INIMPUTABILIDADE EM RAZÃO DE ANOMALIA PSÍQUICA
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
PEDIDO CÍVEL
OFENDIDO
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
Sumário

I - Não há contradição insanável da fundamentação quando, tanto na acusação como na pronúncia, se alega que o arguido, no momento da prática do crime, por força do seu distúrbio psicopatológico, agiu sem consciência do significado e implicações, nomeadamente penais, das normas violadas e, em julgamento, deste modo, a inimputabilidade do mesmo arguido, que havia sido submetido a exames periciais convergentes no sentido dessa mesma inimputabilidade e, não surgiu nem foi colocada originariamente, pelo que veio tal agente a ser havido como inimputável criminalmente pelos crimes que lhe eram imputados, mas em outro processo, por outro crime por ele cometido, já o arguido é havido como portador de imputabilidade diminuida.
II - Não se tendo, a ofendida constituido assistente, a sua intervenção processual restringe-se à sustentação e à prova do pedido civel, tal como dispõe o artigo
74 n. 2, do Código de Processo Penal, não podendo, em recurso, pôr em crise a decisão penal.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Sob acusação do Ministério Público foi julgado em processo comum e tribunal colectivo na 1. Vara Criminal de Lisboa o arguido:
- A, divorciado, Sargento Ajudante do Exército, reformado, nascido em 11 de Dezembro de 1929, em Proença-a-Nova, residente na Avenida ... na Damaia.
Era-lhe imputado a autoria material de três crimes de homicídio na forma tentada dos artigos 131, 132 ns. 1 e 2 alíneas c) e g) e 22 e 23 todos do Código Penal.
Foi deduzido pedido de indemnização cível pela ofendida
B que requereu a condenação do arguido no pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos no montante de 30000000 escudos.
Após julgamento, foi decidido:
1- declarar que o arguido A praticou os factos dados como provados os quais a Lei Penal tipifica como três crimes de homicídio, sob a forma tentada, dos artigos 131 e 132 n. 2 alínea g) do Código Penal.
2- Declarar o arguido inimputável, relativamente à prática desses crimes por os ter praticado em virtude de sofrer de uma psicose delirante de tipo paranóide que o incapacitou de avaliar, no momento da sua prática, a sua ilicitude e de se determinar de acordo com essa avaliação.
3- Declarar ainda que por virtude do distúrbio psicopatológico que padece, a natureza e gravidade dos factos praticados se considera existir um fundado receio que o arguido venha a praticar factos graves da mesma natureza, susceptiveis de afectar a integridade física, a saúde ou a vida de terceiras pessoas.
4- Determinar o internamento do arguido em estabelecimento clínico especializado por um período nunca inferior a três anos, a fim de ser submetido ao tratamento psiquiátrico adequado à sua patologia.
5- Condená-lo no pagamento de uma indemnização à assistente nos termos do disposto no artigo 498 n. 1 do Código Civil que de acordo com os juízos de equidade aí estabelecidos se fixa em 10000000 escudos.
Inconformados com o decidido, recorreram o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal "a quo" e a Assistente B.
Motivando o recurso conclui aquele Magistrado:
1. Discorda-se da declaração de inimputabilidade do arguido e considera-se que o arguido deveria ser declarado imputável diminuído e condenado pela prática de três crimes de homicídio tentado.
2- Havendo divergência entre a decisão proferida no processo n. 579/93.1SC exame e o relatório pericial destes autos, deveriam os peritos ser convocados para prestarem esclarecimentos nos termos do artigo 158 alínea a) do Código de Processo Penal.
3- Há contradição insanável na fundamentação do acórdão ao afirmar-se que "o arguido congeminou a forma que melhor entendeu para numa só ocasião exercer vindicta sobre a sua ex-mulher e aquele que supunha ser seu amante" e a conclusão de que "agiu de forma não-livre e sem consciência das implicações penais e sociais das normas que violava".
