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TESTEMUNHA
ARGUIDO
Sumário
O suspeito que presta declarações antes de ser constituído arguido presta-as como testemunha, ficando por isso sujeito aos deveres das testemunhas, desde logo o de dizer a verdade, incorrendo no crime de falso testemunho se o não fizer ou se recusar a depor (art. 360º do CP), embora deva ser constituído arguido logo que das suas declarações resultem elementos para a sua incriminação.
Texto Integral
Rec. nº 66/08.5TAVNH.P1
TRP 1ª Secção Criminal
Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto
No Proc. C. S. nº 66/08.5TAVNH, do Tribunal Judicial da Comarca de Vinhais, foi julgado o arguido
B……………,
e a final foi em 19/1/2010, por sentença proferida a seguinte:
“VI. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
a) Condenar o arguido B…….. pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.º 1 do CP, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5 (cinco euros), num total de €750 (setecentos e cinquenta euros);”
Inconformado recorreu o arguido, em 5/2/2010, o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
“1ª – A matéria de facto constante da d. sentença mostra-se em termos gerais bem apreciada e fundamentada; há apenas duas situações que nos levantam dúvidas;
2ª – A primeira dessas situações é a seguinte: nos pontos 1. e 2. dos factos provados afirma-se que o arguido prestou declarações ou foi inquirido, «…como testemunha…»; Formalmente, não há dúvidas! Contudo, em termos substanciais, e atendendo ao tipo de declarações prestadas, o arguido estava a ser interrogado ou inquirido sobre factos (se comprou haxixe e cocaína a uma determinada pessoa) que constituem crime e, como tal, não tinha a obrigação de dizer a verdade pois que se podia incriminar a si próprio, pelo que temos dúvidas que se possa dizer que foi inquirido ou prestou declarações como testemunha;
3ª – A segunda dessas situações tem a ver com o ponto 3. dos factos provados quando se diz que o «O arguido agiu de forma livre, com o propósito concretizado de prestar declaração falsa…»; A d. sentença, na sua fundamentação, afirma que este facto «…resulta dos factos objectivos apurados, em conjugação com as regras da experiência e da normalidade do acontecer.» Tal raciocínio, correcto para a generalidade dos casos, não se nos afigura adequado para esta situação, pois o arguido estava a ser inquirido sobre factos que o podiam incriminar e, como tal, não podemos afirmar que agiu de forma livre e com o propósito de prestar declaração falsa;
4ª – Perante o exposto, não deverá ser dado como provado que o arguido foi inquirido como testemunha bem como não deve ser dado como provado o constante do ponto 3. dos factos provados, nos termos do artº 41º, nº 2, alínea c) do C.P.Penal, embora, por uma questão de honestidade intelectual, devamos afirmar que é uma situação que nos levanta algumas dúvidas;
5ª – A d. sentença fez uma abordagem correcta às questões jurídicas em causa nestes autos e enquadrou-as muito bem sob o ponto de vista doutrinal e jurisprudencial, mas opta por uma solução jurídica da qual discordamos e que é, em nosso entender, contrária à lei e à jurisprudência recente;
6ª – Estando em causa, como estão nestes autos, duas declarações antagónicas do arguido, prestadas em dois momentos diferentes, coloca-se antes de mais, a questão de saber se, para o preenchimento do tipo do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artº 360º, nº 1 do C.Penal é ou não necessário que se prove qual das duas declarações é falsa; É que, dos factos provados, não consta qual das declarações é falsa;
7ª – Para os seguidores da teoria objectiva á necessário que se demonstre qual das declarações é falsa – é este o entendimento expresso no Acórdão da Relação de Guimarães de 29-06-2009, processo nº 840/08.2TABRG.G1 e no Acórdão da Relação de Évora de 15-04-2008, processo nº 2613/07.1;
