ARRENDAMENTO PARA PROFISSÃO LIBERAL
CESSÃO DE POSIÇÃO CONTRATUAL
SENHORIO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
Sumário

I - No direito anterior à vigência do Decreto-Lei 257/95, de 30 de Setembro, a proprietária de uma fracção autónoma de um prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal e que a deu de arrendamento a uma médica para nele instalar o seu consultório e exercer a sua profissão, gozava de direito de preferência na cessão onerosa da posição contratual que a médica arrendatária fez a um terceiro, também médico.
II - Uma vez exercido tal direito por parte da senhoria extinguiu-se "ipso jure" o contrato de arrendamento, regressando a senhoria à plenitude do seu direito de propriedade.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
No Tribunal Cível de Lisboa (16. juízo foi proposta por A acção de processo ordinário contra B, C e D, para que fosse reconhecido à autora o direito de preferir na cessão da posição contratual feita pelos dois primeiros réus ao terceiro, declarando-se a autora como adquirente da posição contratual de inquilina em substituição do último réu.
Invocou para tanto ser a proprietária de uma fracção autónoma dada de arrendamento à segunda ré com destino a consultório médico desta, tendo a respectiva posição contratual de inquilina sido cedida ao terceiro réu, a título oneroso, sem que fosse dado conhecimento prévio
à autora.
Esta arroga-se a titularidade de um direito de preferência na transmissão realizada, firmando-se no disposto nos artigos 116 e 117 do R.A.U..
Os réus contestaram.
A acção foi julgada procedente em saneador/sentença de que os réus apelaram.
A Relação de Lisboa revogou a dita sentença e absolveu os réus do pedido.
A autora pediu então revista.
Podem sintetizar-se do seguinte modo as conclusões que fecham a alegação do recurso:
- Não é requisito da cessão da posição contratual a transmissão do estabelecimento;
- São figuras distintas o trespasse, no caso de arrendamentos comerciais, e a cessão da posição contratual, no caso de arrendamentos para o exercício de profissão liberal, sendo aplicável a estes últimos o direito de preferência reconhecido ao senhorio no caso de trespasse;
- Esse direito de preferência reporta-se genericamente aos casos de cessão onerosa e não se exige para o seu exercício que o senhorio tenha a mesma profissão do cedente, uma vez que se opera, nesse caso, a extinção "ipso jure" do contrato de arrendamento;
- O acórdão recorrido violou, por inadequada interpretação e aplicação, o disposto nos artigos
116, 117 e 118 do R.A.U..
Contra-alegou por sua vez a autora em defesa do decidido.
Questão a dilucidar é a de saber se a autora, senhoria do local arrendado, tem direito de preferência na transmissão realizada a favor do terceiro réu.
Para tanto haverá que ter em conta os seguintes factos que a Relação julgou assentes:
- A autora é única dona da fracção autónoma designada pela letra "D" correspondente ao 1. andar direito do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua Pascoal de Melo, ns. 150 a 150-E, em Lisboa
(freguesia de Arroios);
- Por escritura pública de 22 de Outubro de 1963 a autora deu de arrendamento à ré Ruth a referida fracção autónoma;
- O andar assim arrendado destinava-se exclusivamente a consultório médico da inquilina;
- Por escritura de 28 de Agosto de 1992 os dois primeiros réus cederam a posição contratual da ré ao terceiro réu pelo preço de 2000000 escudos;
- A autora efectuou o depósito desse preço;
- A autora não é médica;
- O terceiro réu é médico.
A 1. instância reconheceu à autora o direito de preferência por esta invocado, na medida em que a lei não limita o exercício do direito de preferência a determinadas pessoas que tenham uma licenciatura, designadamente em medicina.
Por seu lado a Relação defendeu o entendimento de que o novo sistema legal instituído pelo R.A.U. atribui ao senhorio um direito de preferência em casos de trespasse, mas não já em casos de mera cessão da posição do arrendatário que não configurem trespasse.
Cabe pois analisar esta questão.
O artigo 1119 do Código Civil determinava a aplicabilidade aos arrendamentos para o exercício de profissões liberais de algumas disposições respeitantes aos arrendamentos para comércio ou indústria; mas não se incluía nessa remissão a matéria concernente ao trespasse do estabelecimento (artigo 1118).
Tal não significava contudo a adopção de um regime substancialmente diverso no tocante à permissão de uma transmissão sem autorização do senhorio, avultando aí somente a razão de "não haver trespasse de profissões liberais" (P. Lima e A. Varela, "Código Civil Anotado", vol. II, 3. edição, página 645).
