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EXAME SANGUÍNEO
INSTITUTO DE MEDICINA LEGAL
INVESTIGAÇÃO OFICIOSA DE PATERNIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Sumário
I - É legítimo ordenar a comparência forçada da mãe do menor, acompanhada deste, no Instituto de Medicina Legal, para a submissão a exames de sangue. II - A restrição à liberdade decorrente dessa comparência forçada bem como a constrição da integridade física que a extracção forçada de sangue constitui, se tal exame é ao sangue é necessário à descoberta da verdade da filiação, e se respeita, na sua realização, a dignidade da pessoa humana, representa o recurso a um meio de prova, proporcionado, não excessivo, sendo, assim, uma restrição permitida pelos ns. 2 e 3 do artigo 18 da Constituição da República Portuguesa.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Na Comarca do Porto, o Digno Magistrado do Ministério
Público propôs contra A a presente acção de investigação oficiosa de paternidade, na qual pediu que o menor B, nascido em 21 de Setembro de 1990 e registado como filho de C e sem menções de paternidade, fosse declarado filho do réu.
Na instrução do processo, o Ministério Público requereu o exame de sangue ao réu, à mãe do menor e a este, mas a mãe do menor faltou, por três vezes, aos exames hematológicos dela e do menor no Instituto de Medicina Legal, sem qualquer justificação, pelo que o Ministério
Público requereu que ela fosse presente sob custódia no dito Instituto, na data designada, para efectivação de tais exames, mas o senhor juiz indeferiu este requerimento com o fundamento de ser ilegal a obrigação de submissão a exames hematológicos.
Desta decisão agravou o Ministério Público, mas a
Relação negou provimento ao recurso.
Deste acórdão voltou a agravar o Ministério Público, o qual, na sua alegação, concluiu assim:
I - O dever de cooperação para a descoberta da verdade que decorre do artigo 519 do Código de Processo Civil implica que a mãe do menor e o próprio menor sejam obrigados a submeter-se a exame de sangue, o qual não implica qualquer atentado do direito à integridade física, ao bom nome ou reputação ou à reserva de vida privada e familiar, embora implique um atentado à liberdade dos examinados, quando coercivamente realizado, o que, porém, é constitucionalmente admissível, nos termos do artigo 18 n. 2 e 27 n. 3 da
C.R.P., e se insere no âmbito das restrições constitucionalmente admissíveis (artigo 40 n. 1 do
Decreto-Lei 387-C/87), para além de que a Comissão
Europeia dos Direitos do Homem tem considerado compatível com as suas disposições o uso de meios coercivos para a realização de exames ao sangue contra a vontade do examinado e no mesmo sentido se tendo pronunciado, por mais de uma vez, a Relação do Porto;
II - no presente caso, não pode sequer sustentar-se que o comportamento da mãe do menor significa iniludivelmente a recusa de realizar o exame; pelo que nem sequer se pode sustentar que determinar de novo a realização do exame é um acto inútil;
III - impõe-se o sancionamento da mãe do menor nos termos do dito artigo 519 e a sua coacção para a realização dos exames pretendidos;
IV - o acórdão recorrido violou o disposto dos artigos
519 do Código de Processo Civil, 40 n. 1 do Decreto-Lei
387-C/87 e 18 n. 2 e 27 n. 3 da Constituição da
República Portuguesa;
V - deve dar-se provimento ao recurso, sancionar-se a mãe do menor pelas faltas e impor-se a realização do exame ao sangue dela e do menor, com a comparência sob custódia, se necessário.
Não houve contra-alegação.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir.
A primeira questão a resolver consiste em saber se a mãe do menor pode ser obrigada a comparecer, sob custódia, acompanhada do filho menor, no Instituto de
Medicina Legal, a fim de aí ambos serem submetidos a exames hematológicos, que foram requeridos nesta acção de investigação oficiosa de paternidade.
A resposta não é fácil.
Segundo o preceituado no artigo 519 n. 1 do Código de
Processo Civil, todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, submetendo-se às inspecções necessárias.
E, de acordo com o disposto no artigo 1801 do Código
Civil, nas acções relativas à filiação, são admitidos como meios de prova os exames de sangue (cfr., para o processo criminal, o artigo 40 n. 1 do Decreto-Lei
387-C/87, de 29 de Dezembro).
O escopo do mencionado artigo 1801, para além de afirmar a confiança na capacidade dos laboratórios nacionais para, através de meios científicos, demonstrar a filiação biológica, foi justamente o de esclarecer que os exames de sangue eram admissíveis como meios de prova sem serem ofensivos da intimidade da vida privada ou familiar ou da dignidade nem gravemente danosos da honra e consideração da pessoa examinada (Guilherme de Oliveira, R.L.J. 128, 183 e seguintes Estabelecimento da Filiação, 16 e 17;
Antunes Varela, R.L.J. 127, 326; acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça Janeiro de 1987, B.M.J. 363, 946).