8ª – A Relação do Porto, nos seus Acórdãos de 30-01-2008, 21-02-2007 e 22-11-2006, proferidos nos processos nºs 0712790, 0645762 e 0644016, respectivamente, tem perfilhado entendimento diverso, considerando que é irrelevante para o preenchimento do tipo o apuramento do momento em que o arguido faltou à verdade; é este também o entendimento da sentença recorrida;
9ª - Este último entendimento, apesar da solidez dos argumentos, enfrenta, na nossa modesta opinião dois grandes problemas: qual a lei penal e processual penal aplicável ao caso, a que vigora no momento da 1ª declaração ou a que vigora no momento em que é prestada a 2ª?, e, a partir de que momento é que começa a correr o prazo de prescrição do procedimento criminal, a partir do momento em que é prestada a 1ª ou a 2ª declaração?, sendo certo que entre as duas declarações contraditórias pode decorrer um espaço temporal de meses ou anos;
10ª - Por isso, pensamos que é de exigir para a verificação do crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artº 360º, nº 1 do C.Penal que se prove qual a declaração que diverge da verdade objectiva, pois, além do mais, só assim ficam devidamente acautelados os direitos de defesa do arguido; a d. sentença ao entender que é irrelevante para o preenchimento do tipo o apuramento do momento em que o arguido faltou à verdade, fez, em nosso entender, uma interpretação errada do artº 360º, nº 1 do C.Penal, embora devamos admitir que esta não é uma situação pacífica;
11ª - O grande motivo de dissenso relativamente à d. sentença prende-se com a resposta a dar à seguinte questão: estando em causa um depoimento de uma testemunha cujo conteúdo a pode incriminar e não sendo constituída arguida, mantém a qualidade de testemunha para efeitos de poder incorrer na prática de crime de falsidade de testemunho?
12ª - As declarações que o arguido prestou no inquérito e que constam do ponto 1. dos factos provados são susceptíveis de integrar o crime de tráfico de estupefacientes do artº 21º ou do artº 25º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro pois de tais declarações consta que comprou haxixe e cocaína ao C…….., mas não consta que eram para consumo próprio; assim, não está em causa a contra-ordenação do artº 2º da Lei 30/2000, de 29/11, como sugere a d. sentença na sua página 10;
13ª - Assim sendo, nos termos do artº 59º, nº 1 do C.P.Penal, deveria ter sido suspenso o acto de prestação de declarações e a testemunha ( o aqui arguido) ser constituído arguido, de forma a prevenir as declarações contra si, que não podem estar abrangidas pelo dever de verdade; mas nada disso se fez!;
14ª - A omissão dos procedimentos adequados a prevenir as declarações contra si, que não podem estar abrangidas pelo dever de verdade, não pode revelar-se em desfavor da pessoa que presta declarações; e o mesmo vale também para a inquirição em audiência;
15ª – Neste sentido pronunciou-se Medina Seiça, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 464; no mesmo sentido, Ac. do STJ de 19-04-2006, proferido no processo nº 792/06, 3ª Secção, in www.pgdlisboa.pt que até alarga a aplicação deste raciocínio aos casos em que esteja em causa a prática de uma contra-ordenação; de acordo com este entendimento, que nos parece o correcto, nestes casos não se verifica o preenchimento do tipo do crime do artº 360º, nº 1 do C.Penal por falta da qualidade do agente;
16ª – A d. sentença interpretou e aplicou o artº 360º, nº 1 do C.Penal no sentido de que o tipo objectivo do crime de falsidade está preenchido quando uma testemunha presta declarações que a podem incriminar sem ter sido constituída arguida e,
17ª – Pese embora a minúcia da argumentação que expende, que faz algum sentido, padece de um “pecado” capital que é o de tratar de igual forma duas situações diferentes, que são as seguintes: o dever de verdade subjacente à incriminação do artº 360º do C.Penal não é o mesmo quando estão em causa declarações de uma testemunha que não a podem incriminar e quando estão em causa declarações da testemunha que a podem incriminar! Trata-se de situações diferentes e, quando estão em causa declarações que podem constituir crime, não se justifica a tutela penal do artº 360º do C.Penal para os casos em que é violado o dever de verdade.