4- Constando tal contradição do texto da decisão recorrida, verificando-se o vício previsto no artigo 410 n. 2 alínea b) do Código de Processo Penal deve declarar-se a existência desse vício e ordenar-se o reenvio para novo julgamento nos termos do disposto no artigo 436 do Código de Processo Penal.
No seu recurso, a ofendida conclui:
1- O arguido foi julgado imputável por decisão proferida no processo n. 579/93 1JC ALM que correu termos pelo Tribunal Judicial de Almada e no qual foi julgado e condenado em 16 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado cometido cerca de 1 hora após ter praticado os factos por que foi julgado nos presentes autos.
2- Tal decisão transitou em julgado.
3- Não foi alegado nem provado que entre as 19.30 horas de 8 de Julho de 1993 (momento em que o arguido disparou 2 tiros contra o corpo da ofendida) e as 20 horas e 30 minutos do mesmo dia (momento em que o arguido praticou o crime de homicídio na Aroeira) tenha havido qualquer alteração da anomalia psíquica - "perturbação delirante de tipo paranóide" de que o arguido padece, segundo os relatórios médicos juntos aos autos.
3a) Assim, atento o disposto nos artigos 674, 674A e 675 do Código de Processo Civil aplicáveis "ex vi" do artigo 4 do Código de Processo Penal, o acórdão recorrido ofendeu caso julgado na questão concreta da imputabilidade do arguido.
4- Por outro lado, a factualidade tida por provada no Acórdão recorrido, nomeadamente os relativos à forma como o arguido preparou com premeditação e executou os factos de que foi acusado nos presentes autos - homicídio tentado de que foram vítimas a ofendida a
B e C - demonstram segundo "as regras da experiência comum" - artigo 410 n. 2 do Código de Processo Penal que ele tinha capacidade de no momento da prática dos factos avaliar a ilicitude destes e de se determinar de acordo com essa avaliação (artigo 20 n. 1 do Código de Processo Penal).
5- Decidindo de modo diferente o acórdão recorrido violou também os artigos 514 n. 1 do Código de Processo Civil e 20 n. 1 do Código Penal.
6- Acresce que constando dos autos o douto despacho do Tribunal de Almada que julgou o arguido imputável em sentido contrário ao dos pareceres constantes dos mencionados relatórios médicos e tendo a questão da imputabilidade sido necessariamente suscitada em julgamento por fazer parte da acusação, julgou-se que para completo esclarecimento desse facto essencial para o apuramento da verdade, era imprescindível que os peritos médicos em causa fossem ouvidos pelo Tribunal Colectivo e eventualmente interrogado pela acusação, defesa e representante da ofendida B conforme previsto no artigo 351 do Código de Processo Penal o que não aconteceu.
7- Deste modo o Tribunal "a quo" desrespeitou igualmente o princípio da imediação da prova, consagrado no artigo 351 do Código de Processo Penal.
8- O valor da indemnização não corresponde à gravidade dos danos que foram causados à ofendida B, nomeadamente a situação de paraplegia permanente só podendo locomover-se em cadeira de rodas, a circunstância dos esfíncteres, a total dependência de terceiros, etc.
9- O arguido deve ser considerado imputável e como tal condenado a título de culpa uma indemnização que se aproxime do reclamado na petição da recorrente (artigo 483 e seguintes do Código Civil).
10- É que o arguido agiu com dolo manifesto e bem notório em face dos factos e circunstâncias provadas nos autos.
11- Por outro lado são diferentes os conceitos de inimputabilidade vertidos no artigo 20 do Código Penal e no artigo 488 n. 1 do Código Civil sendo certo que não resulta dos autos, bem pelo contrário, que no momento da prática dos factos o arguido estivesse "por qualquer causa incapacitado de entender ou querer".
12- E nos termos do artigo 129 do Código Penal indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela Lei Civil.
