante no que toca ao cálculo do ganho perdido e ao problema da causa hipotética do dano.
"Ver, a este propósito, as partes relativas à extensão do dano a reparar e ao nexo causal" - Obrigação de Indemnização, no Boletim do Ministério da Justiça n. 84, página 15 e nota 23).
3. Tendo presente o artigo 564 n. 1 do Código Civil (o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão) e a distinção entre danos directos (imediatos) e danos indirectos
(mediatos), habilitados estamos em interpretar a cláusula 8, alínea j) do contrato de seguro em causa, no sentido de serem excluídos do âmbito da cobertura do mesmo os proventos que o Autor deixou de auferir devido
à imobilização da máquina, em consequência do acidente, precisamente os lucros cessantes invocados (mas não provados dada a expressão "prejuízos" - contida em 15), parágrafo II presente acórdão - consubstancia um conceito de direito).
4. O artigo 809 do Código Civil (é nula a cláusula pela qual o credor renúncia antecipadamente a qualquer dos direitos que lhe são facultados nas divisões anteriores nos casos de não - cumprimento ou mora do devedor, salvo o disposto no n. 2 do artigo 800) é aplicável ao contrato de transporte celebrado entre ANTRAM e C e, ainda, ao contrato de seguro celebrado entre Antram e a Ré: são nulas todas as cláusulas de exclusão da responsabilidade.
Problemática é a questão de saber se essa norma proíbe também a renúncia parcial traduzida nas cláusulas de limitação de responsabilidade.
A doutrina propende para aceitar como válidas as estipulações de abrandamento da responsabilidade, dentro de certos limites (não devem ser contrárias às normas de ordem pública - artigos 280 n. 2; 800 n. 2; não devem conduzir a uma indemnização irrisória ou simbólica, pois traduzir-se-iam em verdadeiras cláusulas de irresponsabilidade, proíbidas pelo artigo 809; não devem abranger os casos de dolo ou culpa grave do devedor" - GALVÃO TELLES, Direito das obrigações, 6. edição, páginas 427 a 429).
A defesa expressa da validade da cláusula limitativa é, ainda, feita por PINTO MONTEIRO (Cláusulas Limitativas e da Exclusão da Responsabilidade Civil, 1985, páginas
171 a 173) ALMEIDA COSTA (Direito das obrigações, 5. edição, páginas 652 e 653) e foi adoptada neste Supremo Tribunal (acórdão de 2 de Julho de 1981 - Boletim Ministério da Justiça n. 309, página 319).
As razões justificativas da sua admissibilidade dadas quer por GALVÃO TELLES (obra citada, páginas 428 a 430) quer por PINTO MONTEIRO (obra citada, páginas 171 e 172) leva-nos a precisar que a norma do artigo 809 do
Código Civil não proíbe, em princípio, as cláusulas de limitação de responsabilidade.
5. A cláusula inserta no Ponto 8, alínea f) das Condições Particulares da apólice do contrato de seguro em causa é limitativa da responsabilidade da seguradora
- exclui como vimos, os lucros cessantes, sendo certo que se entende dentro dos limites enunciados e, por tal, é plenamente válida.
6. Conclui-se, assim, que ao autor não deverá ser atribuída indemnização por lucros cessantes.
VI
Conclusão.
Do exposto, poderá extrair-se que:
1) o princípio da reposição natural quanto à obrigação de indemnização, estabelecido no artigo 562, do Código Civil, será convertido em indemnização em dinheiro sempre que o prejuízo causado ao devedor com aquela seja consideravelmente superior ao sofrido pelo credor com a não verificação da mesma.
2) O credor, no caso de conversão da reposição natural em indemnização em dinheiro, terá direito não só ao valor da coisa, antes da danificação, mas também ao dano traduzido em não poder manter o uso da mesma, sem a devida reposição.
3) O valor do dano consistente na não manutenção do uso da coisa, sem a devida reposição, será apurado através de critérios de equidade: razões de conveniência, de oportunidade e, principalmente, de Justiça concreta.
4) O artigo 809 do Código Civil não proíbe, em princípio, a renúncia prévia ao direito de indemnização por lucros cessantes, através de cláusulas limitativas da responsabilidade contratual.
Face a tais conclusões, em conjugação com a factualidade dada como provada, poderá precisar-se que:
1) o autor tem direito a uma indemnização de 1500000 escudos, somatório do valor da máquina, antes de acidentada (1000000 escudos) e do valor do dano de não poder ter em circulação a máquina, com a correcta reparação (500000 escudos).