18ª – A d. sentença violou, assim, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no artº 360º, nº 1 do C.Penal, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que absolva o arguido do crime que lhe é imputado.”
Respondeu o MºPº pugnando pela manutenção da decisão.
Nesta Relação o ilustre PGA é de parecer que o recurso deve proceder
Foi cumprido o artº 417º2 CPP.
Colhidos vistos, procedeu-se á conferência com observância das formalidades legais
Cumpre decidir.
Consta da decisão recorrida (transcrição):
“II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A) Factos provados
Com relevância para a boa decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade:
1. O arguido, em declarações prestadas à GNR, como testemunha, no âmbito do inquérito com o NUIPC n.º …./05.9TAMCD, no dia 22 de Outubro de 2007, referiu que, no período de três anos antecedente, era consumidor esporádico de haxixe e cocaína e que, nesse mesmo período, tinha comprado, duas vezes por mês, haxixe a C………., em quantidades de cerca de cinco gramas de cada vez, pelo preço de vinte e cinco euros, bem como lhe comprou algumas vezes cocaína, em quantidades de uma grama pelo preço de cinquenta euros.
2. Quando foi inquirido, como testemunha, na audiência de julgamento, realizada em 02 de Julho de 2008, no âmbito do processo comum colectivo, que correu termos na secção única deste Tribunal com o n.º ../05.9TAMCD, após prestar juramento, declarou nunca ter comprado nada ao C………, nem haxixe, nem heroína.
3. O arguido agiu de forma livre, com o propósito concretizado de prestar declaração falsa quanto ao seu conhecimento dos factos que eram relevantes tanto para a dedução da acusação como para o julgamento, o que representou.
4. Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
5. É solteiro.
6. Não tem filhos.
7. É topógrafo, auferindo €550 (quinhentos e cinquenta euros) mensais.
8. Reside sozinho, em casa arrendada.
9. Paga, mensalmente, €180 (cento e oitenta euros) de renda.
10. É pessoa respeitada e respeitadora.
11. Não tem antecedentes criminais.
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B) Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa, não resultaram provados outros factos, em contradição com aqueles ou para além deles, designadamente os seguintes:
a) A audiência de julgamento realizou-se em 11 de Junho de 2008;
b) Na audiência de julgamento, o arguido foi advertido pelo Meritíssimo Juiz de que deveria depor com verdade sob pena de incorrer em responsabilidade criminal.
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III. MOTIVAÇÃO
A convicção do Tribunal assentou na análise da certidão de fls. 2 a 70, extraída do processo n.º ../05.9TAMCD, da qual consta o auto de inquirição do arguido, enquanto testemunha, no âmbito do inquérito então realizado e a acta da audiência de julgamento no decurso da qual o arguido foi inquirido como testemunha, e na análise da transcrição do seu depoimento em audiência (fls. 75 a 89), da qual consta a prestação de juramento, mas não consta qualquer advertência sobre as consequências penais a que se expunha.
O elemento subjectivo resulta dos factos objectivos apurados, em conjugação com as regras da experiência e da normalidade do acontecer.
Relativamente às condições sócio-económicas e familiares do arguido o Tribunal fez fé nas declarações do arguido.
Os factos relativos à personalidade do arguido resultaram dos depoimentos das testemunhas D………. e E………, seus amigos.
Os antecedentes criminais resultaram do certificado de registo criminal de fls. 119.
Os factos não provados assim foram considerados por estarem em contradição com os provados.
Não se respondeu à restante matéria por ser conclusiva.”
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As questões suscitadas e a analisar são as seguintes:
- Alteração da matéria de facto por vicio do artº 410º2 c)CPP, quanto á sua qualidade de testemunha e á sua vontade;
- Necessidade de averiguar qual a declaração falsa.
- Não constituição como arguido, da testemunha depoente, e preterição do artº132º, 2 e 4 CPP ;
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No recurso, apesar de delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), há que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisp dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in Dr. I-A de 28/12, Ac. Pleno STJ nº 7/95 de 19/10/95 in DR., I-A Série de 28/12/95), mas que, terão de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” in G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742, e analisando o acórdão recorrido, não vislumbramos por ora a ocorrência de tais vícios, que não suscitam assim especial análise, salvo o invocado pelo arguido recorrente, a cuja análise se procede de imediato.
