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REGIME DE BENS DO CASAMENTO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário
Salvo a existência de norma em contrário, o regime de bens de um casamento é o do tempo em que este foi celebrado.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I- Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Mogadouro, A requereu inventário facultativo por óbito de B (fls. 1/2).
Após várias vicissitudes, a fls. 502 v., foi proferida sentença homologando a partilha constante do mapa de fls. 499 e seguintes e adjudicando os respectivos quinhões aos interessados. Apelou B, abrangendo, no objecto do recurso, o despacho determinativo de partilha (fls. 504).
A fls. 538 e seguintes, a Relação do Porto emitiu Acórdão, revogando a sentença e, bem assim, o despacho determinativo da partilha, mandando elaborar a partilha nos termos preconizados pelo apelante.
Então, recorreu, para este Supremo, A (fls. 545). E, alegando, concluiu (fls. 556 e seguintes):
1) Porque a Constituição não permite distinção entre filhos, tanto legítimos como ilegítimos;
2) Porque a imutabilidade das convenções antenupciais não se indentifica, nem conduz, à imutabilidade do seu regime jurídico, segundo, em relação aos efeitos presentes e futuros, as vicissitudes da lei nova;
3) Porque não constitui facto passado a incomunicabilidade dos bens que resultava do artigo 1235 do Código Civil de 1867 como, em caso idêntico, se decidiu no Assento do S.T.J. de 20 de Dezembro de 1935;
4) Porque, ao contrairem casamento, os cônjuges se sujeitam a todas as disposições genéricas e de interesse geral que, se se modificarem, têm de ser aplicadas.
5) Porque o Código Civil vigente permite, sem as limitar, doações entre cônjuges - salvo nos casos em que o regime seja, imperativamente, o de separação de bens - que eram proibidas ou limitadas pelo artigo 1235 do Código de Seabra;
6) Porque não houve, nem há, intenção do legislador de proteger os filhos de anterior matrimónio mas, sim, o novo cônjuge, ao proibir que o segundo seja contraído sob o regime de comunhão geral;
7) O Acórdão em crise viola, por erro de interpretação e aplicação, os artigos 13 e 36 da Constituição e 12, 1689 n. 1 e 1732 do Código Civil;
8) Pelo que deve ser revogado e mantida a decisão da 1. instância.
B contra-alegou, defendendo a manutenção do Acórdão recorrido (fls. 562 e seguintes).
Foram colhidos os vistos legais (fls. 573/573 v.).
II- A 2. instância assentou no seguinte cicunstancionalismo (fls. 538 v.):
1) B faleceu em 3 de Maio de 1980.
2) Casara, ele, em segundas núpcias dele e primeiras dela, com a cabeça de casal, referida A, em 10 de Maio de 1964, segundo o regime da comunhão geral de bens, ou seja, o regime legal, de bens, então supletivamente em vigor.
3) Deixou, o inventariado: a) Do seu casamento, dois filhos: o apelante, casado no regime de comunhão de adquiridos, com C, e D, solteira, maior; b) Do seu 2. casamento, além da cabeça de casal referida, dois outros filhos: E, casado, no regime de adquiridos, com F, e G, solteiro, maior.
4) Na forma da partilha que indicou, a fls. 478/478 v., propôs, a apelante, inclusive, o seguinte:
"A) Nos bens levados pelo inventariado para o casamento e nos por ele adquiridos a título gratuito na pendência do matrimónio (verbas ns. 5, 17 a 118, 120 e 124 a 156), só metade destes se comunicam, cfr. artigos 1109 n. 4 e 1235 do Código Civil de 1867.
B) Nos bens levados pelo inventariante para o casamento e nos adquiridos a título oneroso, comunicam-se ao outro cônjuge, na totalidade (verbas ns. 1 a 3, 6 a 16 e 121 a 123)."
5) Por seu turno, a cabeça de casal, na forma de partilha que apresentou a fls. 479 e seguintes, propôs, inclusive, a soma de todos os bens, assim excluindo, "in casu", a aplicação dos artigos 1109 n. 4 e 1235 do Código Civil de 1867 referidos, pelo apelante, no seu apontamento sobre a forma de partilha.
6) A fls. 412 v., o M. Juiz de Direito exarou o seguinte despacho determinativo da partilha:
"Organize o mapa da partilha de acordo com a resposta de fls. 479 (a indicada pela cabeça de casal), não sendo de abater o passivo"; e, a fls. 502 v., proferiu sentença homologatória da partilha nos seguintes termos: "homologo por sentença a partilha de fls. 499 a 503, adjudicando aos interessados os respectivos quinhões".