13- Assim foram violados quanto ao pedido civel os artigos 483 e seguintes e 488 n. 1 do Código Civil e artigo 129 do Código Penal.
14- E mesmo que venha a ser confirmada a inimputabilidade penal e cível do arguido o montante indemnizatório deveria ser pelo menos de 20000000 escudos atentas as descritas circunstâncias em que os factos foram praticados, nomeadamente a "malícia" e o "discernimento" do arguido e os efeitos gravosos e permanentes dos mesmos, devendo assim a equidade prevista no artigo 489 n. 1 do Código Civil ter um peso bem maior do que lhe foi atribuído pelo acórdão recorrido.
Pede seja dado provimento ao recurso e, em consequência, declarar-se o arguido imputável para efeitos da condenação deste, a título de culpa, no pagamento à ofendida da indemnização peticionada.
Caso assim não se entenda deverá a importância arbitrada ser elevada para o dobro (20000000 escudos).
Mas se assim ainda não for entendido deverá o processo ser reenviado para novo julgamento nos termos do artigo 436 do Código de Processo Penal com a presença dos peritos médicos referenciados nos autos visando renovar a prova sobre a questão da imputabilidade do arguido.
Aos dois recursos respondeu o recorrido A pugnando pela manutenção do julgado.
Foram colhidos os vistos legais. Cumpre decidir.
Factos provados:
O arguido nasceu e viveu numa aldeia próximo de Proença-a-Nova até aos 16 anos de idade data em que veio trabalhar para os C.T.T. em Lisboa; Em 1961 com o início da Guerra Colonial foi requisitado pelo Serviço Postal Militar e graduado em 2. Sargento. Neste Serviço percorreu as delegações da Guiné, Lisboa, Angola e Moçambique. Ao longo do seu percurso militar e embora desempenhasse missões ligadas à sua especialidade, foi confrontado com várias cenas de guerra, designadamente foi-o em 1966 em Vila Teixeira de Sousa, em 1969, em
Dembos, e 1970-71 em Mereda.
Em 1972 ou 1973 o Arguido regressou definitivamente a
Lisboa, com o posto de Sargento-Ajudante, continuando a assegurar o mesmo tipo de serviço. Após 25 de Abril de 1974 foi integrado no Quadro Permanente do Exército, tendo passado à reserva no início da década de 80, situação em que se manteve até 1991, ano em que passou
à reforma.
Durante este último período o Arguido trabalhou em duas empresas, sucessivamente, tendo sido em ambas as ocasiões de sua iniciativa a rescisão do contrato.
Em 23 de Novembro de 1958 o Arguido contraiu matrimónio com B. Deste casamento nasceu um filho, D. O casamento do Arguido veio a ser dissolvido por divórcio em 23 de Março de 1994.
Durante o tempo em que o Arguido prestou serviço militar nas antigas Colónias, a sua esposa e filho permaneceram em Lisboa.
Até 8 de Julho de 1993 o Arguido e a assistente residiram na Avenida ..., na Damaia.
Em datas indeterminadas durante a década de 80 o Arguido, por insistência de sua mulher, recorreu por duas vezes a consulta psiquiátrica, por se queixar de sofrer recorrentemente de lembranças de episódios de cenas de guerra, que lhe provocavam que acordasse de noite a dar murros no vazio, ou que o faziam deitar ao chão, de modo súbito, quando ouvia um barulho mais forte.
O Arguido foi submetido a perícia psiquiátrica, nos termos do artigo 160 do Código de Processo Penal, na sequência da qual foi concluído, pelos Excelentíssimos Peritos Médicos, que o Arguido é portador de uma "Perturbação Delirante", de tipo Paranóide, habitualmente designada por Paranóia, como resulta do Relatório Pericial de Psiquiatria Forense de folhas 233 a 253, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
Por força desse padecimento o Arguido sofre ideias delirantes de ciúme, auto-referência, prejuízo, perseguição, de mecanismo essencialmente interpretativo.
