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PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
INAPLICABILIDADE
Sumário
I – O prazo de prescrição de dois anos – que está estabelecido no art. 317º, al. b) do CC – não é aplicável quando os objectos vendidos se destinem ao comércio do devedor ou quando as mercadorias, produtos, execução de trabalhos e gestão de negócios alheios se destinem ao exercício industrial do devedor e tal acontece sempre que o destino dos bens, produtos, mercadorias ou trabalhos fornecidos tenha conexão com o exercício da actividade comercial ou industrial do devedor, porque se destinam a revenda ou a transformação para posterior comercialização ou porque, embora não se destinem a revenda ou comercialização, são necessários e vão ser utilizados no exercício daquela actividade (como é o caso das instalações, máquinas, equipamentos e veículos que são adquiridos com vista ao exercício dessa actividade e como é o caso dos trabalhos e serviços que são prestados e incorporados nesses bens). II – Assim, o crédito da A. – porque emergente do fornecimento de equipamentos e serviços que se destinaram à construção e apetrechamento dos novos estúdios da R. de gravação de som, estúdios esses que se destinavam ao exercício da sua actividade comercial ou industrial – não está sujeito ao prazo de prescrição de dois anos que está fixado no citado art. 317º, al. b)
Texto Integral
Reg. nº 146.
Apelação nº 12601/08.4YIPRT.P1
Tribunal recorrido: .º Juízo Cível do Porto.
Relatora: Maria Catarina Ramalho Gonçalves
Adjuntos Des.: Dr. Filipe Manuel Nunes Caroço
Dr. Fernando Manuel Pinto de Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I.
B………., S.A., com sede na Rua ………., nº …, .º, Porto, apresentou requerimento de injunção contra C………., Ldª, com sede na ………., nº …, .º, Lisboa, pedindo o pagamento da quantia de 14.626,90€, respectivos juros de mora no valor de 4.667,58€ e a quantia de 200,00€, alegando, para o efeito, que, no exercício da sua actividade profissional, forneceu serviços de engenharia e instalação de novos estúdios à Requerida, conforme factura de 30/12/2004, emitida pelo valor de 24.626,90€, do qual a Requerida apenas pagou 10.000,00€.
A Ré deduziu oposição, aceitando a realização dos serviços mencionados no requerimento inicial pelo preço total de 24.626,90€, alegando, porém, que esses trabalhos foram integralmente pagos. Alegando que tais trabalhos foram prestados em 2004 e que os mesmos não se destinaram ao comércio da Ré – já que tinham a ver com a execução de um contrato de empreitada de criação das infra-estruturas físicas de um estabelecimento comercial – invoca a prescrição do direito da Autora, ao abrigo do disposto no art. 317º, alínea b) do Código Civil.
Conclui pela improcedência da acção.
A Autora respondeu, alegando que a Ré não pagou a quantia reclamada nos autos e impugnando o facto de os serviços de engenharia não se terem destinado ao comércio da Ré.
Conclui pela improcedência das excepções invocadas.
Foi realizada a audiência de discussão e julgamento e, após, foi proferida sentença que julgou improcedentes as excepções de prescrição e pagamento e julgou a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de 14.626,90€, acrescida de juros de mora contabilizados desde 30/12/2004 às sucessivas taxas legais para operações comerciais e absolvendo a Ré do pagamento da quantia de 200,00€ que havia sido peticionada.
Inconformada com essa decisão, a Ré interpôs o presente recurso de apelação, formulando as conclusões que, a seguir, se reproduzem (não obstante o seu carácter repetitivo):
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A Recorrida apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:
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II. Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a presente apelação irá centrar-se na análise das seguintes questões:
• Nulidade da sentença recorrida;
• Ineptidão da petição inicial;
• Erro na apreciação na prova e eventual alteração da decisão da matéria de facto;
• Qualificação do contrato celebrado entre as partes: compra e venda ou empreitada:
• Eventual prescrição do crédito da Autora, por força do disposto no art. 317º, alínea b) do Código Civil.
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III.
