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RUÍDO
COLISÃO DE DIREITOS
RESPONSABILIDADE CIVIL POR FACTO DE OUTREM
FACTO ILÍCITO DIREITOS FUNDAMENTAIS
DIREITO DE PERSONALIDADE
Sumário
t - O Decreto-Lei 251/87, de 24 de Junho (Regulamento Geral sobre o Ruído) não se destinou, nem se destina a resolver conflitos que possam surgir entre o direito de propriedade do prédio (estabelecimento) onde se desenvolva actividade que produza ruído e os direitos à integridade física e moral das pessoas, à saúde, ao ambiente e à qualidade de vida. II - Em caso de conflito entre os "direitos, liberdades e garantias", não sujeitos a reserva da lei restritiva, com outros direitos fundamentais (direitos económicos, sociais e culturais, v.g.) devem prevalecer os primeiros. III - No campo da lei ordinária, há um texto atinente à colisão de direitos - o artigo 335 do Código Civil -, que, apesar de anterior à Constituição de 1976, se mantém em vigor, tendo em vista o disposto no artigo 293 desta Constituição. IV - Na interpretação do artigo 335 do Código Civil a propósito da colisão entre um direito de personalidade e um outro direito que não de personalidade, devem prevalecer, em princípio, os bens ou valores pessoais aos bens ou valores patrimoniais. V - Para que exista responsabilidade civil por facto ilícito é necessário que se verifiquem, além do mais, os pressupostos relativos à ilicitude e à culpa.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
1. No Tribunal Judicial de Lamego, A,B, C, D, E, F e mulher, G, H, I e mulher, J, L e mulher, M intentaram a presente acção declarativa com processo ordinário contra E.T.D.S. - Sociedade de Empreendimentos Turísticos do Douro Sul, Limitada, pedindo que esta seja condenada: a) a suspender durante a noite e a partir das 23 horas toda a actividade da sua discoteca que seja causadora de ruídos e factor de perturbação do silêncio e sossego dos Autores e seus familiares; b) a indemnizar os Autores pelos prejuízos que lhe tem causado e dos que venha a causar durante a pendência do processo, os quais se liquidarão em execução de sentença.
Para tal alegaram, em suma, o ruído causado pelo funcionamento da discoteca que a Ré explora bem como pelos frequentadores da mesma, o qual lesa seriamente o sossego e a tranquilidade dos Autores e prejudicando o seu descanso, causando-lhe insónias, dores de cabeça, irritabilidade e enjoos, fazendo com que necessitem alguns deles de socorro médico.
A Ré contestou.
Realizada a audiência e proferida foi sentença no sentido de julgar a acção parcialmente procedente, com condenação da Ré:
- a suspender durante a noite, a partir das 24 horas, toda a actividade de discoteca ou bar/sala de animação que seja causadora de ruídos e factor de perturbação do silêncio e sossego dos Autores e seus familiares.
- a pagar aos Autores L e mulher, F e mulher, e E, uma indemnização a liquidar em execução de sentença, pelos prejuízos a eles causados antes da propositura da acção e na pendência da mesma, decorrentes do funcionamento do estabelecimento da Ré.
2. A Ré apelou. A Relação do Porto, por acórdão de 16 de Dezembro de 1993, anulou a decisão da matéria de facto e, consequentemente, a sentença, devendo aditar-se ao questionário matéria de facto contida nos artigos 23 a 27 da contestação.
3. Os A.A. agravaram para o Supremo Tribunal que acordou não tomar conhecimento do recurso.
4. Baixaram os autos ao Tribunal de Lamego onde, oportunamente, voltou a realizar audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença a julgar parcialmente procedente a acção e, em consequência, foi a Ré condenada a suspender, durante a noite, a partir das 24 horas, toda a actividade de discoteca que seja causadora de ruídos e factor de perturbação do silêncio e sossego dos Autores L e mulher, F e mulher e E; quanto ao mais, foi julgada a acção improcedente e absolvida a Ré do restante pedido.
5. Autores e Ré apelação. A Relação do Porto, por acórdão de 12 de Março de 1996, na procedência do recurso dos A.A. e improcedência do recurso da Ré, revogou a sentença na parte recorrida, substituindo-a por outra em que se condena a Ré a pagar aos Autores
L e mulher, a F e mulher e, ainda, a E, as indemnizações que se vierem a liquidar em execução de sentença, mantendo-se no demais o decidido na 1. instância.