2) O autor não tem direito a indemnização por lucros cessantes, por os mesmos se encontrarem excluídos do contrato de seguro com base no qual veio a Ré a ser demandada.
3) O acórdão recorrido não poderá ser mantido por ter inobservado o afirmado em 1).
Termos em que: a) se nega a revista do autor. b) Se concede parcial revista à Ré, e, assim, revoga-se o acórdão recorrido na parte em que condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de 2743887 escudos, mais o
IVA, com substituição por condenação da Ré a pagar ao autor a quantia de 1500000 escudos, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento; no demais mantém-se o acórdão recorrido, com a rectificação de que onde se lê "140400 escudos" se deve ler "104400 escudos".
- Custas da revista do Autor pelo próprio.
- Custas da Revista da Ré por esta e pelo autor, na proporção de 1/3 para aquela e 2/3 para este.
Lisboa, 9 de Maio de 1996.
Miranda Gusmão,
Sá Couto,
Metello de Nápoles,
Sousa Inês. (Vencido nos termos da declaração de voto anexa).
Nascimento Costa. (Vencido, segue Declaração de Voto).
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 24 de Junho de 1994 do T.C. Chaves;
II - Acórdão de 18 de Abril de 1995 da Relação do
Porto.
Declaração de Voto:
1. Votei no sentido de serem negadas ambas as revistas.
2. Está em causa a indemnização do lesado, o seu cálculo.
A regra é a que está no artigo 562 do Código Civil: a indemnização deve ser feita mediante restituição natural.
Isto significa que o devedor, na espécie, deveria ter mandado ele próprio reparar a máquina danificada ou entregar ao credor outra idêntica (em espécie qualidade, estado e valor).
As regras do artigo 566, n. 1, do Código Civil não respeitam a limitação de indemnização mas sim à determinação dos casos em que é licito substituir a reconstituição natural por uma indemnização em dinheiro.
O disposto no artigo 566, n. 1, do Código Civil não pode funcionar como um meio de o devedor lograr a redução da indemnização devida ao credor.
A redução da indemnização é possível, sim, mas ao abrigo do disposto no artigo 570 do Código Civil o que supõe um facto culposo do lesado que concorra para a produção ou agravamento do dano.
3. Para aplicar a execução do artigo 566, n 3, in fine, do Código Civil, é necessário começar por apurar se a restauração natural é excessivamente onerosa para o devedor.
Para proceder a este juízo há que fazer uma comparação de valores.
É errado tomar como termos de comparação, de um lado, o valor do bem sinistrado antes do acidente e, pelo outro lado, o custo da restituição natural (reparação ou aquisição de bem idêntico, em valor e qualidades).
Os termos a comparar, como resulta do disposto no artigo 566, n. 1, do Código Civil, são, por um lado, o valor necessário à satisfação dos interesses legítimos do credor (devendo tomar-se em consideraçâo todos os interesses legítimos do credor, incluindo os de ordem moral ou sentimental) e, por outro lado, o do custo da restauração natural.
Só mediante este juízo é possível concluir acerca da impropriedade ou inadequação da reconstituição natural.
(Cfr. Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", I vol., 8. edição, página 923; Mário Almeida Costa, in Direito das Obrigações", 1979, página 526).
4. Apurada a apontada desproporção de valores há que determinar se o encargo que daí advém para o devedor é excessivo, como se exige no artigo 566, n. 1, do Código Civil.
Para se afirmar este excesso é necessário que concorram dois requisitos.
O primeiro é o de que a reconstituição natural (ou a atribuição ao lesado da quantia que, na época da entrega, lhe permita suportar o custo efectivo da reparação) beneficie o lesado.
O segundo é o de a reconstituição natural se revelar iníqua e contrária à boa fé.
É o exemplo que dão Pires de Lima e Antunes Varela, in
"Código Civil Anotado", Vol. I, 4. edição, página 582:
"inutilizou-se um automóvel velho que vale cem e são precisos duzentos para o substituir por um novo. Seria injusta a substituição, onerando o devedor com um encargo superior ao princípio e beneficiando o credor com a substituição de um automóvel velho por novo".
5. A limitação do montante da indemnização em dinheiro ao abrigo do disposto no artigo 566, n. 1, última regra, do Código Civil (excessiva onerosidade), quando o preço da reparação da coisa danificada seja superior ao seu valor venal, supõe que exista a possibilidade de, no mercado, adquirir uma coisa idêntica à danificada (isto é, com idênticas qualidades e valor).
É o que em regra acontece com os veículos automóveis cujo mercado de usados é tão grande que, na grande maioria dos casos, será sempre possível encontrar no mercado um automóvel da marca, tipo, idade e estado de conservação idêntico ao sinistrado.