Isto é assim quando não há recusa ao dito exame de sangue. Mas, se a houver, como acontece no caso sub-judice, importa, então, saber se é possível compelir a mãe do menor, sob custódia, a comparecer no
Instituto de Medicina Legal, acompanhada do menor, a fim de aí serem submetidos aos exames de sangue, mesmo contra a vontade dela, questão esta que é, claro está, diferente da questão da mera admissibilidade de tais exames, ao abrigo do referido artigo 1801.
Pois bem, o n. 2 do mencionado artigo 519 logo refere que a recusa da colaboração devida para a descoberta da verdade para além da condenação em multa, não prejudica os meios coercivos que forem possíveis.
Do ponto de vista processual, são, pois, legítimos os meios coercivos possíveis, mas tudo está em saber se, do ponto de vista constitucional, entre esses meios coercivos se inclui a obrigação de comparência sob-custódia, no dito Instituto, para a realização dos exames de sangue, da mãe e de seu filho menor, contra a vontade daquela.
A solução do problema vai depender da resposta que se der à questão seguinte: a comparência sob custódia e a submissão forçada aos exames, cujo primeiro acto implica necessariamente uma picada para extrair sangue, violam o direito à liberdade (artigo 27 n. 1 da Constituição), o direito à integridade pessoal, moral e física (artigo 25 n. 1 da Constituição) e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da vida privada e familiar (artigo 26 n. 1 da Constituição)?
Os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados, pois que a própria Constituição admite a sua restrição, como decorre do preceituado nos ns. 2 e
3 do artigo 18. Posto é que tais restrições visem salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, não diminuam a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais e respeitem o princípio da proporcionalidade ou da proibição da escusa na sua tripla vertente:
- a da adequação (é necessário que a restrição seja apropriada à prossecução dos fins invocados pela lei);
- a da necessidade (são de evitar as restrições não necessárias à obtenção dos fins de protecção visados pela norma legal, pelo que lhe só serão exigíveis ou necessários quando não é possível escolher outros menos coactivos);
- e a da proporcionalidade em sentido estrito (as restrições não devem ser excessivas, mas sim na justa medida, em confronto com os fins prosseguidos (J.J.
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, edição de
1991, 613 e seguintes e 628 e seguintes; Jorge Miranda,
Manual de Direito Constitucional, Volume IV, 2. edição,
304 a 307; Cardoso da Costa, B.M.J. 396, 16; José da
Costa Nabais, B.M.J. 400, 24; votos de vencido dos Conselheiros Fernando Alves Correia e Messias Bento no acórdão do Tribunal Constitucional de 7 de Julho de
1994, B.M.J. 439, 69).
Aliás, para além, dos casos em que os preceitos constitucionais autorizam tais restrições aos direitos fundamentais importa ainda salientar que estes direitos fundamentais têm limites imanentes, o que significa que eles não cobrem todas as hipóteses possíveis da sua realização. Tendo que conviver e compaginar-se com outros direitos, a Constituição não pode ter querido que um direito seja exercido de forma a violar o conteúdo essencial de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (Jorge Miranda, Ob.
Cit., 300 e 301, J.J. Gomes Canotilho, Ob. Cit., 616 e seguintes; José da Costa Nabais, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, LXV, 81 e 82).
Por sua vez, o artigo 29 da Declaração Universal dos
Direitos do Homem - esta D.U.D.H. foi elevada pelo artigo 16 n. 2 da Constituição a padrão interpretativo e integrador dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais - preceitua o seguinte:
No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e o fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem estar numa sociedade democrática.
Assim, também a D.U.D.H. admite restrições aos direitos fundamentais, dentro do apontado condicionalismo.
E o mesmo faz a Convenção Europeia do Direito do Homem
- esta Convenção Europeia foi aprovada pela Lei 65/78, * de 13 de Outubro - ao menos quanto à privação da liberdade, já que, depois de ter afirmado que todos têm direito à liberdade (artigo 5 n. 1), estipula que ninguém pode ser dela privado salvo, além de noutros casos, se for preso ou detido legalmente, por desobediência a uma decisão tomada, em conformidade com a lei, por um tribunal, ou para garantir o cumprimento de uma obrigação prescrita por lei (artigo 5 n. 1 da alínea b)).