A partir de data não determinada, na década de 1980, o Arguido começou a interiorizar no seu espírito que a sua esposa B lhe era infiel.
E em virtude da doença de que padece o Arguido começou por vivenciar ténues sentimentos de suspeita de adultério, com carácter disperso e fragmentário, imaginando que a mesma lhe era infiel com C, um seu vizinho.
Progressivamente passou a atribuir sentimentos profundos e ocultos a pequenos sinais, a atitudes, a posturas, gestos e olhares, que, de acordo com a interpretação que fazia dos mesmos, veiculariam um irrefutável sentido de provocação, de troça e humilhação relativamente à sua virilidade e honra de marido.
Assim, designadamente, o gesto de um seu vizinho que o auxiliava numa manobra de recuo com o carro, foi interpretado pelo Arguido como "ser toureado", e os olhares dos vizinhos e conversas destes à sua passagem foram interpretados pelo Arguido como imputações de homossexualidade e de marido traído pela cônjuge.
Mercê da psicose delirante, que sofre, o Arguido foi captando e guardando tais sinais, que sedimentou na sua mente, estruturando, progressivamente, uma personalidade paranóica.
No início do mês de Julho de 1993 o Arguido resolveu pôr termo a essa situação, acabando com o suposto adultério, e demonstrando a sua virilidade perante o seu filho e os seus vizinhos.
Assim, e durante os dias anteriores a 08-07-1993 o Arguido foi congeminando a ideia de matar a sua esposa e o suposto amante, em acto que fosse presenciado pelo seu filho e vizinhos.
Com o que pensava, igualmente, "lavar a sua honra" de marido traído e fazer prova de que não era homossexual.
Decidiu para tanto convocar uma reunião de condomínio, para a sua residência.
Como tivesse apurado que o seu filho, por razões profissionais, não poderia estar presente no dia e hora inicialmente escolhido, o Arguido adiou essa reunião para o dia 8 de Julho de 1993, pelas 19 a 19 horas e 30 minutos, conforme aviso que manuscreveu, e que é idêntico ao constante de folha 22 e que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
Assim, naquele dia cerca das 19 horas e 30 minutos o Arguido, de acordo com o plano que idealizara, e depois de se certificar que a esposa e o filho já se encontravam em casa, foi chamar o vizinho C.
Em seguida encaminhou-o, juntamente com outro vizinho o E para a sala de estar, local onde se encontrava já o seu filho.
Como B se encontrasse na cozinha, o Arguido foi chamá-la para a sala.
Então quando B caminhava à sua frente, pelo corredor da casa em direcção à sala de estar, o
Arguido, agindo sempre como idealizara, empunhou a sua pistola de calibre 6,35 milímetros, marca "Beretta", modelo 950-B, com o n. M 39451, que possuía há vários anos, com que andava frequentemente, e de que se havia previamente munido. Com ela o Arguido desferiu dois tiros em direcção às costas de B.
O Arguido disparou a uma distância não superior a dois metros, sem proferir qualquer palavra que pudesse alertá-la das suas intenções.
Ao receber os tiros nas costas B caiu de bruços à entrada da sala, aí ficando inerte.
Pelo menos uma das balas disparadas pelo Arguido atingiu B na região Dorsal, à esquerda da linha média, a cerca de 1 centímetro dessa linha média e a cerca de 24 centímetros abaixo do plano horizontal que passa pelos ombros, perfurando o tórax de trás para a frente, ligeiramente de baixo para cima e da esquerda para a direita.
Como consequência directa e necessária B sofreu um traumatismo toráxico consistente numa ferida transfixiva do lobo superior do pulmão direito, fístula brônquica, pneumomediastino, enfisema subcutâneo e hemotórax direito e ainda uma lesão vértebro-medular, consistente numa fractura esquirolosa de D7 e contusão medular a nível de D7-D8, como resulta do Auto de Exame Directo de Clínica Médico-legal, de folhas 98 a 104, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
Estas lesões eram aptas a causar a morte a B, o que só não veio a acontecer por esta ter sido prontamente socorrida num Hospital.