Na 1ª instância, foi considerada provada a seguinte matéria de facto:
A) A A. no exercício da sua actividade profissional forneceu à R. serviços de engenharia e instalação dos novos estúdios e equipamento no montante de 24.626,90 com IVA incluído conforme resulta da factura nº ……/….. datada de 30.12.2004 e com vencimento na mesma data.
B) Os serviços em causa envolveram a análise, desenho de projecto, instalação e montagem de equipamento e infra-estruturas de engenharia, designadamente: cablagem e fichas.
C) E destinavam-se à construção e apetrechamento dos novos estúdios da R de gravação de som
D) Do montante titulado pela factura foi paga a quantia de €10.000,00 através de cheque sacado sob o D………. e datado de 27.4.2005.
E) A R. é uma empresa da área dos audiovisuais que se dedica à pós-produção áudio, com o esclarecimento que na CRC consta como sendo o seu objecto social a gravação de som, imagem, campanhas publicitárias e informática.
F) Em15 de Setembro de 2006 a A enviou à R. um fax no qual refere que “vimos por este meio solicitar liquidação imediata do extracto em anexo e cuja data de no caso da factura …… se encontra vencida há mais de 18 meses.(…).”
G) Em 17 de Outubro de 2006 a A. enviou um fax à R. no qual refere “ O Sr. Dr. E………., na qualidade de administrador da B………., SA vem por este meio solicitar reunião com a gerência do C………..
Ficamos a aguardar vosso contacto a fim de podermos agendar dia e hora.”
H) Em 15 de Novembro de 2006 a A. envia novo fax à R. onde refere que “dando seguimento ao nosso fax enviado ao cuidado do C………. no passado dia 17 de Outubro de 2006 vimos por este meio reiterar o nosso interesse na marcação de reunião entre ambas as empresas.
A razão que nos leva a este pedido prende-se com uma dívida mantida por parte do C………. desde Dezembro de 2004.
Agradecíamos da vossa parte um plano de pagamentos para liquidação da dívida, caso contrário seremos obrigados a passar este processo aos nossos advogados e tentar cobrança coerciva que muito gostaríamos de evitar.
Ficamos a aguardar o vosso contacto a fim de podermos agendar dia e hora.(…)”
I) Em 9.3.2004 a R enviou um fax à A onde refere que “vimos por este meio informar, que a vossa proposta de n. 3, de 5 de Março de 2004, para a instalação técnica dos nossos serviços se encontra aprovada”.
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IV.
Apreciemos, pois, as questões suscitadas no recurso.
Nulidade da sentença.
A Apelante começa por invocar a nulidade da sentença, com fundamento no disposto no art. 668º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Civil[1].
Fazendo referência aos factos provados acima enunciados sob as alíneas A), B) e C); referindo que esses factos não têm expressão documental nem testemunhal; dizendo que, como ressalta dos depoimentos das testemunhas, a B………. apenas forneceu à Ré equipamentos que instalou e montou e aludindo aos depoimentos das testemunhas, F………. e G………., conclui a Apelante que a Mª Juiz ficcionou a actividade da B………., atribuindo-lhe qualificações que não tem, pois não é um gabinete de projecto de engenharia ou empreiteiro e, desse modo, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, atribuindo à Autora actividades que este não exerce nem tem qualificações para exercer, pelo que cometeu a nulidade prevista no citado art. 668º, nº 1, alínea d).
Todavia, e salvo o devido respeito, não se vislumbra como esta alegação e este raciocínio poderá conduzir à apontada nulidade da sentença recorrida, já que daí apenas decorre a discordância da Apelante relativamente à decisão da matéria de facto.
Dispõe o art. 668º, nº 1, alínea d) que a sentença é nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Esta nulidade está directamente relacionada com o dever que é imposto ao juiz – cfr. art. 660º nº 2 – de resolver todas as questões processuais que as partes tenham submetido à sua apreciação e de não poder ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Ora, parece manifesto que a situação aqui em causa não se enquadra no âmbito de previsão da citada norma, já que o que resulta da argumentação do Recorrente não é a circunstância de o juiz ter conhecido de questão que não tenha sido suscitada pelas partes e que, como tal, não tenha sido submetida à sua apreciação.