Ora, a paternidade é um valor social iminente (artigo
68 n. 2 da Constituição) e o direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade decorre, como um seu corolário, do próprio princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1 da Constituição), do direito à identidade pessoal (artigo 26 n. 1 da Constituição) e do direito à integridade moral (artigo 25 n. 1 da Constituição). Isto é, extrai-se da Constituição um verdadeiro direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da paternidade (Guilherme de Oliveira,
Impugnação de Paternidade, 66, e Estabelecimento da
Filiação, 40; Antunes Varela, R.L.J. 128, 99 e seguintes; Cardoso da Costa, B.M.J. 396, 14 e 15; acórdão do Tribunal Constitucional de 25 de Setembro de
1991, B.M.J. 409, 314, no qual ainda se cita, no mesmo sentido, o acórdão n. 98/88, de 22 de Agosto de 1988).
Na solução do problema, não pode, pois, olvidar-se que este direito fundamental existe.
No tocante ao princípio da proibição da privação da liberdade, total ou parcial, estabelecido no artigo 27 ns. 1 e 2 da Constituição, o n. 3 alínea e) deste artigo exceptua deste princípio, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, a detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante a autoridade judicial competente.
E esta excepção não pode deixar de cobrir o caso de a comparência ser no Instituto de Medicina Legal, dado existir a mesma razão de ser que há na comparência perante a autoridade judicial competente.
Por isso, concluimos que a comparência, sob custódia, da mãe do menor, acompanhada deste, no Instituto de
Medicina Legal, para os exames de sangue, mesmo contra a vontade da mãe, não viola o direito à liberdade, suposta, claro está, a legitimidade da submissão deles a tais exames, pois que a imposição de tal conduta pelo juiz cabe na parte final da citada alínea e) do n. 3 do artigo 27 e constitui uma excepção ao princípio da proibição da privação da liberdade acima enunciado.
De resto, a não se entender assim, sempre estariamos não perante um caso de privação, total ou parcial, da liberdade mas apenas perante uma medida restritiva dessa liberdade, dado ela não atingir um grau ou uma intensidade de constrição à liberdade que possa qualificar-se como uma privação destes, já que não é atingido o conteúdo essencial do preceito constitucional que consagra o direito à liberdade, e, por outro lado, se mostra respeitado o princípio da proporcionalidade, por a imposição da dita conduta contra a vontade da mãe do menor se apresentar como um acto adequado, necessário e não excessivo (cfr. os falados votos de vencido e ainda o do Conselheiro Vitor
Nunes de Almeida no citado acórdão, os quais, realça-se, até versarem sobre um caso de privação da liberdade mais grave do que aquele que nos ocupa). Na verdade, quando o autor da acção de investigação oficiosa de paternidade não logra fazer a prova da exclusividade das relações sexuais entre o investigado e a mãe do menor, os ditos exames de sangue são, para além de adequados e não excessivos, necessários, já que deles pode resultar, no aspecto negativo, a exclusão da paternidade com toda a segurança, e, no aspecto positivo, uma larguíssima probabilidade, bem mais convincente da decorrente da prova testemunhal, da pretendida paternidade.
Mas, sendo assim, no tocante ao direito à integridade pessoal, sobretudo física, claro está que ele sofre uma constrição pela extracção forçada do sangue a examinar, mas ela é tão diminuta, epidérmica e insignificante que bem se pode dizer estar-se longe de constituir violação do direito, ao menos em termos de atingir o seu conteúdo essencial: se o exame de sangue é necessário à descoberta da verdade da filiação e se se respeita, na sua realização, a dignidade da pessoa humana, não sofre dúvida que se está perante o recurso a um meio de prova proporcionado, não excessivo, e, assim, perante uma restrição permitida pelos referidos ns. 2 e 3 do artigo
18.
Quanto à eventual violação do direito ao bom nome e reputação e do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, havemos de convir que não são atingidos, pois se não vê qualquer imputação falsa de actos que possam diminuir as pessoas na sua consideração social, honra ou dignidade, como não se vê que seja afectado o seu espaço interior e familiar, a sua esfera pessoal íntima (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional, de 1 de Abril de 1992, B.M.J. 416, 145, e de 20 de Junho de 1995, Diário da República, II série, de 2 de Novembro de 1995).
No fundo, está-se perante um conflito de direitos fundamentais que importa solucionar.