Invoca o arguido o erro notório na apreciação da prova, visando a não prova da qualidade de testemunha em que foi ouvido no processo onde prestou os depoimentos contraditórios e a sua actuação livre e consciente.
Ora “erro notório” como vicio da sentença expresso no artº 410º2c) CPP é o erro que é de tal modo evidente que não possa passar despercebido ao comum dos observadores, “como facto de que todos se apercebem directamente, ou que, observados pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório” Ac. STJ 6/4/94 CJ STJ II, 2, 186), ou “ não escapa á observação do homem de formação média” Ac. STJ 17/12/98 BMJ 472, 407, quando procede á leitura do acórdão ou quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta” (G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol., pág. 367, ou ainda “ … quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional ou lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.
Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis ...” (Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 740)
No fundo, quando “…no texto e no contexto da decisão recorrida, …existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável…” Ac. STJ de 9/2/05 - Proc. 04P4721 www.dgsi.pt, e essa “… incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da experiência comum” cf., também neste sentido, entre muitos outros, podem-se ver os Ac. do STJ de 13/10/99 CJ STJ III 184, e de 16/6/99 BMJ 488/262;
Ora do texto da decisão recorrida não consta tal vicio, e o ora arguido (por crime de falso depoimento) foi ouvido no processo (PCC ../05.9TAMCD) sempre e só na qualidade de testemunha ( fls 2 e 8 em inquérito e em audiência) e não era nem nunca foi arguido nesse processo, nem havia suspeita da prática do crime em investigação por parte do mesmo, pelo que não podia ser arguido nem como tal ser constituído no processo.
Por outro lado a constituição de arguido constitui um acto formal (artº 58º2 CPP - não sendo caso do artº 57º CPP), acto que em relação ao arguido não aconteceu, e por outro lado, nos termos do disposto no artº 59º CPP para essa constituição não basta a mera vontade da pessoa visada, mas terá de ocorrer uma fundada suspeita de crime ou que “estejam a ser feitas diligências a comprovar a imputação do crime, que pessoalmente a afectem” - M. Gonçalves, CPP anotado, 16ª ed. pág. 171 - e no caso não era visado o depoente, mas apenas se coligiam provas da eventual prática por outrem do crime em investigação, tal como veio a ser julgado.
Foi para evitar situações limite ou carecidas de regulamentação que arguido é apenas aquela pessoa objecto de um acto formal, assim possibilitando o exercício dos direitos e deveres de cada interveniente e delimitando o valor probatório das sua intervenção, deixando de fazer sentido a distinção entre arguido no plano material e no formal, por se reconduzir á constituição formal de arguido (não valendo as suas declarações, entretanto prestadas, como prova contra si caso venha a ser arguido - artº 59º 5 CPP), por isso como refere a sentença recorrida, arguido é “… a pessoa que é formalmente constituída como sujeito processual e relativamente a quem corre processo como eventual responsável pelo crime que constitui objecto do processo (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, Verbo, 2000, p. 286).
Ora o recorrente, foi sempre e apenas na qualidade de testemunha (que nunca abandonou) que foi ouvido em inquérito e em audiência, e por outro lado sabia do seu dever de verdade na prestação do depoimento (o que é do conhecimento comum á generalidade das pessoas e inerente á pessoa humana cujo relacionamento se deve pautar pela confiança e verdade, e “ é não só um dever jurídico, mas também um importantíssimo dever ético” - Germano Marques da Silva Curso de Proc. Penal, Verbo 4ª ed. pág 184), e como tal foi expressamente advertido ( cfr. fls 2, 8 e 75).