Estabeleceu-se pois no artigo 1120 um regime paralelo para a transmissão da posição de arrendatário, no caso de arrendamentos para o exercício de profissões liberais, assim se reproduzindo a doutrina do n. 1 do artigo 64 da anterior Lei n. 2030.
Traduzia-se esse regime na transmissibilidade da posição do arrendatário, por acto entre vivos e sem autorização do senhorio, a favor de pessoas que no prédio arrendado continuassem a exercer a mesma profissão.
Assim, e ao contrário do que acontece com o trespasse, não se exigia que a transmissão do arrendamento fosse acompanhada da transmissão dos utensílios e outros elementos inerentes ao exercício da profissão, sendo apenas indispensável que se mantivesse no prédio o exercício da mesma profissão.
Essas normas do Código Civil foram todavia revogadas pelo Decreto-Lei n. 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o novo Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.).
Há que analisar pois as disposições deste outro diploma, que é aplicável ao caso em apreço, especialmente os seus artigos 116, 117 e 118 (na redacção anterior ao Decreto-Lei n. 257/95).
O artigo 116 veio instituir de novo - cfr., anteriormente ao Código Civil de 1966, o parágrafo
único do artigo 9 da Lei n. 1662, de 4 de Setembro de
1924 - o direito de preferência do senhorio no trespasse do estabelecimento comercial.
O artigo 117 determinou a aplicabilidade aos arrendamentos para o exercício de profissões liberais das disposições dos artigos 112 a 116 do R.A.U..
E o artigo 118 manteve a transmissibilidade da posição do arrendatário (de local arrendado para o exercício de profissão liberal) por acto entre vivos, sem autorização do senhorio, a quem continue a exercer a mesma profissão no prédio arrendado.
Põe-se a questão de saber, face a estes preceitos legais, se o direito de preferência que o artigo 116 atribui ao senhorio é aplicável também aos casos de cessão da posição contratual prevenidos no artigo 118.
O acórdão recorrido optou pela negativa, mas crê-se ser outro o entendimento mais correcto.
Quando o legislador determina que é aplicável aos arrendamentos para o exercício de profissões liberais a norma respeitante aos arrendamentos para comércio ou indústria atinente ao direito de preferência do senhorio em caso de trespasse, deverá entender-se que quer atribuir este direito de preferência quando ocorra uma transmissão enquadrável no artigo 118.
Porque não há, nos termos sobreditos, "trespasse de profissões liberais", no âmbito destas é a cessão da posição do arrendatário por acto entre vivos que corresponde de algum modo à figura do trespasse do estabelecimento nos arrendamentos para comércio ou indústria.
Ora, não exigindo a lei, ao contrário do que acontece com o trespasse, autorização do senhorio para a transmissão singela do direito ao arrendamento (isto é, desacompanhada da transmissão dos utensílios e de outros elementos respeitantes ao exercício da profissão), nos termos estabelecidos no artigo 118, não seria facilmente compreensível, à luz de critérios de razoabilidade e de coerência interna do sistema, que o reconhecimento do direito de preferência ao senhorio, que se pretendeu alcançar através da remissão feita no artigo 117, não incidisse sobre a cessão da posição contratual prevista no subsequente artigo 118, que é simetricamente correspondente, nas profissões liberais,
à figura do trespasse.
É certo que, numa interpretação meramente literal do diploma em análise, passou a ser aplicável aos arrendamentos para o exercício de profissões liberais, através da ampla remissão que se fez no artigo 117, a figura do trespasse (a que alude o artigo 115), e bem assim o seu regime legal (artigos 115 e 116), em termos de ser sustentável que o local onde se exerce a profissão liberal pode ser trespassado, ao contrário da filosofia que impregnava o Código Civil (veja-se a este propósito Pais de Sousa, in "Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano", 4. edição, anotação ao artigo
121).
Seja como for, vem-se entendendo na doutrina e na jurisprudência dominantes que, havendo cessão da posição de arrendatário para exercício da mesma profissão liberal - que se configura como uma transmissão homóloga do trespasse - a lei concede ao senhorio um direito de preferência, face ao que se dispunha nos artigos 116 e 117 (ver neste sentido Pinto Furtado, in "Manual do Arrendamento Urbano", 1996, página 540, e Januário Gomes, in "Arrendamentos Comerciais", 2. edição, página 196).