Os factos que foram considerados provados nas alíneas A), B) e C) foram alegados pela Autora – na petição inicial e na resposta à contestação – e pela Ré, pelo que nem sequer se poderá dizer que foram considerados factos não alegados e o que está subjacente à argumentação da Apelante – com base na qual invoca a nulidade da sentença – é apenas a sua discordância relativamente à decisão que considerou esses factos como provados, já que, na sua perspectiva, a prova produzida (designadamente os depoimentos das testemunhas que invoca) não o permitia.
Em suma, o que a Apelante pretende é apenas impugnar a decisão da matéria de facto, com fundamento em erro na apreciação na prova, mas esse erro – ainda que tenha existido – não determina, obviamente, a nulidade da sentença, podendo apenas determinar a alteração da decisão da matéria de facto.
Para fundamentar a nulidade da sentença, com fundamento no disposto no citado art. 668º, nº 1, d), alega ainda a Apelante que a Mª Juiz se substituiu à Autora, suprindo por ela as deficiências da causa de pedir e a omissão de factos essenciais.
Ou seja, alegando que a petição inicial era inepta, por falta de indicação da causa de pedir, considera a Apelante que a Srª Juiz recorrida, ao invés de declarar essa ineptidão, supriu essas deficiências, considerando factos que não haviam sido alegados e cometendo, dessa forma, a nulidade prevista no art. 668º, nº 1, alínea d).
Não obstante essa alegação, a Apelante não concretiza os factos que, na sua perspectiva, foram considerados na decisão sem que tenham sido alegados e a verdade é que não se vislumbra que tal tenha acontecido, na medida em que os factos que constam da decisão da matéria de facto haviam sido alegados pela Autora ou pela Ré.
Alega ainda a Apelante que os factos provados e enunciados sob as alíneas F), G), H) e I) são notoriamente falsos, por absoluta impossibilidade de terem acontecido, já que a Ré não podia ter recebido esses faxes por não terem sido dirigidos para a sua sede e número de aparelho de recepção, o que inquina a sentença do vício de nulidade, previsto no art. 668º, nº 1, alínea d).
Mais uma vez, a Apelante baralha e mistura os conceitos, na medida em que a sua alegação – correspondendo apenas a uma discordância relativamente à decisão da matéria de facto – nunca poderia conduzir à nulidade da sentença.
Com efeito, não se vislumbra como o mero erro na apreciação da prova – que é apontado pela Apelante – possa corresponder ao conhecimento de matéria que ao juiz estava vedado conhecer.
A sentença recorrida não padece, pois, da nulidade que lhe é apontada pela Apelante.
Ineptidão da petição inicial.
A Apelante invoca a ineptidão da petição inicial por falta de indicação da causa de pedir, alegando, para o efeito, que a Autora se arroga credora da requerida sem alegar quaisquer factos concretos identificativos do contrato que origina o pretendido crédito, sem concretizar quaisquer factos caracterizadores desse contrato e sem alegar quaisquer concretas ocorrências da vida real que permitam concluir que a requerida, por contrato de prestação de serviços ou de fornecimento de bens celebrado entre as partes, se acha adstrita à obrigação de lhe pagar a quantia pedida.
Segundo dispõe o art. 193º, nº 2, alínea a), a petição é inepta “quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir” e, como resulta do disposto no art. 498º, nº 4, a causa de pedir é o facto jurídico do qual emerge a pretensão formulada.
Ora, ainda que de forma sucinta – como se impunha, dada a circunstância de estar em causa um procedimento de injunção – a Autora indicou, no requerimento inicial, a causa de pedir, pois é certo que invocou os factos dos quais emergia o seu direito e a obrigação da Ré.
Com efeito, no requerimento de injunção, a Autora invocava a existência de um contrato de fornecimento de bens e serviços, celebrado em 30/12/2004 e alegava “A requerente no exercício da sua actividade profissional forneceu/prestou serviços de engenharia e instalação de novos estúdios à requerida, conforme se encontram consignados na factura nº ……/….. de 30/12/2004 do montante de € 24.626,90. Daquele montante a requerida apenas liquidou a quantia de € 10.000,00, ficando por liquidar a quantia de 14.626,90 €”.