Ora, muito embora não exista um modelo de solução, um critério geral e abstracto para a resolução de um conflito de direitos (por exemplo, com base numa ordem de valores ou na distinção entre direitos sujeitos a leis restritivas e direitos não sujeitos a essas leis), a via indicada para decidir o conflito de direitos será a que os harmonize ou, se necessário, dê prevalência a um deles, conjugado o princípio da proporcionalidade com os ditames da necessidade e de adequação, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, e tendo em conta os valores ínsitos nos textos legais, eventualmente reveladores de uma hierarquia - a Constituição parece atribuir maior consistência, densidade e protecção jurídica a certos direitos fundamentais - aplicando critérios metódicos abstractos que orientem a tarefa de formação e/ou harmonização concretas, tais como "o princípio da concordância prática, "a ideia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes" (J.J. Gomes Canotilho, Ob.
Cit., 538, 660, 661, e R.L.J. 125, 293 e seguintes;
Jorge Miranda, Ob. Cit., 145, 146, 301; Cardoso da
Costa, loc. cit.; Figueiredo Dias, R.L.J. 115, 102;
Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, 312 e 535 e seguintes; J.L. Morais Rocha, Lei de Imprensa,
40, 51; acórdão do Tribunal Constitucional de 18 de
Julho de 1984, B.M.J. 352, 188; acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 1988, B.M.J.
374, 218; Parecer da Proc. Geral da República, de 6 de
Fevereiro de 1985, B.M.J. 349, 190).
A lei ordinária estabeleceu, de resto, um regime para a colisão de direitos no artigo 335 do Código Civil, o qual dispõe:
1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.
Pois bem, a esta luz, e mau grado os direitos em conflito terem igual categoria constitucional, a realização eficaz do direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da paternidade só é possível fazendo comparecer, sob custódia, a mãe do menor cuja paternidade se investiga, acompanhada dele, para submissão forçada aos exames de sangue. É que, como já se salientou, um tal direito pode ser atingido em toda a linha da sua protecção jurídica, em toda a sua consistência e densidade, se não se conseguir provar a exclusividade das relações sexuais entre o investigado e a mãe do menor; ao invés, aqueloutros direitos fundamentais com ele colidentes só são tocados ao de leve, com pequenas dentadas, superficiais, de todo insignificantes, que não os atingem na sua consistência jurídica e muito menos no seu núcleo essencial. Trata-se de restrições a esses direitos, perfeitamente legitimadas pela própria Constituição
(artigo 18 ns. 2 e 3, 27 n. 3 alínea e)), dado que são estabelecidas para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e se limitam ao necessário para essa protecção (J.J. Gomes
Canotilho, Vital Moreira, C.R.P. Anotada, 3. edição,
184 e 185).
Assim, não podemos deixar de responder afirmativamente
à questão posta, tanto mais que, atentos os progressos da ciência no campo em causa, a realização dos exames de sangue, nas acções de filiação, é, hoje em dia, um meio seguro de chegar à verdade da filiação, e o legislador não está propriamente interessado em que todos tenham pai mas sim e acima de tudo em que todos tenham como pai aquele que, de facto, os gerou.
A favor da preconizada orientação pode ainda argumentar-se com o que se passa em casos idênticos ou paralelos, argumento este não despiciendo, do ponto de vista da unidade do sistema jurídico (cfr. artigo 9 n.
1 do Código Civil).
Em processo civil, é o caso do n. 2 do artigo 629 do
Código de Processo Civil, segundo o qual o juiz pode ordenar que a testemunha que sem justificação tenha faltado compareça sob custódia.
Também aqui há uma constrição do direito à liberdade em nome do interesse público de alto valor da ordem e da paz social estritamente vinculado à pacífica e justa composição dos litígios entre particulares (Manuel
Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, edição de 1963, 14).
Em processo criminal, é permitido conduzir forçadamente as pessoas ao posto policial mais próximo e compeli-las a aí permanecerem pelo tempo estritamente necessário à sua identificação, em caso algum superior a 6 horas
(artigo 250 n. 3 do Código de Processo Penal), como pode a autoridade judiciária competente compelir alguém que pretenda eximir-se ou obstar a qualquer exame devido (artigo 172 do Código de Processo Penal) como ainda as autoridades policiais podem obrigar o condutor do veículo a submeter-se ao teste de detecção de
álcool, através da expiração de ar (artigo 6 n. 1 do
Decreto-Lei 124/90, de 14 de Abril).
Também, nestes casos, há restrições ao direito à liberdade e ao direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, perfeitamente justificáveis do ponto de vista constitucional, para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e com vista à descoberta da verdade e à prevenção e repressão dos crimes, fins estes visados pelo processo penal (acórdão do Tribunal Constitucional de 20 de Junho de 1995, Diário da República, II Série, de 2 de Novembro de 1995).
Resta dizer que os ns. 1 e 3 do citado artigo 519 não se opõem à preconizada orientação.