7) Inconformado, interpôs, o herdeiro B, o recurso de apelação, compreendo-se, nesse recurso, o despacho que determinou a partilha.
III- Do enquadramento básico do recurso:
III. 1.- A grande questão deste já vetusto processo está centrada na lei aplicável à forma da partilha, por isso que o 2. casamento do "de cujus" ocorreu em 1964, portanto em plena vigência do Código Civil de 1867, e o seu decesso veio a dar-se em 1980, o que vale dizer quando já vigorava o Código Civil de 1966 com as alterações decorrentes da reforma de 1977.
Esta é, realmente, uma questão de indesmentível interesse prático, que vem doutamente discutida.
Contudo, existe uma normatividade que, a nosso ver, simples e expressamente, ilumina o caminho adequado, que terá escapado aos pensamentos dos interessados. Já lá iremos.
Aliás, vamos procurar, como é próprio de uma peça jurisdicional, focar o que mais directamente releva, tentando dizer, apenas, o que temos por necessário e suficiente para fundamentar a decisão.
III.2. E há dois pontos prévios a esclarecer:
Em primeiro lugar, a problemática em apreço nada tem a ver com filiação dita ilegítima. Em verdade, todos os filhos do "de cujus" resultaram de casamentos e, portanto, não há, aqui, que discutir o regime constitucional sobre o assunto.
Naturalmente, em termos de herança, os filhos têm de ser tratados sem discriminação. O problema nada tem a ver com essa orientação. Decorre, sim, de uma segunda ordem de ideias, que referiremos a seguir.
É que, em segundo lugar - aliás, cronologicamente, até prioritariamente em relação ao ponto que acabamos de referir - há que não confundir regime sucessório com regime matrimonial de bens.
São dois institutos diferentes, um respeitante ao Direito sucessório e, outro, ao Direito familiar.
Quanto ao regime sucessório, que só se conexiona com a abertura da sucessão, coincidente com o facto morte, não há problema: a lei aplicável é a do momento em que a sucessão se abre, "in casu", 3 de Maio de 1980: artigo 2031 do Código Civil vigente.
Só que, não o regime sucessório mas, sim, o acervo hereditário depende do regime legal de bens do casamento que, então, ocorria.
E, este, é o problema que se tem de dilucidar.
IV- Qual o regime legal matrimonial de bens a considerar no caso vertente?
Esta questão faz-nos remontar ao Código Civil de 1867, vigente em 1964, data do referenciado 2. casamento do "de cujus", com filhos do seu 1. casamento.
As normas do Código de 1867 que mais se discutem são as dos respectivos artigos 1235 e 1109 (designadamente n. 4), que se interligam e que Cunha Gonçalves dissecou, no seu "Tratado de Direito Civil" (VII, 203 e seguintes; VI, 352 e seguintes).
Relembramos o respectivo teor:
Artigo 1235:
"O varão ou a mulher, que contrair segundas núpcias, tendo filhos ou outros descendentes sucessíveis do anterior matrimónio, não poderá comunicar com o outro cônjuge, nem por qualquer título doar-lhe mais do que a metade dos bens que tiver ao tempo do casamento ou que venha a adquirir por doação ou herança do seu ascendente ou outros parentes."
Artigo 1109:
"São exceptuados da comunhão:
1...;
2...;
3...;
4. A metade dos bens que possuir o cônjuge que passar a segundas núpcias ou dos que herdar de seus parentes ou receber por doação, tendo de anterior matrimónio filhos ou outros descendentes, nos termos do artigo 1235;
Parágrafo único...".
Na linha de preocupação semelhante, o artigo 1720 n. 1 alínea c) do Código Civil de 1966 veio prescrever que se consideravam, sempre, contraídos sob o regime da separação de bens os casamentos celebrados por quem tivesse filhos "legítimos", ainda que maiores ou emancipados.
E, embora essa norma tenha desaparecido com a reforma emergente do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, a mesma intencionalidade de protecção de filhos de anterior casamento e, assim, da respectiva estirpe, veio a ficar reflectida, mormente, no artigo 1699 n. 2 do actual Código Civil: "Se o casamento for celebrado por quem tenha filhos, ainda que maiores ou emancipados, não poderá ser convencionado o regime da comunhão geral nem estipulada a comunicabilidade dos bens referidos no n. 1 do artigo 1722".