A Autora alegou que a obrigação cujo cumprimento peticionava radicava num contrato de fornecimento de bens ou serviços, alegou a data de celebração desse contrato, indicou os serviços que forneceu à Ré ao abrigo desse contrato, indicou o preço devido pelos referidos serviços, indicou qual a parte do preço que foi paga pela Ré e alegou qual a parte do preço que ainda estava em dívida.
Então, o que mais deveria alegar?
A Apelante não o diz e a verdade é que, perante aquela alegação, de modo algum poderemos considerar que a petição é inepta por falta de causa de pedir, na medida em que o facto jurídico de que emerge a pretensão da Autora está indicado e devidamente concretizado no requerimento inicial.
Aliás, é curioso notar que a Apelante não invocou a excepção – que agora vem invocar – quando apresentou a sua contestação e, não obstante alegar agora que esse facto a inibiu de organizar convenientemente a sua defesa, a verdade é que, naquela ocasião, não teve qualquer dificuldade em saber qual era a causa de pedir e, mais concretamente, qual era o contrato que era invocado e com base no qual era demandada.
Na contestação que apresentou, a Apelante confirmou a celebração do contrato, nos termos e pelo preço que constavam do requerimento inicial, limitando-se a alegar que, ao contrário do que havia sido alegado pela Autora, havia pago integralmente o preço devido.
Assim, ainda que a petição inicial fosse inepta por falta de indicação da causa de pedir (e já vimos que não é), sempre se impunha concluir que a Ré, ora Apelante, interpretou convenientemente a petição inicial, razão pela qual nunca poderia proceder a excepção de ineptidão da petição inicial – art. 193º, nº 3.
Não existe, pois, qualquer ineptidão da petição inicial.
Impugnação da decisão da matéria de facto.
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Qualificação do contrato celebrado entre as partes.
Discordando da sentença recorrida – que qualificou o contrato celebrado entre as partes como um contrato de empreitada – considera a Apelante que estamos perante um contrato de compra e venda e, para sustentar essa conclusão, continua a invocar os depoimentos das testemunhas.
Tal como já se mencionou, os depoimentos das testemunhas não têm relevância directa para a qualificação do contrato, já que, em matéria de aplicação e interpretação da lei, o tribunal não está sujeito às alegações das partes e às considerações ou declarações das testemunhas.
Os depoimentos das testemunhas apenas têm relevância para a determinação dos factos em que vai assentar a decisão, ou seja, para a decisão da matéria de facto.
Assim, a qualificação do contrato há-de ser feita com base na matéria de facto que ficou provada, razão pela qual nos dispensamos de fazer qualquer outro comentário aos depoimentos das testemunhas que, como se referiu, apenas tinham relevância para a decisão da matéria de facto e essa questão já foi analisada, sendo que a matéria de facto a considerar é aquela que foi fixada na 1ª instância.
Relativamente a esta matéria, ficou provado que a Autora forneceu à R. serviços de engenharia e instalação dos novos estúdios e equipamento, sendo que esses serviços envolveram a análise, desenho de projecto, instalação e montagem de equipamento e infra-estruturas de engenharia (designadamente, cablagem e fichas) e destinavam-se à construção e apetrechamento dos novos estúdios da R de gravação de som.
É esta a matéria de facto de que dispomos e com base na qual deve ser qualificado o contrato celebrado entre as partes.
Analisemos, pois, essa questão.
O contrato de compra e venda é – de acordo com o disposto no art. 874º do Código Civil – o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.
Empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço – art. 1207º do mesmo diploma.
O contrato de compra e venda e o contrato de empreitada são, na sua essência, contratos perfeitamente distintos, com objectos e efeitos bem diferenciados entre si.
O contrato de compra e venda visa a transmissão da propriedade de uma coisa ou da titularidade de um direito, transmissão essa que ocorre por mero efeito do contrato (sendo, por isso, um contrato de natureza real) e a obrigação que dele emerge para o vendedor é a obrigação de entregar a coisa (obrigação de dare); o contrato de empreitada visa a realização de uma obra e dele resulta uma obrigação de prestação de facto (obrigação de facere) que consiste na realização da obra.
Naturalmente que a empreitada, além de envolver a transferência da propriedade da obra que era objecto do contrato, pode envolver também a transmissão da propriedade de diversos materiais que são necessários à execução da obra e tal acontece sempre que tais materiais devam ser fornecidos pelo empreiteiro.