Tendo ali dado entrada em estado de pré-choque, havendo necessitado de ser sofreu uma transfusão sanguínea, e após estabilização de sinais vitais foi submetida a ventilação sob pressão controlada durante 19 dias, e a drenagens toráxicas.
Durante este período B encontrou-se em constante perigo de vida, vivendo temerosa que tal acontecesse.
Como consequência directa e necessária daquelas lesões B padeceu doença por 207 dias com incapacidade para o trabalho, ficando, para além das cicatrizes descritas no já referido exame médico, a sofrer, com carácter permanente, de paraplegia a nível da D5-D6 e incontinência dos esfíncteres, da qual resultam infecções urinárias de repetição.
Após ter disparado sobre a sua mulher, o Arguido apontou a arma em direcção ao peito de C, e disparou um tiro.
Porém este por estar alertado, em função dos anteriores disparos, ao ver-se sob a mira da pistola que o Arguido empunhava, lançou-se ao chão.
Simultaneamente, E, que também se encontrava na sala, agarrou o Arguido por trás e pelos braços. A conjugação destas duas circunstâncias fez com que o Arguido não atingisse C.
Após a ocorrência destes factos C pôs-se em fuga, tendo o Arguido ido no seu alcance.
Ao sair de sua casa o Arguido deparou com F e G, respectivamente a filha e a mulher de C, nas escadas do prédio, onde estas tinham acorrido alertadas pelo barulho dos tiros.
Então, estando o Arguido à porta de sua casa e aquelas no andar superior, debruçadas sobre o corrimão da escada, e a menos de 3 metros do Arguido, este apontou a pistola na direcção daquelas e disparou um tiro, sendo-lhe indiferente que atingisse qualquer delas.
Dada a curta distância envolvida (cerca de 3 metros entre a arma e o corpo das visadas), a região exposta (parte superior do tronco e a cabeça) e o alcance e a precisão deste tipo de armas a essas distâncias o disparo podia ter tido facilmente consequências letais para qualquer uma das visadas.
Porém aquele tiro não as atingiu, por se terem baixado, indo o projéctil estilhaçar um vidro na clarabóia do prédio.
De seguida o Arguido fugiu, tendo-se dirigido para a sua casa na Aroeira. Aí veio a causar a morte a H, nas circunstâncias descritas a folhas 187 a
189, que aqui se dão por reproduzidas.
Ao disparar sobre B o Arguido agiu após demorada reflexão sobre o local e meios a empregar, escolhendo uma arma eficaz para causar a morte e a de surpresa, sem dar à vítima quaisquer hipóteses de reacção e defesa.
No momento da prática dos factos supra-descritos o Arguido encontrava-se, por força do seu distúrbio psicopatológico, incapaz de avaliar esses factos e de agir de acordo com uma avaliação minimamente adequada dos mesmos.
Tendo assim agido impelido pela psicose delirante crónica de que padece, de forma não-livre, e sem consciência das implicações penais e sociais das normas que violava.
O distúrbio que sofre é susceptível de conduzir à repetição por parte do Arguido de actos semelhantes aptos a afectar a integridade física, a saúde ou a vida de terceiros.
Até à data dos factos dos Autos o Arguido era bem considerado e respeitado pelos seus vizinhos e familiares. Actualmente apenas mantém relações afectivas com o seu filho.
O Arguido tem os antecedentes judiciários dos Autos - cfr. folha 314 - encontrando-se preso em cumprimento de pena desde 8 de Julho de 1993.
No Estabelecimento Prisional onde se encontra trabalha na Sala de Jogos e ainda como encarregado da Biblioteca, mantendo um bom comportamento prisional. Aí foi submetido a tratamento psiquiátrico com fármacos, que suspendeu em meados de 1995.