Face a isto, dir-se-ia que o conflito de leis se põe entre a lei do tempo do casamento (2.) e a do tempo do óbito do inventariado.
E, salva a possibilidade de, em casos concretos, o resultado ser o contrário do que seria normal, dir-se-ia manifesto que, apesar de, na sua literalidade, o artigo 1699 n. 2 do Código Civil falar em regime convencionado, a lógica do preceito, atentas as regras da hermenêutica jurídica do artigo 9 do mesmo Código e, designadamente, a circunstância de o regime da comunhão geral de bens ter deixado de ser o supletivo e, portanto, ter passado a pressupor convenção ante-nupcial a partir da vigência das novas regras civilísticas; íamos nós dizendo, a interpretação lógica daquele preceito vai no sentido de não poder haver o regime de comunhão geral de bens (com maior ou menor conteúdo) no caso de 2. casamento de pessoa com filhos, ao contrário do que, apesar de tudo, o Código de Seabra permitia.
Donde reflectir-se que o actual pensamento legislativo está muito longe de pretender beneficiar o 2. cônjuge do bínubo.
V- Continuando:
De todo o modo, o problema continuaria a pôr-se quanto a saber-se qual a lei aplicável, repete-se, não à problemática da sucessão mas, sim, à do regime matrimonial de bens.
E grande parte da discussão tem girado à roda do artigo
12 do Código Civil de 1966, com larga cópia de argumentos, inclusive na perspectiva do Assento do S.T.J. de 20 de Dezembro de 1935 (R.L.J. 68, 321), tirado num contexto legislativo diferente do que ora se questiona.
É aqui que se deve retomar a referência a normatividade que temos de conhecer e que ultrapassa o controverso âmbito do artigo 12 do Código Civil vigente.
Com efeito, a retroactividade ou irrectroactividade de norma civilística não tem decorrência constitucional.
Portanto, uma lei ordinária pode, no âmbito civilístico, prescrever orientação especial ou, até, excepcional relativamente às regras gerais do artigo 12 do Código Civil de 1966, ressalvados os princípios fundamentais.
Por isso e antes de, se necessário, entrarmos na análise da normatividade geral, há que verificar se há regras próprias indicando o caminho prescrito pelo pensamento legislativo, a propósito do instituto dos regimes matrimoniais de bens.
É nesta perspectiva que temos de considerar normatividade especial que parece não ter sido sopesada anteriormente.
E, com isto, tudo o que parece difícil acaba por se evidenciar, cremos, manifestamente claro.
Concretizemos.
VII- Das leis aprovadoras das normas civilísticas:
VII.1. Já o Código Civil de 1867 não foi, ele próprio, uma lei ou algo semelhante. Foi, sim, aprovado pelo artigo 1 da "carta da lei" de 1 de Julho de 1867.
E, na mesma linha, vieram, designadamente, as alterações de 1930, aprovadas pelo artigo 1 do Decreto 19126 de 16 de Dezembro de 1930.
Quanto ao Código Civil vigente, ele foi aprovado pelo artigo 1 do Decreto-Lei 47344, de 25 de Novembro de 1966.
E, especialmente, as alterações de 1977, foram determinadas pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro.
Ao que vem isto?
Muito simplesmente, ao seguinte: diplomas aprovadores das leis civilísticas têm, eles próprios, normas especiais sobre aplicações das leis no tempo que, como tal, preferem às regras gerais.
Ora, quanto ao caso vertente, seguramente, o regime de bens do casamento realizado em 1964 passou, "ipso facto", a depender de, entre outras, normas imperativas dos artigos 1235 e 1109 n. 4 do Código de 1867.
Consequentemente, só assim deixaria de ser se lei subsequente determinasse o contrário.
Nesta linha de pensamento, percorrendo, antes do Código Civil de 1966, o Decreto-Lei 43344, que o aprovou, encontramos uma norma tão significativa quanto determinante, a do artigo 15 (repete-se, não do Código Civil mas, sim, do Decreto-Lei 43344):
"O preceituado nos artigos 1717 a 1752 só é aplicável aos casamentos celebrados até 31 de Maio de 1967 na medida em que for interpretativo do direito vigente, salvo pelo que respeita ao n. 2 do artigo 1739".