6. A Ré pede revista, formulando as seguintes conclusões:
1) o acórdão recorrido (ao manter inalterada nessa parte - suspensão de funcionamento - a decisão da 1. instância) viola o Decreto-Lei n. 251/87 de 24 de Junho, nomeadamente o seu artigo 20 - 1 alínea a) e que constitui lei mais perfeita, actual e especializada que quaisquer disposições sobre a matéria contida no Código Civil.
2) Por isso deve a Ré, ora recorrente, ser absolvida do pedido na parte em que se decreta a suspensão de funcionamento durante a noite, a partir das 24 horas.
3) Deve também revogar-se o acórdão recorrido na parte em que condena a recorrente a pagar a alguns dos
Autores indemnizações a liquidar em execução de sentença, dado que no caso vertente faltam pressupostos
(ilicitude e culpa) à obrigação de indemnizar, o que fez com o acórdão da Relação seja violador do artigo
483 do Código Civil, o que conduzirá à absolvição da Ré quanto a este pedido.
Os recorridos contra-alegaram.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
Elementos a tomar em conta:
1) No dia 31 de Dezembro de 1989, na cave do prédio sito na Avenida Doutor Alfredo de Sousa n. 43, abriu ao público um bar/sala de animação, de nome "Nenúfar", propriedade da Ré.
2) O horário de funcionamento do estabelecimento referido é, às Quartas, Sextas e Sábados, das 23 às 2 horas e aos Domingos, das 15 às 19 horas.
3) A Ré, apesar do referido horário, frequentemente encerra para além das 2 horas.
4) Os sons produzidos no bar/sala de animação propagam-se para fora da cave onde aquela funciona.
5) O barulho e a trepidação provocados pela música do estabelecimento da Ré tem vindo a prejudicar o descanso e o sossego dos Autores L e mulher, F e mulher e E.
6) Por isso, estes Autores têm mais dificuldade em adormecer antes do fecho do estabelecimento da Ré.
7) Tal situação provoca aos Autores referidos insónias, dores de cabeça e irritabilidade.
8) Esse facto tem levado a Autora G a recorrer a tratamento médico contra as insónias e estados de nervosismo.
9) A Ré requereu ao Governo Civil uma prova de som antes de 6 de Dezembro de 1990.
10) Na sequência de tal requerimento, três técnicos da especialidade nomeados pelo Governo Civil de Viseu deslocaram-se a Lamego nos dias 6 de Dezembro de 1990 e
7 de Dezembro de 1990, e procederam às medições.
11) As medições foram efectuadas no quarto do Autor
Carlos Dinis e na presença de outros A.A.
12) O resultado obtido foi de 8,8 decibéis (A).
13) Com o amplificador na potência máxima atingiu-se como máximo de medição 27,3 decibéis (A) do nível sonoro de ruído perturbador.
III
Questões a apreciar no presente recurso.
A apreciação e a decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, passa pela análise de duas questões: a primeira, se a Ré deve ser absolvida do pedido na parte em que se decreta a suspensão do funcionamento da discoteca durante a noite, a partir das 24 horas; a segunda, se a Ré não tem obrigação de indemnizar os Autores/recorridos.
Abordemos tais questões.
IV
Se a Ré deve ser absolvida do pedido na parte em que se decreta a suspensão do funcionamento da discoteca durante a noite, a partir das 24 horas.
1. Posição da Relação e da Ré/recorrente.
1a) A Relação do Porto decidiu que pode perfeitamente o
Tribunal decretar, com base no disposto no artigo 70 do
Código Civil, todas as providências para que os direitos de personalidade não sejam afectados e sejam respeitados - ordenando inclusive a suspensão a partir de certas horas, das actividades que sejam susceptíveis de perturbar o sossego, o silêncio e o bem estar e a saúde das pessoas, como no caso dos presentes autos.
1b) Por sua vez, a Ré recorrente sustenta que, por um lado, o ruído ou som que sai do Nenúfar e que incomoda os Autores é de valor não superior a 8,8 dB (A), valor este que contêm-se, sem sombra de dúvida, abaixo dos limites expressos no Decreto-Lei n. 251/87, de 24 de
Junho - Regulamento Geral sobre o Ruído.