Por outro lado, entrando noutro campo do depoimento testemunhal - do dever de verdade – verifica-se que a testemunha está sujeita a esse dever, ajuramentada ou não ( artº 132º1 b) e d) CPP), e só não é obrigada a responder, quando “alegar que das respostas resulta a sua responsabilidade penal”. Assim perante uma pergunta que a possa incriminar a testemunha tem duas hipóteses ou responde e está sujeita ao dever de verdade ou alega que da resposta resulta a sua responsabilidade penal e recusa-se a responder. Esta é uma opção da testemunha e não do inquiridor, sobre o qual não impende (porque a lei não o impõe) um dever de advertência, apenas impende sobre o inquiridor, caso este considere haver fundada suspeita da prática do crime em investigação constitui-lo arguido (artº 59º1CPP) ou fazê-lo a pedido do depoente (artº 59º2 CPP) se aplicável (estarem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente o afectem) o que não foi o caso.
Ora em momento algum isto aconteceu, pois nem o arguido o alegou nem foram feitas diligências contra o depoente nem foi constituído arguido no processo, nem investigado ou julgado.
Em jeito de remate convém ter presente o ensinamento do Prof. Germano Marques da Silva, Curso Processo Penal, Verbo, II vol. 4ª ed. pág 187 “ … que uma coisa é a testemunha alegar que não responde porque das respostas pode resultar a sua responsabilização, outra é responder falsamente, ainda que com o fim de esconder a sua responsabilidade. A testemunha não pode responder falsamente, sob pena de incorrer no crime de falso testemunho, mas quando o fizer para evitar que ele próprio … se exponham ao perigo de virem a ser punidos … poderão as penas ser especialmente atenuadas ou até mesmo ser dispensada a pena ( artº 364º do CP) “
È assim de considerar improcedente esta questão, mantendo-se inalterada a matéria de facto.
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Alega o arguido que não se sabe qual das declarações prestadas é falsa (mas não põe em causa que uma delas é falsa) e só existirá crime quando tal ocorra, não bastando uma delas ser falsa.
O recorrente expõe na sua motivação e conclusões as posições jurisprudenciais, tal como faz a sentença recorrida e por isso para elas remetemos.
E uma das remissões é feita para o nosso acórdão de 30/1/2008 Proc.0712790 cuja doutrina continuamos a sufragar.
Vista a matéria de facto provada, dela resulta que:
“1-O arguido, em declarações prestadas à GNR, como testemunha, no âmbito do inquérito com o NUIPC n.º ../05.9TAMCD, no dia 22 de Outubro de 2007, referiu que, no período de três anos antecedente, era consumidor esporádico de haxixe e cocaína e que, nesse mesmo período, tinha comprado, duas vezes por mês, haxixe a C………, em quantidades de cerca de cinco gramas de cada vez, pelo preço de vinte e cinco euros, bem como lhe comprou algumas vezes cocaína, em quantidades de uma grama pelo preço de cinquenta euros.
2- Quando foi inquirido, como testemunha, na audiência de julgamento, realizada em 02 de Julho de 2008, no âmbito do processo comum colectivo, que correu termos na secção única deste Tribunal com o n.º ../05.9TAMCD, após prestar juramento, declarou nunca ter comprado nada ao C………, nem haxixe, nem heroína.”
Verifica-se que o recorrente depôs como testemunha no Proc. C.C nº ../05.9TAMCD, sobre matéria em que interveio directamente e por isso o seu conhecimento é directo, e directamente relacionada com o objecto do processo e sobre factos fundamentais do mesmo (cfr. acórdão de fls 16 a 70)
Manifestamente perante esses dois depoimentos que relatam factos opostos, verifica-se que eles se excluem mutuamente, e perante duas declarações contraditórias como as que estão em causa, é evidente que não podem ser ambas verdadeiras, pelo que só pode acontecer: apenas uma ser verdadeira e outra falsa ou serem ambas falsas.
Estando como estamos no âmbito da administração da justiça que impõe a prestação de depoimento verdadeiro, esta obrigação é permanente, isto é a testemunha é obrigada sempre e sempre que preste depoimento ao dever de verdade (seja quando for e independentemente de já haver prestado anteriormente depoimento – aliás esse dever é que pressupõe que o seu depoimento será sempre igual: razão pela qual ao prestar depoimento em julgamento se visa que preste um depoimento igual ao que prestou em inquérito ou o mantenha (que levou á acusação e deverá tendencialmente levar á condenação).