Quanto a doações, relevaria o artigo seguinte do mesmo diploma, mas isso não vem, agora, ao caso.
Aquela data de 31 de Maio 1967 não parece por acaso, exactamente porque o Código Civil aprovado por esse mesmo Decreto-Lei 47344 entrou em vigor, genericamente, em 1 de Junho de 1967 (artigo 2 desse Decreto-Lei).
Ora, a matéria dos artigos 1717 a 1752 do Código Civil é, justamente, a de regimes de bens de casamento.
Assim, face àquele artigo 15, o que se constata é que, longe de admitir a aplicabilidade do novo quadro civilístico aos casamentos de pretérito, a nova lei, expressamente, enunciou um princípio lógico assumidamente ressalvando a normatividade integrante dos regimes de bens, como base desse pensamento, salvo situação excepcional indiscutida.
Repare-se que, embora, como já se disse, a matéria, v.g., acerca de doações entre casados seja objecto do artigo 16 n. 1 do Decreto-Lei 47344, aqui a regra é inversa da do aludido artigo 15. Isto leva-nos a ter por claro que é de caso pensado a expressa regra do artigo 15 do Decreto-Lei 47344, cujo alcance lógico, aqui em sintonia com o artigo 9 n. 1 do Código Civil que esse mesmo diploma aprovou, é clara ao evidenciar que os casamentos de pretérito continuariam, basicamente, a reger-se pela normatividade do tempo dos respectivos casamentos.
E, isto, tem todo o sentido do que é justo e adequado porque, embora o estado matrimonial seja um verdadeiro instituto, tem, na sua origem, um essencial acordo de vontades, presuntivamente conforme ao Direito do tempo do acto. É o significado do princípio da confiança e da vontade conjectural.
E, se quisermos ir mais longe, veremos que esta mesma orientação não foi afastada pela reforma de 1977.
Com efeito e não obstante as significativas alterações então assumidas, lá temos o artigo 180 do Decreto-Lei 496/77 dizendo que só a partir de 1 de Abril de 1978 (data do início da vigência das novas regras) não poderiam ser celebrados casamentos sob regime dotal (abolido por esse diploma) - o que vale dizer que os celebrados segundo esse regime, antes da entrada em vigor do Decreto-Lei 496/77, continuariam a observar o regime revogado.
E, acima de tudo, nada foi prescrito em contrário da lógica do artigo 15 do Decreto-Lei 47344.
VI.2. Consequência:
Como assim e pesem, embora, as doutas alegações da recorrente, embora por razões jurídicas básicas diferentes das do Acórdão recorrido, a solução deste tem de ser mantida.
Naturalmente, se poderia acrescentar outro tipo de razões.
Mas, quando não se dá um tiro porque não se tem balas, não importa entrar a discutir qualquer outra razão.
O que seria passível de análise, por razões constitucionais, seria algo como a restrição do artigo 1235 do Código de 1867 à existência de filhos ou outros descendentes "de anterior matrimónio" (artigo 1235 do Código Civil de 1867). Mas esta é problemática que, aqui e agora, não há que discutir porque os anteriores filhos do inventariado até eram de anterior casamento.
VII- Resumindo para concluir:
1. Um segundo casamento, celebrado em 1964, continua a ser, basicamente, objecto de aplicação do regime matrimonial de bens então vigente, designadamente quanto à não comunicação, ao novo cônjuge, de mais de metade de bens que o bínubo tem ou que viesse a adquirir por doação ou herança de seu ascendente ou de outros parentes, nos termos dos artigos 1235 e 1109 n. 4 do Código de Seabra, sem prejuízo do parágrafo único deste artigo, e na linha, designadamente, do artigo 15 do Decreto-Lei 47344.
2. Isto é assim, ainda que o 2. casamento tenha sido dissolvido, por óbito do bínubo, em 1980.
3. Esta normatividade deve ser considerada antes da aplicação do regime sucessório, que é a do tempo do óbito em causa.
4. O pensamento legislativo é, manifestamente, no sentido de, salvo regra em contrário, o regime de bens de um casamento (importando, até, mais o conteúdo do que o nome) ser o do tempo do casamento, isto é, do tempo do acordo de vontades, elemento "sine qua non" do acto matrimonial.
VIII- Donde, concluindo:
Embora pelas razões ditas neste Acórdão, nega-se provimento ao presente recurso.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 12 de Novembro de 1996.
Cardona Ferreira.
Herculano Lima.
Aragão Seia.