Por outro lado, é o próprio regulamento que permite o ruído até certos limites, de sorte que, até ao limite imposto por lei, impõe um certo sacrifício dos direitos de personalidade.
Que dizer?
2. Antes de mais, temos de dizer que o Decreto-Lei n. 251/87, de 24 de Junho (Regulamento Geral sobre o Ruído) destinou-se, conforme o seu preâmbulo, a expressar, completar e actualizar de forma integrada matéria até agora repartida em legislação diversa, estabelecendo o conjunto de normas em que se apoia um quadro legal adequado a uma política de prevenção e combate ao ruído de um ambiente menos traumatizante e mais sadio.
Não se destinou, nem se destina, a resolver conflitos que possam surgir entre o direito de propriedade do prédio onde se desenvolva actividade comercial ou industrial que produza ruído (caso dos locais destinados a espectáculos, diversões ou quaisquer actividades perigosas) e os direitos à integridade física e moral das pessoas, à saúde e ao ambiente e qualidade de vida.
São todos direitos fundamentais da nossa Constituição
(cf. artigos 25, 62, 64 e 66), de sorte que os mesmos terão de ser resolvidos à sombra da Constituição e ainda à sombra das normas ordinárias que não colidam com os princípios fundamentais da Constituição.
3. Fechado este parêntesis, no conflito entre os dois direitos fundamentais já explicitados, temos de ter presente os ensinamentos de Gomes Canotilho e Vital
Moreira quando escrevem:
"Para a solução entre dois "direitos liberdades e garantias" há que verificar se os mesmos estão sujeitos a reserva da lei restritiva (artigo 18 n. 2 da Constituição da República Portuguesa).
"Há dois tipos de leis restritivas" nuns, é a própria
Lei Fundamental que prevê directamente certa e determinada restrição cometendo à lei a sua concretização e delimitação (é o caso por exemplo, dos artigos 27 - n. 3, 34 - ns. 2 e 4) noutros, a Constituição limita-se a admitir restrições não especificadas (é o caso, por exemplo, dos artigos 35 - n. 2, 47 - n. 1, 49 - n. 1 e 270 - n. 1) - Constituição da República Portuguesa Anotada, 3. edição, página
151).
E a completarem a sua linha de pensamento, escrevem:
"As soluções concretas e os instrumentos metódicos a utilizar dependem essencialmente da natureza dos direitos e bens em conflito, pois
- "Se o conflito se estabelece entre "direitos, liberdades e garantias" sujeitos a reserva da lei restritiva, o legislador pode fazer ingerências e limitar o exercício dos dois direitos na medida necessária, estabelecendo, de forma proporcionada, a concordância prática entre ambos".
- "Em caso de conflito entre "direitos, liberdades e garantias" não sujeitos a reserva da lei restritiva com outros direitos fundamentais (exemplo direitos económicos, sociais e culturais) ou outros bens constitucionalmente postergados (defesa, saúde) devem prevalecer aqueles.
- Se o conflito surgir entre "direitos, liberdades e garantias" sujeitos a reserva de lei restritiva e outros bens ou direitos, há ainda persistência dos primeiros" (Fundamentos da Constituição, 1991, páginas
136 e 137).
4. No campo da lei ordinária, há um texto atinente à colisão de direitos, o artigo 335 do Código Civil que, apesar de anterior à Constituição de 76, se mantém tem em vista o disposto no artigo 293 da mesma Constituição.
Na interpretação do artigo 335, a propósito da colisão ocorrer entre um direito de personalidade e um outro que não de personalidade, Capelo de Sousa escreveu:
"Importa, por isso, ter presente a concepção da
Sociedade Juridicamente regulada subjacente ao nosso sistema jurídico, e nomeadamente os pesos específicos neste atribuídos aos bens ou valores pessoais e aos bens ou valores patrimoniais, a retirar igualmente na unidade do sistema jurídico, do artigo 335 n. 2 do
Código Civil, da contraposição das molduras penais por ofensas de valores pessoais com as tuteladoras de valores patrimoniais e do sentido e alcance das restrições constitucionais dos direitos fundamentais e patrimoniais" - O Direito Geral de Personalidade, páginas 539 e 540).
5. Perante as considerações expostas e a matéria fáctica fixada pela Relação, habilitados estamos para precisar que no caso "sub judice" - conflito entre direitos e integridade física (saúde, repouso, sono) e ao exercício de uma actividade comercial que produza som, há que dar prevalência ao primeiro.