Atendendo ao dever permanente de prestação de depoimento verdadeiro, sempre que dela se afaste, o depoente incumpre a sua obrigação e incorre na prática do crime de falso depoimento verificados que sejam os demais elementos típicos.
Ora nos teremos do artº 360º CP o depoente presta falso depoimento sempre que “ … como testemunha,… perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento,… prestar depoimento,… falsos, …”.
Ora falso é aquele que não corresponde á verdade, e perante os depoimentos contrários em causa, pelo menos um deles não é verdadeiro, e não será pelo facto de os dois serem falsos que deixa de haver crime, antes pelo contrário, pode é haver dois crimes de falso depoimento.
Daí que não interessa, não ser compreensível a exigência, nem a lei exige que em casos como o dos autos – de declarações incompatíveis – se identifique ou se apure qual (ou se ambas) a declaração falsa.
Tal identificação tem interesse em outros casos (emissão apenas de uma declaração que é falsa o que se determinou por outros meios de prova), ou para efeitos incriminatórios, como foi aliás o caso dos autos: o arguido vinha acusado da falsidade da declaração prestada perante o tribunal (após juramento) e agravada (por advertência das consequências penais) do nº3 do artº 360º CP, não se tendo provado essa advertência ou que a declaração falsa fosse a prestada perante o tribunal em audiência, o que motivou aliás as comunicações para os fins do artº 358º CPP ( cfr. acta de fls 161 e 162).
Mas para o tribunal recorrido, perante a certeza de um depoimento falso e a dúvida sobre se o depoimento falso era o mais gravemente punido cujos elementos tipicos se não verificavam, obviamente impunha-se, por ocorrer concurso de normas, como fez a Mª juíza, de condenar pelo crime fundamental e menos grave.
Por outro lado não importa quando é prestado ou qual é o depoimento falso, nos casos em que tendo em conta que o bem jurídico protegido - interesse publico na boa administração da justiça e especificamente na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais de molde a perseguir os verdadeiros infractores, - e que se trata de um dever permanente de verdade - aquele bem jurídico e este dever é violado - por um depoimento conscientemente prestado e não verdadeiro levando ou contribuindo para perseguir um inocente ou ilibar um culpado, pois põe em causa a realização da justiça como função do Estado e dever do cidadão - quando e sempre que presta um qualquer depoimento, e, por isso relevante para a punição é que seja falso e não a determinação perante vários depoimentos de qual em concreto é falso, pois a administração da justiça é protegida enquanto função e aquela administração é a realização da actividade indispensável para uma correcta decisão… (in Comentário Conimbricense do Cód. Penal, Tomo III, pág 460/461) na qual se inclui obviamente a obtenção de prova através da prestação de um qualquer depoimento no processo, seja qual for o momento da sua prestação, sendo certo que o seu conteúdo é sempre relevante .
A latere, é de referenciar apenas que em face do teor do acórdão proferido no proc. ../05.9TAMCD onde o arguido prestou os dois depoimentos contraditórios, se pode concluir que o depoimento falso foi o prestado em audiência, pois o tribunal deu como provados factos contrários ao depoimento e não conferiu credibilidade e esse mesmo depoimento.
Improcede por isso essa questão.
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Questiona ainda o recorrente que devia ter sido suspenso o seu depoimento como testemunha e constituído arguido, porque as suas declarações constituíam crime de tráfico de estupefacientes.
Independentemente de as declarações do arguido constituírem confissão de um crime de tráfico (o que nos parece não ser o caso pois estamos perante a compra de droga para seu consumo esporádico, e não perante qualquer outro acto), reproduzem-se aqui as considerações expendidas em relação á 1ª questão analisada supra tendo presente que arguido é “ todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal” – artº 57º CPP, e é constituído arguido todo aquela pessoa que ao ser inquirida num processo faça surgir a fundada suspeita de um crime por si praticado, e pode ainda ser constituída arguido a seu pedido a pessoa suspeita da pratica de um crime aquando da pratica de diligências destinadas a comprovar essa imputação e que pessoalmente a afectem – artº 59º CPP.