É esse seguramente o pensamento legislativo que presidiu às referidas disposições legais, devendo pois entender-se que a remissão feita pelo artigo 117 para os artigos 115 e 116 tem além do mais o sentido da aplicabilidade desses preceitos, com as devidas adaptações, aos casos de cessão previstos no artigo
118, o que se salda no reconhecimento de um direito de preferência do senhorio em hipóteses de cessão onerosa da posição do arrendatário.
Não é de aceitar assim o entendimento que vingou na
Relação.
Mas cabe ainda indagar se, como também defendem os recorrentes, sempre seria de exigir ao senhorio preferente que reunisse em si as necessárias aptidões e vontade que lhe permitissem exercer a mesma profissão no local arrendado, já que isso é, à luz do n. 1 do artigo 118, um requisito de licitude de uma cessão não autorizada.
Crê-se, todavia, que a resposta é negativa, não sendo de colocar uma tal exigência, o que corresponde de resto à posição doutrinal dominante (cfr. Pinto Furtado, ob. cit., páginas 538 e 541, Januário Gomes, ob. cit., página 196, e Menezes Cordeiro - que se diz ser o próprio autor do projecto e principal responsável técnico do diploma - in "Novo Regime do Arrendamento Urbano", 1990, página 152).
A tese contrária, firmando-se numa interpretação restritiva dos textos legais que nada parece autorizar no sentido de se excluir da preferência o senhorio que não exercesse a mesma actividade, "obriga a uma difícil interpretação do artigo 117", como o reconheceu Oliveira Ascensão (in R.O.A., ano 51, 1991, I, página
59).
A verdade é que, dando primazia - bem ou mal é aspecto que aqui não importa considerar - à propriedade fundiária em detrimento da chamada propriedade comercial, o pensamento legislativo (como o afirmou inequivocamente Menezes Cordeiro) foi o de permitir ao proprietário a recuperação ou o resgate da coisa de que
é dono, e não o de manter a continuidade da actividade até ai desenvolvida.
Aliás o mencionado requisito alusivo ao exercício da mesma actividade só logra justificação quando há uma cessão, o que não acontece quando o senhorio exerce o direito de preferência, pois que neste caso o arrendamento extingue-se "ipso jure"; e, uma vez extinto o arrendamento, o proprietário fica restituído ao pleno gozo dos direitos de uso e disposição que lhe são assegurados pelo artigo 1305 do Código Civil.
Já se argumentou com a desigualdade de condições que ocorre se o senhorio preferente, diferentemente de qualquer outro cessionário, não tiver que exercer a mesma profissão. Esquecem-se contudo aí duas considerações: uma é a de que as situações reais são diferentes na precisa medida em que o senhorio não é um cessionário de uma posição contratual, visto que o arrendamento se extingue com o exercício da preferência; outra é a de que, como lucidamente assinala Pinto Furtado, a igualdade de circunstâncias para o exercício da preferência se cinge à identidade da prestação, à oferta de uma prestação igual ("tanto por tanto"), que aqui indubitavelmente ocorre, visto que nada mais releva na perspectiva do interesse do cedente.
Sublinhe-se, enfim, que o direito do senhorio a resgatar o imóvel e a cessar a actividade aí exercida, direito que os recorrentes ora impugnam, não pode ser visto como algo estranho à "mens legislatoris", pois que, sob outra roupagem embora, foi de novo admitido pelo recente Decreto-Lei n. 257/95, de 30 de Setembro, onde, por via dos arrendamentos de duração limitada efectiva (cfr. nova redacção dada aos artigos 117 e
121), implicitamente se legitimou a cessação, no fim do prazo contratualmente estipulado, da actividade que era desenvolvida pelo arrendatário.
A protecção fundiária foi pois deste modo reiterada no novo diploma legal, através de significativas modificações introduzidas no articulado do R.A.U..
Nestes termos, concedendo-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido, ficando a subsistir a decisão da 1. instância que reconheceu o invocado direito de preferência da autora.
Custas a cargo dos réus, neste Supremo e nas instâncias.
Lisboa, 12 Junho de 1996.
Metello de Nápoles,
Nascimento Costa,
Pereira da Graça,
Almeida e Silva,
Ferreira da Silva.
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 6 de Julho de 1994 16. Juízo Cível 1.
Secção - Lisboa;
II - Acórdão de 29 de Junho de 1995 da Relação de
Lisboa.