E a prevalência do direito à integridade física significa que os seus titulares (os autores/recorridos) têm direito à tutela jurisdicional que lhes foi concedida no acórdão recorrido: condenação da Ré a suspender, durante a noite, a partir das 24 horas, toda a actividade da discoteca que seja causadora de ruídos e factor de perturbação do silêncio e sossego dos Autores/recorridos.
V
Se a Ré não tem obrigação de indemnizar os autores/ /recorridos.
1. Posição da Relação e da Ré/recorrente.
1a) A Relação do Porto decidiu encontrarem-se reunidos os necessários pressupostos para atribuição de indemnização aos lesados, a liquidar em execução de sentença, pois que se encontram reunidos os pressupostos da responsabilidade civil, definida no artigo 483 do Código Civil.
1b) Por sua vez, a Ré/recorrente sustenta não haver lugar à obrigação de indemnizar por faltarem os pressupostos ilicitude e culpa na responsabilidade civil por factos ilícitos e não ocorrer responsabilidade por factos ilícitos.
De que lado se encontra a razão?
2. Antes de mais, cumpre salientar que os Autores formularam o seu pedido de indemnização com base na responsabilidade por facto ilícito - artigo 483 do
Código Civil, conforme flui do artigo 29 da petição inicial, de sorte que apresenta-se como "questão nova" e alteração da causa de pedir: o pedido de indemnização com base na responsabilidade civil por actos lícitos.
3. Fechado este parêntesis, cumpre-nos apreciar os dois pressupostos - ilicitude e culpa - da responsabilidade civil por facto ilícito (artigo 483 do Código Civil) com base na qual os Autores formularam o seu pedido de indemnização a liquidar em execução de sentença.
4. O n. 1 do artigo 70 do Código Civil garante a protecção de todos os indivíduos contra "qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa" à sua personalidade física ou moral. O mesmo é dizer que são sancionáveis todos os factos voluntários ilícitos.
Em primeiro lugar, há-de tratar-se de factos que procedem da vontade do lesante, o que não significa, necessariamente, que tenha de ser um facto representado e querido por ele, pois, conforme salienta Antunes
Varela, "há, pelo contrário, inúmeros casos (a começar pela chamada negligência inconsciente) em que não existe semelhante representação mental, e, todavia, ninguém contesta a obrigação de indemnizar, os actos danosos praticados por distracção ou por falta de auto-domínio normal não deixam de constituir o agente em responsabilidade".
E acrescenta,
"... facto voluntário significa, apenas... facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade.
"Para fundamentar a responsabilidade civil basta a possibilidade de controlar o acto ou omissão; não é necessária uma conduta predeterminada, uma acção ou omissão orientada para certo fim (uma conduta finalista). Fora do domínio da responsabilidade civil ficam apenas os danos causados por causa de força maior ou pela actuação irresistível de circunstâncias fortuitas..." (Das Obrigações em Geral, 6. edição, páginas 498 e 499).
"Em segundo lugar, "há-de tal facto voluntário, revestir um carácter de ilicitude, de contrariedade por parte do lesante com os comandos que lhe são impostos pela ordem jurídica, ou seja, de infracção de deveres jurídicos, quer de abstenção, quer em determinados, de acção. Violando o seu dever de abstenção face à personalidade física ou moral de outrém, o lesante pratica um facto positivo ou uma acção ilícita.
Desrespeitando o seu dever de acção para com a mesma personalidade,... o lesante pratica um facto negativo ou uma omissão ilícita. No direito civil, a que nos atemos, mormente no campo das relações de personalidade, o dever jurídico emerge quer da necessidade de respeitar um contraposto direito de personalidade alheio como da obrigatoriedade de cumprimento de lei que proteja interesses alheios de personalidade, embora não outorgue direitos subjectivos a tais interessados" (Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, 1995, página 435).
5. O Código Civil consagrou expressamente a tese da culpa em abstracto quanto à responsabilidade extracontratual, mantendo-se nesta parte fiel à orientação anterior: a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, diz o artigo 487 n. 2, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, ou seja, apreciada segundo a diligência de homem normal, medianamente sagaz, prudente, avisado e cuidadoso.