Ora o recorrente foi ouvido como testemunha no processo de inquérito, em que se investigava a prática de um crime de tráfico de estupefacientes por outra pessoa - e foi-o, como resulta dos autos, porque se encontrava com o arguido sob investigação, no local onde se transaccionava droga e onde ela foi encontrada.
Perante esta situação, alguém ser encontrado num local onde há droga e ela se trafica, de imediato duas situações se perfilham no pensamento: ou tem a ver com a droga ou não tem, e se tem ou é traficante ou é consumidor.
Como desfazer a dúvida: ouvindo o interessado.
Foi o que foi feito - não sendo arguido nem havendo suspeita de prática do crime sob investigação, foi ouvido como testemunha (nem de outro modo podia ser ! ), e como tal referiu que nada tinha a ver com o crime de tráfico sob investigação nem nele era participante, e esclareceu de modo convincente a sua presença no local. Não cremos que houvesse outro modo de prestar estes esclarecimentos senão do modo como o fez.
O ora arguido não era o sujeito da investigação, nem interessava como tal aos investigadores, e não veio a ser acusado de nenhum crime, e assim não era visado por qualquer diligência de investigação de crime seu, nem era arguido ou suspeito da prática de crime, consequentemente não tinha que ser arguido ou constituído como tal, nem ele o pediu.
Á investigação criminal interessava apenas o depoimento do arguido como testemunha de actos de tráfico de droga praticados pelo arguido sob investigação, visando o combate a este flagelo, sendo que não interessa á politica criminal o combate por meios criminais ao consumidor de droga (doente que importa recuperar socialmente e não combater criminalmente).
Tem de se ter presente que a “constituição de arguido representa, pois, uma garantia da pessoa sobre quem recai a investigação ou foi deduzida acusação, garantia de que pode defender-se … “ mas tem um aspecto socialmente negativo pois da constituição de arguido resulta “ para muitas pessoas um grande desconforto …. sobretudo pela presunção social de culpa que a constituição de arguido acarreta na prática. Foi em razão desse efeito na opinião publica que a Lei 48/2007 alterou os pressupostos da constituição de arguido, exigindo que existam nos autos indícios de fundada suspeita da prática de crime.” In Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I vol. Verbo 2008, 5ª ed. págs, 305 e 306.
Daqui decorre que a constituição de arguido não deve operar apenas quando alguém presta declarações que constituam crime, mas para além disso só quando existam fundadas suspeitas do crime e o crime em causa é o crime sob investigação, (é que admitir que perante a confissão, pela testemunha inquirida, de um qualquer crime, devia operar sempre a constituição de arguido era admitir a paralisação da investigação por qualquer crime pois bastava no inicio da inquirição a testemunha declarar ter cometido um qualquer crime, para ser suspensa a investigação e ser constituído arguido assim obstando á resposta a quaisquer questões em investigação – situação que a lei não pode ter querido)
Ora os factos testemunhados pelo recorrente (sendo da mesma natureza e espécie de crime em investigação), não traduzem o mesmo crime investigado, nem com ele se conexionam em qualquer forma de comparticipação), pelo que não existem suspeitas, fundadas ou não, da prática do crime investigado.
Como refere Germano Marques da Silva, ob. cit. I vol. pág. 292 até o “ suspeito que presta declarações antes de ser constituído arguido presta-as como testemunha e por isso fica sujeito aos deveres das testemunhas, desde logo o de dizer a verdade, incorrendo no crime de falso testemunho se o não fizer ou se recusar a depor ( artº 360º do CP)” embora deva ser constituído arguido assim “que das suas declarações resultem elementos para a sua incriminação “estas tem de ser fundadas, o que não ocorre com a simples declaração prestada pelo recorrente, que constituindo prova do crime sob investigação, não constitui indicio suficiente para submeter o depoente a julgamento sem qualquer outro meio de prova e consequentemente abrir um inquérito para averiguação da existência ou não de tais factos ( artº 283º2 CPP).