E é aqui que, por vezes, se levantam algumas dificuldades de distinção entre a compra e venda e a empreitada, já que a possibilidade de o empreiteiro fornecer os materiais a incorporar na obra introduz no contrato de empreitada alguns elementos que, sendo característicos da compra e venda, fogem àquele que é o objecto essencial do contrato de empreitada: a execução de uma obra.
Como parece óbvio, a mera circunstância de o empreiteiro fornecer os materiais a incorporar na obra não obsta à qualificação do contrato como empreitada, sendo certo que é a própria lei que põe, em regra (e sem prejuízo de convenção ou uso em contrário), a cargo do empreiteiro o fornecimento dos materiais necessários – art. 1210º nº 1 do Código Civil – sendo certo, aliás, que, mesmos nestas situações, o regime da transferência da propriedade é diverso do regime estabelecido para o contrato de compra e venda (no contrato de compra e venda, a transferência da propriedade ocorre por mero efeito do contrato; no contrato de empreitada, a transferência da propriedade dá-se no momento da entrega da obra ou da sua incorporação no solo (art. 1212º).
Certo é, porém, que tal possibilidade levanta algumas dificuldades práticas na determinação do contrato que está em causa e foi pretendido pelas partes, designadamente nos casos em que, a par da transferência da propriedade sobre uma coisa, o contrato envolve também a prestação de algum serviço, tal como a aplicação ou montagem da coisa vendida.
Como estabelecer, então, a distinção?
Refere Pedro Romano Martinez, Contrato de Empreitada, pág. 38: “…no direito português, o contrato pelo qual alguém se obriga a realizar certa obra é, em princípio, uma empreitada, e o fornecimento pelo empreiteiro das matérias necessárias à sua execução não vai, por via de regra, alterar a natureza do contrato. Deve, então, qualificar-se como de empreitada o contrato em que o subministro de material constitui um meio para a realização da obra. Em contrapartida, enquadra-se na noção de compra e venda o contrato mediante o qual alguém se obriga a fornecer um bem fabricado em série ou por encomenda com base em amostra ou catálogo, desde que não haja que proceder a adaptações consideráveis”. Todavia, continua o mesmo autor, “…será, por último, a vontade real dos contraentes que, sobrepondo se a todos os critérios de distinção, vai determinar o tipo de contrato e o seu regime”.
Em sentido semelhante, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., págs. 789 e 790), citando Rubino “«não é possível pré-ordenar critérios gerais taxativos; uma boa margem deve ser deixada à prudente apreciação do juiz. Com esta reserva, pode considerar-se como melhor, mas não como exclusivo, o critério segundo o qual há empreitada, se o fornecimento dos materiais é um simples meio para a feitura da obra, e o trabalho constitui o fim do contrato. Pelo contrário, há venda, se o trabalho é simplesmente um meio para obter a transformação da matéria»”. Todavia, continuam os mesmos autores, “acima de quaisquer elementos objectivos, o elemento fundamental a considerar é sempre constituído pela vontade dos contraentes. A qualificação jurídica do negócio há-de resultar, em larga medida, do que tiver sido pretendido pelas partes, que não terão deixado, em qualquer caso, de configurar na sua mente um dos dois contratos em causa e o seu regime”.
Feitas estas considerações, importa, desde já, referir que a matéria de facto que foi alegada e que ficou provada não permite determinar, em rigor, qual o(s) contrato(s) que foi celebrado entre as partes.
A Autora, no requerimento inicial, apelidou o contrato de “fornecimento de bens ou serviços”.
A Ré, por seu turno, alegou, na sua contestação, que os serviços prestados respeitavam à execução de um contrato de empreitada e, curiosamente, é a Ré/Apelante que vem agora defender que o contrato em causa não é um contrato de empreitada – como ela própria havia alegado e como se considerou na sentença recorrida – mas sim um contrato de compra e venda.
A verdade é que apenas sabemos que a Autora forneceu serviços de engenharia e instalação dos novos estúdios e equipamento, sendo que esses serviços envolveram a análise, desenho de projecto, instalação e montagem de equipamento e infra-estruturas de engenharia (designadamente, cablagem e fichas).