Antes da ocorrência dos factos dos Autos, B era uma pessoa saudável, não se lhe conhecendo qualquer enfermidade.
Estava reformada desde há cerca de 1 ano e 1 mês, tendo até então trabalhado como enfermeira. Recebe cerca de 194000 escudos mensais de reforma, e 35000 escudos mensais de alimentos do seu ex-marido.
Em consequência das lesões sofridas ficou totalmente dependente de terceiros para as suas actividades diárias, necessitando de constante apoio técnico-especializado e sem potencial para a marcha, forçosamente adstrita a uma cadeira de rodas.
Por efeito daquele mesmo evento sofreu dores físicas intensas. A estas foi acrescido o profundo desgosto devido à sua incapacidade de se deslocar sem a cadeira de rodas, de cuidar de si própria nas necessidades diárias relativas à sua alimentação, higiene e cuidados pessoais, bem como à falta de convívio normal com o seu filho, o neto e pessoas amigas, circunstâncias estas que no seu conjunto lhe têm provocado um grande sofrimento moral.
E desde que teve alta dos estabelecimentos de saúde, em que foi tratada, tem estado internada em lares de terceira idade.
Aí dispende cerca de 200000 escudos com as despesas de internamento e assistência médico-medicamentosa.
Dos factos relevantes constantes na Contestação não resultaram provados os seguintes:
O único fim da reunião, convocada pelo Arguido para sua casa, no dia 8 de Julho de 1993, foi o de ser decidida a instalação de uma antena parabólica, a montar e partilhar, pelos aí presentes.
O Arguido disparou sobre B quando esta entrou na sala e por a ter visto parada a olhar fixamente para o vizinho C.
Ao disparar um tiro na direcção de F, o Arguido agiu sem intenção de as atingir, tendo assim procedido porque, devido à perturbação mental que sofria, quando olhou na direcção daquelas viu C.
O Arguido encontra-se recuperado da doença, que lhe foi diagnosticada na altura da prática dos factos, sentindo-se destroçado e profundamente desgostoso pelo então ocorrido, e ainda traumatizado por ser considerado um criminoso.
Durante o tempo em que o Arguido e B co-habitaram, esta apercebeu-se que aquele imaginava que ela manteria com o seu vizinho C uma relação de convivência intima, e que tal lhe causava humilhação e forte perturbação.
B compreendeu a gravidade do mal que afectava o seu marido, e recusou-se a ajudá-lo a ultrapassar a intranquilidade mental em que aquele vivia.
As economias que o Arguido possuía foram canalizadas para pagar dividas antigas e indemnizações decorrentes do processo n. 579/93 do Círculo Judicial de Almada, tendo hoje disponibilidade económica apenas para satisfazer as exigências mínimas do seu quotidiano.
Análise Jurídica.
Recurso do Ministério Público.
I- No seu recurso discorda da declaração de inimputabilidade do arguido já que, na sua óptica devia ter sido declarado imputável diminuído.
II- E havendo divergência entre a decisão proferida no processo n. 579 do Tribunal de Almada quanto à imputabilidade deveriam os peritos ser convocados para prestarem esclarecimentos.
III- Há contradição insanável na fundamentação ao dizer-se que "o arguido congeminou a forma que melhor entendeu para numa só ocasião exercer vindicta sobre a sua ex-mulher e aquele que supunha ser seu amante" e a conclusão de que "agiu de forma não-livre e sem consciência das implicações penais e sociais das normas que violava".
Apreciando.
Lê-se na acusação pública:
"... Mercê da sua psicose delirante o arguido foi captando e guardando tais sinais que sedimentou na sua mente, estruturando, progressivamente uma personalidade paranóica. No início de Julho de 1993 o arguido resolveu pôr termo a esta situação acatando com o suposto adultério entre a sua esposa e o seu vizinho C e fazendo uma demonstração da sua virilidade perante o seu filho e os seus vizinhos...