Assim não estavam reunidas as condições para o recorrente, testemunha, ser considerado suspeito dos factos sob investigação, nem o seu depoimento constituía suspeita da pratica do crime sob investigação, que não lhe era dirigida, nem por si só tal depoimento constituía fundada suspeita de crime de tráfico de estupefaciente que determinasse a sua constituição como arguido.
Mas mesmo partindo do pressuposto de que ao prestar as suas declarações como testemunha este confessava a prática de um crime por si praticado (que não o crime sob investigação) e que devia ser constituído arguido e não fora, dispõe o artº 58º5 CPP “… que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova”.
Ora esta proibição da prova implica/ significa que aquelas declarações não podem ser utilizadas contra si (não servem para o incriminar – pois devia ser ouvido como arguido tendo o direito a não as prestar), nem podem ser utilizadas quanto ao crime suspeito que denuncia (ou seja o crime de que ele é agente) e traduzem uma “ineficácia contra o declarante …” Germano Marques da Silva, ob. cit. pág 291
Nenhum destes casos está em jogo nos autos, pois o arguido não foi incriminado pelas declarações / depoimento que prestou e no qual confessava um facto ilicito, nem este foi objecto de investigação. O seu depoimento foi apenas usado como prova de outro crime (é o meio normal, usual e comum da prova de venda de droga por parte dos traficantes de droga aos consumidores) e como tal sujeito ao dever de verdade.
Ora só naqueles de prestação de depoimento sobre um crime em investigação em que é suspeito ou agente o depoente ou ele confessa ser agente ou comparticipante, é que a prova resultante do depoimento não pode ser utilizada contra si, se prestadas antes de ser constituído arguido, por estarem feridas pela ineficácia do artº 58º 5 CPP. Cfr. Ac. STJ 29/1/92 CJ 1992, I, 20, citado por Germano M. Silva, ob. cit. II vol. pág 190 nota 2, Ac. RC 11/5/94 CJ XIX, 3, 48) mas sem prejuízo de poderem ser utilizadas contra terceiros (cfr. Ac. STJ 11/10/95 BMJ 450, 110).
Não há assim impedimento á utilização do depoimento prestado pelo recorrente no processo onde ocorreu, nem em face do seu teor devia ser suspenso e o depoente constituído arguido, pois não estava a ser investigado e onde não era arguido (e onde não foi investigado nem constituído arguido) nem o seu depoimento tem a ver com o crime e com o arguido então em investigação.
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Quando o ora arguido foi ouvido em inquérito no processo onde prestou os seus depoimentos, o mesmo não foi notificado para se fazer acompanhar por advogado.
Nos termos do artº 132º4 CPP (redacção da Lei 48/07), sempre que a testemunha presta depoimento o mesmo “… pode fazer-se acompanhar de advogado …”.
Como resulta do texto da lei, a circunstância de a testemunha poder ser acompanhada de advogado aquando da sua inquirição como tal, refere-se a um direito ou faculdade da testemunha e não a um dever do tribunal e a observar por este, pois para além de aceitar a presença do advogado se a testemunha se fizer acompanhar por ele, nenhum outro é imposto ao tribunal, nomeadamente o de ao convocar a testemunha para depor de a avisar ou notificar da faculdade de se fazer acompanhar por advogado, pelo que não há que extrair consequências para a não presença de advogado aquando da sua inquirição.
Improcedem por isso estas questões, e com elas o recurso.
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Pelo exposto, o tribunal da Relação do Porto decide:
Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, e em consequência confirma a sentença recorrida;
- Condena o arguido no pagamento da taxa de justiça de 04 Uc´s e nas demais custas.
Notifique.
Dn
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Porto 9/06/2010
José Alberto Vaz Carreto
Joaquim Arménio Correia Gomes