Na perspectiva da Apelante, estamos perante um contrato de compra e venda, na medida em que a Autora não construiu ou executou qualquer obra; apenas vendeu os equipamentos e procedeu à sua instalação. Com efeito, alega, aquilo que releva no caso é a venda do equipamento, sendo que a sua instalação não é relevante ou prevalecente em termos de lhe conferir autonomia.
Mas, a verdade é que a matéria de facto provada não é suficiente para sustentar essa conclusão, na medida em que desconhecemos qual foi, em concreto, o equipamento fornecido e, portanto, desconhecemos se a essência e o objecto principal do contrato era o fornecimento desse equipamento, constituindo o trabalho (a montagem desse equipamento) apenas um meio para transformar ou adaptar o bem vendido.
De qualquer forma, afigura-se-nos que a qualificação do contrato não assume, no caso sub júdice, particular relevância, na medida em que apenas se discute o pagamento do preço devido e a respectiva prescrição e, como veremos, para a decisão dessas questões não relevará o facto de estarmos perante um contrato de empreitada ou um contrato de compra e venda.
Prescrição.
Conforme resulta da matéria de facto provada, a A., no exercício da sua actividade profissional, forneceu à R. serviços de engenharia e instalação dos novos estúdios e equipamento no montante de 24.626,90€.
Quer esteja em causa um contrato de compra e venda, quer esteja em causa um contrato de empreitada, é evidente que, por força da sua celebração, recai sobre a Ré a obrigação de pagar o preço devido, ou seja, 24.626,90€.
Ficou provado que a Ré pagou, por conta desse preço, a quantia de 10.000,00€, sendo certo, porém, que a Ré não logrou fazer a prova de ter procedido ao pagamento da restante quantia de 14.626,90€.
Resta saber se ocorre ou não a excepção de prescrição a que alude o art. 317º, b) do Código Civil.
Dispõe a citada norma que prescrevem no prazo de dois anos os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor.
Conforme decorre do disposto no art. 312º do mesmo diploma legal, tal prescrição funda-se na presunção de cumprimento.
Assim, a verificação dessa excepção traduz uma presunção de cumprimento, libertando o devedor do ónus de prova do cumprimento da obrigação e passando a recair sobre o credor o ónus de ilidir essa presunção – mediante a prova do facto contrário (não pagamento), sendo certo, porém, que esta prova (a cargo do credor) não pode ser feita por testemunhas já que aquela presunção apenas pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida se tiver transmitido por sucessão – cfr. art. 313º do Cod. Civil.
Perante a matéria de facto provada, já decorreu, há muito, o prazo de dois anos sobre a data da venda e prestação dos serviços e sobre a data de vencimento da respectiva factura.
Considerou-se, na sentença recorrida, que a referida prescrição de dois anos – estabelecida no citado art. 317º, b) – não é aplicável quando está em causa um contrato de empreitada, razão pela qual não seria aplicável ao caso sub júdice.
É verdade que existem várias decisões da nossa jurisprudência que assim o têm considerado[2], embora esse entendimento não encontre apoio expresso na letra da lei.
Não nos iremos debruçar sobre essa questão, na medida em que, não estando sequer demonstrado que o contrato em causa nos autos seja um contrato de empreitada, a verdade é que o referido prazo de prescrição não poderá aqui ser aplicado, ainda que o contrato em causa seja um mero contrato de compra e venda ou prestação de serviços, enquadrável no citado art. 317º, b).
Com efeito, a verificação da referida prescrição presuntiva pressupõe, além do decurso do prazo de dois anos sobre a data da venda ou execução dos serviços, que o credor seja comerciante e que o devedor não seja comerciante ou que não tenha destinado os produtos ou a prestação ao seu comércio ou indústria
E é, precisamente, a interpretação desta norma que está em causa no presente recurso.
De facto, a sentença recorrida julgou improcedente a invocada excepção por considerar que a prestação em causa se destinou ao exercício comercial do devedor (no caso, a Ré), referindo estar em causa uma dívida contraída por um devedor profissional no e para o exercício da sua actividade profissional e lucrativa.