Deste modo e nos dias que precederam o dia 8 de Julho de 1993 o arguido foi congeminando na sua mente a ideia de matar a esposa e o suposto amante C, em acto presenciado pelo filho e outros vizinhos. Com o que pensava igualmente "lavar a sua honra" de marido traído e fazer prova de que não era nenhum "paneleiro... No momento da prática de tais factos por força do seu distúrbio psicopatológico atrás descrito o arguido agiu sem consciência do significado e implicações, nomeadamente penais das normas violadas.
Por isso não se decidiu de forma livre sendo a tanto impelido pela sua psicose delirante crónica...
Consequentemente... sofre de anomalia psíquica que o incapacitou de avaliar, no momento da prática dos factos a sua ilicitude e se determinar de acordo com essa avaliação, sendo por isso inimputável, artigo 20 n. 1 do Código de Processo Penal...".
O despacho que recebeu a acusação recebeu-a nos precisos termos em que foi formulada, como se vê de folhas 310 a 311 dos autos.
A decisão sob censura acolheu integralmente a acusação pelo que não foi o Excelentíssimo Recorrente e acusador público colhido de surpresa, já que ele próprio sustentou na acusação, como acima se vê, e melhor resulta dessa peça processual (folhas 258 a 264), que o arguido era inimputável em relação aos factos e crimes de que foi acusado neste processo.
Assim, a inimputabilidade não surgiu e não foi colocada originariamente na audiência e havendo perícias médicas convergentes nos autos que sustentam cientificamente tal inimputabilidade é razoável, e de acordo com as regras da experiência comum, que a convicção do julgador não divergisse ou pusesse em causa o resultado dessas perícias e daí que não tenha aplicação ao caso o artigo 351 n. 1 do Código de Processo Penal.
Aliás, nem o recorrente teve dúvidas, já que estando presente na audiência podia ter pedido esclarecimentos ou requerer nova perícia, nos termos do artigo 158 do Código de Processo Penal, o que não fez.
E o facto de o arguido ter sido declarado imputável diminuído no Tribunal de Almada nada tem a ver com os factos deste processo. Ali, os factos e o crime são outros e no despacho que contrariou a perícia médica o colectivo de juizes expressamente refere: "O arguido é imputável para a prática deste crime por ter avaliado a ilicitude do seu acto e ter podido agir em conformidade com essa avaliação. A doença potenciou a prática deste concreto crime e dará "imputabilidade diminuída, mas não foi sua causa essencial e necessária e daí a não imputabilidade...".
Ao contrário, em relação aos factos e crimes do caso "sub judice" no relatório pericial psiquiátrico referente ao arguido (folhas 233 a 250) e solicitado para se determinar se o arguido podia ser considerado i imputável em relação aos factos descritos nestes autos (cfr. despacho de folha 214) conclui-se: "O examinando... sofre de uma perturbação delirante de tipo paranóide, habitualmente designada por paranóia...
Por força do seu distúrbio psicopatológico no momento da prática dos factos de que é arguido, o examinando encontrava-se incapaz de avaliar esses factos e de agir de acordo com uma avaliação minimamente adequada dos mesmos, o que... o torna inimputável em relação à prática desses factos...".
E não há qualquer caso julgado entre o que foi decidido no Tribunal de Almada sobre a imputabilidade e o que foi decidido nestes autos, já que, como vimos, não se trata do mesmo facto (cfr. Cavaleiro de Ferreira in
Curso de Processo Penal volume III, edição de 1958 páginas 35 e seguintes).
Também não tem razão o Digno Recorrente quando diz haver contradição insanável na fundamentação.
Os factos que aponta como contraditórios são descritos na própria acusação e enquadram-se no contexto passional inerente ao tipo de evolução delirante do arguido.
Face ao exposto, improcede o recurso.
Recurso da ofendida B.