Como é óbvio, se é legítimo ordenar a comparência forçada da mãe do menor, acompanhada do filho menor, no dito Instituto, para a sua submissão aos exames de sangue, clara é a legalidade dos despachos a que a mãe do menor desobedeceu sem justificar as faltas, por que, embora não sendo parte mas terceiro na acção, tem de ser condenada em multa, ao abrigo do disposto no n. 2 do citado artigo 519, a qual julgamos dever ir até 2
UCS, nos termos da alínea b) do artigo 102 do C.C.
Judiciais que foi aprovado pelo Decreto-Lei 224-A/96,
2. Sup. de 26 de Novembro de 1996.
Por tudo o exposto, dando-se provimento ao recurso, condena-se a C em 2 UCS e determina-se que o senhor juiz da 1. instância profira despacho a ordenar que esta C compareça, sob custódia, se necessário, acompanhada de seu filho menor B, no
Instituto de Medicina Legal do Porto, a fim de ambos aí se submeterem, mesmo contra a sua vontade, a exames hematológicos.
Não são devidas custas.
Lisboa, 11 de Março de 1992.
Fernando Fabião;
César Marques;
Machado Soares;
Martins da Costa (Vencido, nos termos da declaração que junto);
Pais de Sousa (Vencido, nos mesmos termos da declaração anterior).
Declaração de voto de vencido, no processo n. 901/96
Salvo o devido respeito e sem prejuízo do reconhecimento da douta argumentação desenvolvida no acórdão, entendo que seria de negar provimento ao recurso, conforme sustentei já em acórdão deste tribunal, de 4 de Outubro de 1994, no processo n.
85563, de que fui relator, e cujos fundamentos agora se repetem, em resumo.
Pelo artigo 519 n. 2 do Código de Processo Civil (na redacção aqui aplicável, anterior ao Decreto-Lei n.
329-A/95, de 12 de Dezembro), a recusa ilegítima da colaboração devida para a descoberta da verdade é suprível pelo uso "dos meios coercitivos que forem possíveis".
A realização do exame hematológico é, efectivamente, um acto necessário à descoberta da verdade e a recusa de submissão a esse exame deve ter-se como ilegítima por se não tratar de acto vexatório, humilhante ou causador de grave dano (n. 3 do citado artigo 519).
Dessa ilegitimidade da recusa não decorre, porém, a possibilidade de o recusante ser coagido à realização do exame.
Aqueles "meios coercitivos... possíveis", além de idóneos ou adequados ao fim visado pela determinação judicial, devem ser lícitos, no sentido de "admitidos pela ordem jurídica", não podendo alguém ser forçado
"por qualquer espécie de violência física... a submeter-se a inspecções..." (A. Reis, no Código
Anotado, III, página 325).
Não vale argumentar-se, em sentido contrário, com o disposto no artigo 27 n. 3 alínea e) da Constituição, que permite a "detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal...", pois o citado n. 2 do artigo 519 não sanciona a recusa ao exame como desobediência e aquela detenção terá de subordinar-se às "condições que a lei determinar", não estando prevista para essa recusa.
Tais meios coercitivos serão assim apenas os admitidos por lei, como é o caso, entre outros, da apreensão de documentos e da comparência de testemunha "sob custódia" (artigos 529 e 629 n. 2 do citado Código).
Acresce que a extracção de sangue numa pessoa, por menos doloroso ou incómodo que seja esse acto, não deixa de ser uma "ofensa no corpo" (artigo 143 do
Código Penal) ou violação do direito à integridade física, em princípio proibida (artigo 25 n. 1 da Constituição), e cuja ilicitude só é afastada por motivo de a realização do exame, dependente dessa extracção de sangue, ser permitida pela "ordem jurídica" (artigo 31 do citado Código Penal).
Ou seja, o exame pode licitamente ser ordenado mas já o emprego da força para submeter a pessoa à sua realização traduz directa violação daquele direito à integridade física e, não estando prevista na lei a sua admissibilidade, esse uso da força reconduzir-se-ia, em si mesmo, à prática de um acto ilícito (cfr. Guilherme de Oliveira, no Estabelecimento da Filiação, página 19, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição...
Anotado, 1. volume, páginas 193 e 201).
No mesmo sentido concorre o disposto no citado artigo
519 n. 3, alínea a), na redacção actual, onde se prevê a legitimidade da recusa "se a obediência importar violação da integridade física...", não se distinguindo aí entre a maior ou menor gravidade dessa violação.
Deste modo, em acção de investigação da paternidade, não pode alguém ser coagido, por meio de violência física, designadamente "sob custódia", à realização de exame hematológico.
José Martins da Costa.