"No âmbito da mera culpa cabem, em primeiro lugar, os casos (excluídos do conceito de dolo) em que o Autor prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar (a culpa consciente).
Ao lado destes, conforme ensina Antunes Varela, "há as numerosíssimas situações da vida corrente, em que o agente não chega sequer, por imprudência, descuido, imperícia ou ineptidão, a conceber a possibilidade de o facto se verificar, podendo e devendo prevê-la e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida.
"Fala-se nestes casos em culpa inconsciente" - Das
Obrigações Em Geral, volume I, 6. edição, página 542.
6. Face às considerações expostas, em conjugação com a matéria fáctica fixada pela Relação, temos de precisar que no caso "sub judice" existe obrigação de indemnizar os Autores/recorridos por parte da Ré/recorrente, na medida em que se verificam os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito - artigo 483 do Código Civil -, nomeadamente, a ilicitude e a culpa, postos em crise no presente recurso.
No que respeita ao facto voluntário ilícito temos:
- Por um lado, a Ré tomou conhecimento que com o ruído e som emitidos do seu bar/sala de animação, de nome
"Nenúfar" incomodava os Autores/recorridos, causava-lhes danos nas suas personalidades, de sorte que ao tomar conhecimento desse facto deveria ter tomado providências para que os Autores jamais viessem a ser incomodados pelo som e ruídos emitidos do seu bar-discoteca.
- Por outro lado, a conduta da Ré traduzida na violação do seu dever de abstenção face à personalidade dos Autores/recorridos, traduziu-se numa acção ilícita: ofensas na integridade física dos mesmos traduzidas em insónias, dores de cabeça e irritabilidade, estados de nervosismo.
- No que respeita ao pressuposto culpa temos que um homem médio, medianamente sagaz, prudente, avisado e cuidadoso, tomaria as precauções, cuidados e diligências necessárias a evitar a violação dos direitos de propriedade dos Autores/recorridos.
- Verificados os pressupostos postos em crise no presente recurso, há que concluir, como se conclui, pela obrigação que a Ré tem de indemnizar os Autores/recorridos, indemnização esta a liquidar em execução de sentença, em consonância com o pedido formulado na petição inicial e não alterado.
VI
Conclusão:
Do exposto, poderá extrair-se que:
1) o Decreto-Lei n. 251/87 de 24 de Junho (Regulamento
Geral sobre o Ruído) não se destinou, nem se destina, a resolver conflitos que possam surgir entre o direito de propriedade do prédio (estabelecimento) onde se desenvolva actividade que produza ruído e os direitos à integridade física e moral das pessoas, à saúde, ao ambiente e à qualidade de vida.
2) Em caso de conflito entre os "direitos, liberdades e garantias" não sujeitos a reserva da lei restritiva com outros direitos fundamentais (exemplo direitos económicos, sociais e culturais) devem prevalecer aqueles.
3) No campo da lei ordinária, há um texto atinente à colisão de direitos - o artigo 335 do Código Civil que, apesar de anterior à Constituição de 1976, se mantém em vigor, tendo em vista o disposto no artigo 293, desta Constituição.
4) Na interpretação do artigo 335, a propósito da colisão ocorrer entre um direito de personalidade e um outro direito que não de personalidade, deve prevalecer, em princípio, os bens ou valores pessoais aos bens ou valores patrimoniais.
5) Para que haja responsabilidade civil por facto ilícito - artigo 483 do Código Civil - necessário é que se verifiquem, além do mais, os pressupostos ilicitude e culpa.
Face a tais conclusões, em conjugação com os elementos factuais fixados pela Relação, terá de precisar-se que:
1) Na colisão entre os direitos de personalidade dos
Autores (direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono) e o direito da Ré ao exercício de actividade que produza ruído, prevalece a dos Autores.
2) A prevalência dos direitos dos Autores determina que estes tem direito a que o tribunal conceda, como concedeu, a pretensão de a Ré suspender a sua actividade de funcionamento da discoteca, durante a noite, a partir das 24 horas.
3) A Ré tem obrigação de indemnizar os Autores.
4) O acórdão recorrido não merece censura dado ter observado o afirmado em 1) a 3).
Termos em que se nega a revista e, assim, confirma-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 13 de Março de 1997.
Miranda Gusmão,
Sá Couto,
Nascimento Costa,
Sousa Inês,
Pereira da Graça.