Mas não é o que se passa com outros bens.
6. Na espécie, a coisa danificada é uma máquina industrial e não resulta a possibilidade de o lesado adquirir outra máquina idêntica (com o sentido acima apontado) pelas forças do montante da indemnização que lhe é atribuída.
O autor não é comerciante de máquinas e, por isso, o que para ele conta não é o valor venal da máquina.
O autor destinava a máquina, antes do acidente, a trabalhar em aterros e desaterros e, em consequência dos danos, não pode efectuar tais trabalhos (factos treze e catorze); e, por isso, o valor que para ele conta é o da utilidade que para si (a sua profissão) a máquina representava.
Assim, na espécie, não resulta que exista desproporção entre o interesse do lesado, credor da indemnização, e o custo da reparação da máquina.
A desproporção verifica-se, pelo contrário, entre a indemnização que é atribuída ao credor neste Acórdão e o seu interesse legítimo visto que não resulta que o credor possa voltar a exercer a sua profissão com a quantia em dinheiro que lhe é atribuída.
A restituição natural (ou a atribuição de quantia em dinheiro que permita ao credor realizá-la) não beneficia o lesado em nada; pelo contrário, a mera atribuição do valor da máquina antes do sinistro representa um juízo para o credor, uma injustificada redução da indemnização visto que não existe culpa do lesado.
Finalmente, nada, à luz da equidade e da boa-fé, justifica que, a pretexto de se substituir a reconstituição natural por indemnização em dinheiro, o devedor pague menos daquilo que deve.
A equidade segundo a boa-fé pode, em muitos casos, justificar a validade da velha máxima de que "quem estraga velho paga novo". Se ao lesado é estragado um fato com algum uso, mas que lhe pode servir perfeitamente não lhe é exigível que receba a título de indemnização uma quantia que apenas chegará para, num adelo, adquirir um fato usado sabe-se lá por quem.
(Cfr. Dário de Almeida, in "Manual de Acidentes de Viação", 1. edição, páginas 341 e 342).
Precisamente, na espécie, onde o autor destinava a máquina ao exercício da sua profissão, não podendo trabalhar sem a respectiva reparação, é a equidade segundo a boa fé que não permite, antes reprova, a limitação da indemnização.
7. Acresce, ainda, que a responsabilidade da seguradora
é assumida contratualmente para um elevado número de veículos pelo que se não afigura excessivamente oneroso para um seguradora que em alguns casos a fixação da indemnização seja feita em quantia que permita a reconstituição natural, isto apreciado com objectividade, ainda que superior ao valor da coisa danificada. O seguro têm carácter aleatório sendo certo que a limitação da obrigação a título de excessiva onerosidade não deve intervir nas obrigações assumidas no âmbito de contratos com aquele carácter visto que o excesso sempre fica abrangido pelas contingências próprias da obrigação do segurador, pelo menos em larga medida.
Agostinho Manuel Pontes de Sousa Inês.
Declaração de Voto:
Duas questões estão em jogo: a do conteúdo da indemnização e a da abrangência ou não pelo contrato de seguro do lucro cessante.
Comecemos pela 2., bem mais fácil.
Discute-se o que sejam "perdas indirectas ou de mercado
(alínea j) das exclusões da apólice.
E talvez em princípio não fosse fácil decidir esse ponto.
É que reina grande confusão na doutrina sobre o que seja o dano indirecto.
Para só citar alguns autores, K. Larenz (Derecho de Obligaciones, I, 194), Paul Esmein, in Traité Pratique de Droit Civil Français, VI, 968, e A. Varela (Das Obrigações em Geral, 1970, página 424) fornecem-nos critérios diferentes.
Nenhum deles nos poderia servir aqui porque a apólice afinal identifica perda "indirecta" com perda "de mercado".
Já por aqui teríamos de concluir que o lucro cessante não estava abrangido pelo seguro (e nada impedia a validade de tal exclusão).
Mas se bem repararmos na apólice, veremos que nem é necessário ler as exclusões.
A verdade é que nos "riscos cobertos" não cabem esses danos (ver folha 26).
O seguro só cobre a perda ou deterioração das mercadorias.
Questão do conteúdo da indemnização.
É frequente as seguradoras pretenderem pagar o valor venal de um veículo usado em lugar de suportarem as despesas da reparação, porventura muito onerosa.
O problema levanta-se pois com frequência e merece que nele nos detenhamos um pouco.
A doutrina estrangeira dá algum apoio a essa pretensão.