Esta ofendida sofreu, por efeito do crime, prejuízos no seu património material e moral merecedores da protecção do direito. E sendo ofendida e lesada podia ter-se constituído Assistente nos autos. Porém, não o fez. Deduziu pedido cível.
Nas conclusões do seu recurso, e que acima relatamos, põe em crise a decisão quer no aspecto penal, quer no aspecto civil.
Ora, não se tendo constituído assistente, a sua intervenção processual restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização cível, como dispõe o n. 2 do artigo 74 do Código de Processo Penal.
Assim, o aspecto penal, e tendo em vista a improcedência do recurso do Ministério Público, está adquirido para os autos carecendo a ofendida de legitimidade para o contestar.
Pelo que ficou exposto, importa conhecer deste recurso, tão só no aspecto civil.
Assim:
Dos factos assentes (cfr. factos provados) resulta que o arguido praticou os factos que lhe eram imputados na acusação pública os quais, objectivamente, integram três crimes de homicídio na forma tentada, tendo um como vítima B, então sua mulher, e ora recorrente. No momento, o arguido encontrava-se, por força do seu distúrbio psicopatológico, incapaz de avaliar esses factos e de agir de acordo com uma avaliação minimamente adequada dos mesmos. Agiu impelido pela psicose delirante crónica de que padece de forma não-livre e sem consciência das implicações penais e sociais das normas que violava.
Desta factologia resulta que o arguido não pode ser considerado imputável e ser responsabilizado a título de culpa como pretende a Recorrente.
Pois, como refere o Professor Antunes Varela in Das
Obrigações em Geral, edição de 1970 páginas 384 e seguintes "Diz-se imputável a pessoa com capacidade natural para prever os efeitos e medir o valor dos seus actos e para se determinar de harmonia com o Juízo que faça acerca destes. Exige-se, assim, para que haja imputabilidade a posse de certo discernimento (capacidade intelectual e emotiva) e de certa liberdade de determinação (capacidade volitiva)".
Assim, a indemnização há-de ser determinada com recurso ao artigo 489 do Código Civil, posição que foi acolhida na instância e que se subscreve.
Com efeito, diz o preceito em referência "Se o acto causador dos danos tiver sido praticado por pessoa não imputável pode esta, por motivo de equidade ser condenada a repará-los, total ou parcialmente desde que não seja possível obter a devida reparação das pessoas a quem incumbe a sua vigilância".
Ora, a expressão utilizada no preceito "pode... ser condenada" mostra que fica ao critério do Juiz entender se a equidade impõe ou não, na hipótese, a condenação do não imputável.
Não se trata, pois, verdadeiramente de uma reparação do dano fundada nas regras gerais da responsabilidade civil, mas de uma medida equitativa baseada nas circunstâncias.
Tendo em vista que a conduta do arguido foi particularmente grave e que os danos causados foram de monta para a ofendida, designadamente, em consequência das lesões sofridas, ficou totalmente dependente de terceiros para as suas actividades diárias necessidades de constante apoio técnico especializado e sem potencial para marcha, forçosamente adstrita a uma cadeira de rodas, mas tendo também presente que o arguido não é rico afigura-se-nos ter sido bem fixada a indemnização de 10000000 escudos à ofendida.
Improcede também este recurso.
Face a todo o exposto, acorda-se em negar provimento aos dois recursos interpostos: o do ministério Público e o da ofendida B, mantendo-se na integra a decisão da 1. instância.
Sem tributação quanto ao aspecto penal. Atribui-se ao Excelentíssimo Defensor Oficioso 30000 escudos de honorários a serem suportados pelos Cofres. Quanto ao aspecto cível custas pela ofendida na proporção do decaimento.
Lisboa, 13 de Janeiro de 1998
Mariano Pereira,
Flores Ribeiro,
Brito Câmara,
Joaquim Dias.
Decisão impugnada:
1. Vara Criminal de Lisboa - 3. Secção - 1237/94.