Paul Esmein (ob. cit., página 972) sustenta que a vítima não pode exigir a reparação quando esta importar em preço superior ao de uma coisa usada em idêntico estado.
Cita jurisprudência favorável e desfavorável a esse ponto de vista e autores que o abonam, entre os quais René Savatier.
Este autor (Traité de la Responsabilité Civile, II, 171 e seguintes) trata mais minuciosamente o problema.
Apela ao Juiz para que não destrua o equilíbrio entre a condenação e o prejuízo.
Trata nomeadamente do caso dos danos em automóveis.
Afirma de facto (página 182) que em princípio a indemnização não pode exceder (nesse segmento obviamente) o valor da viatura antes do acidente.
Todavia, acrescenta, o preço integral das reparações pode ser exigido se o objecto deteriorado tinha para a vítima um valor pessoal justificando estas despesas.
Karl Larenz (ob. cit., páginas 230 e 231) refere-se também a este tema.
Citando o parágrafo 251-2 do C. alemão, lembra que o devedor pode recusar a restauração natural quando esta só seja possível mediante gasto desproporcionado.
Acrescenta porém que o lesante tem de indemnizar não só do valor comum ou "de câmbio", mas pelo valor, possivelmente mais alto, que o bem destruído representava para o lesado.
Imagine-se a utilidade do bem destruído numa exploração do lesado...
Designa este valor como "subjectivo ou interesse".
Já não é indemnizável o valor afectivo, que não é passível de avaliação em dinheiro.
Vaz Serra, no seu estudo inserto no B.M.J. 84, páginas 131 e seguintes debruça-se também sobre o tema, citando o direito comparado.
Escreve que o velho adágio popular "quem estraga velho paga novo" não repugna muito aos juristas.
Muitas vezes terá o lesante de pagar novo, sem que possa obrigar o lesado a restituir o montante do seu enriquecimento, correspondente à diferença entre o valor do objecto novo, agora adquirido com o dinheiro da indemnização, e o valor do objecto usado (danificado).
Citando Larenz, escreve que o lesante pode ter de considerar também o "desenvolvimento verosímil das coisas", não bastando restaurar o estado anterior.
As coisas usadas não são em geral fungíveis, pois têm a sua utilidade particular.
Não é equitativo obrigar o lesado a suportar o maior preço de um objecto novo, quando teria continuado a usar o velho.
Quanto ao "interesse", referido por Larenz (supra), explica Vaz Serra (página 137) que se trata do valor necessário para substituir o objecto danificado, e que é superior ao valor objectivo.
Muitas vezes terá o lesado de comprar um objecto novo.
Acrescenta Vaz Serra que a perda sofrida pelo lesado não consiste na destruição do valor do bem mas na necessidade de adquirir outro para substituir aquele.
Não pode obrigar-se a pessoa a comprar um usado.
Em regra o lesado só deve restituir a mais valia assim recebida (valor do novo-valor do usado) nos casos em que a indemnização poupe ou adie ao prejudicado a necessidade de novas aquisições...
O que pode ocorrer com grandes empresas, acrescenta.
"Em geral haverá que decidir a favor do prejudicado...".
"Em regra, não é razoável que tenha de adquirir um objecto já usado e com valor igual ao do que perdeu".
Prescreve o artigo 566 n. 1 do Código Civil que a indemnização é fixada em dinheiro quando a reconstituição natural seja excessivamente onerosa para o devedor.
É aqui que se baseia a seguradora.
Cremos que a jurisprudência não tem aceite facilmente as pretensões de as seguradoras se limitarem a pagar o valor de um carro usado em lugar de suportarem a reparação.
De um modo geral, supomos que com boas razões.
É que um automóvel não é (ainda não é, apesar de estar mais próximo de sê-lo) um bem fungível que se compre no mercado sem receios de levar "gato por lebre".
O lesado pode ter um veículo de há 10 anos com pouca quilometragem e estimado.
Se for comprar um carro da mesma marca, modelo e ano, com o dinheiro entregue e correspondente ao valor venal, provavelmente ficara mal servido.
Os tribunais terão pois de decidir estas hipóteses caso a caso e com extremo cuidado.
Algumas haverá em que se imponha aplicar o normativo citado, satisfazendo portanto a pretensão da seguradora.
Neste processo, entendemos que a Relação decidiu correctamente.
Trata-se de máquina que nem sabemos se é fácil encontrar no mercado no estado de uso da sinistrada.
Porque estava em jogo o interesse da seguradora, esta tinha o ónus da prova das circunstâncias que apontassem de modo inequívoco para a inexigibilidade da reparação.
Votei assim pela negação das revistas.
Ilídio Gaspar Nascimento Costa.