Discordando dessa interpretação, considera a Apelante que a sentença recorrida parte de uma confusão sobre a actividade das empresas e a qualificação dos seus actos jurídicos. Com efeito, alega, apesar de todos os actos das empresas serem, objectiva e subjectivamente, considerados como actos de comércio, a ressalva contida na citada disposição legal – da qual resulta a inaplicabilidade do referido prazo de prescrição – apenas terá aplicação quando o comerciante ou industrial adquire bens ou serviços para os comercializar, com ou sem transformação ou manufacturação. Assim, conclui, se uma empresa compra uma máquina para o seu negócio, sem que destine essa máquina à venda a retalho (como é o caso dos autos), essa situação não se enquadra na ressalva estabelecida na citada norma e, como tal, é-lhe aplicável o referido prazo de prescrição.
Será assim?
Afigura-se-nos que não.
Segundo dispõe a norma em causa, o prazo de prescrição de dois anos não é aplicável quando os objectos vendidos se destinem ao comércio do devedor ou quando as mercadorias, produtos, execução de trabalhos e gestão de negócios alheios se destinem ao exercício industrial do devedor.
Mas, em que circunstâncias poderemos afirmar que os produtos, mercadorias ou trabalhos se destinam ao comércio ou ao exercício industrial do devedor?
Afigura-se-nos claro que – ao contrário do que pretende a Apelante – essa situação não se restringe aos casos em que os produtos, mercadorias ou trabalhos são adquiridos pelo devedor com vista à sua revenda ou com vista à sua transformação para posterior comercialização, encontrando-se ali abrangidos todos os fornecimentos de bens ou trabalhos, cujo destino tenha conexão com o exercício da actividade comercial ou industrial do devedor e, designadamente, os bens ou os trabalhos que são necessários para o exercício dessa actividade e que são adquiridos com essa finalidade.
Com efeito, as instalações, as máquinas e equipamentos que são necessárias e fazem parte de um estabelecimento comercial ou industrial não se destinam a revenda e posterior comercialização, mas nem por isso se poderá dizer que não se destinam ao exercício do comércio ou da indústria, na medida em que são essenciais e indispensáveis ao efectivo exercício dessa actividade comercial ou industrial.
Citamos, a propósito, um excerto do Acórdão da Relação de Coimbra de 15/02/2005, processo nº 3410/04[3], que é elucidativo da ideia que pretendemos transmitir:
“A prescrição presuntiva de curto prazo protege o consumidor comum. A sua inaplicabilidade entre comerciantes protege o seu comércio. Sendo esta a ideia base, então há-de ter-se em conta tudo o que se prende com a actividade comercial do comerciante; ou seja, não só a aquisição de produtos para revenda, ou transformação e venda, no âmbito da sua actividade, mas para tudo o que com ela esteja intimamente conexo. Não se vê por que razão se há-de fazer uma interpretação restritiva da lei de modo a só incluir o débito do comerciante pela aquisição de produtos que destina a revenda e não já os que destina ao suporte dessa mesma actividade e sem os quais ela não seria possível, designadamente as instalações, máquinas, material de escritório, viaturas, etc. Comprar um veículo comercial para o exercício do comércio não é o mesmo que comprar um automóvel para uso pessoal e familiar. Daí a diferença. Ao revendedor de combustíveis não só não pode assistir o direito do consumidor comum invocar a prescrição presuntiva de curto prazo na compra de combustíveis para revenda, como na compra de tudo o que esteja exclusivamente relacionado com essa actividade. Por conseguinte, o crédito de comerciante, pela venda de materiais de construção a comerciante ou industrial, não prescreve no prazo de dois nos termos do artigo 317.º al. b) do Código Civil, quando se destinam às instalações comerciais ou industriais do comprador”.
Com efeito, nada na letra da lei autoriza a interpretação restritiva que é defendida pela Apelante, segundo a qual, apenas teriam sido ressalvados da aplicabilidade do prazo de prescrição de dois anos, os objectos, produtos, mercadorias ou trabalhos que se destinassem a revenda ou posterior comercialização; o que é ressalvado pela citada norma são os objectos, produtos, mercadorias e trabalhos que se destinem ao exercício comercial e industrial do devedor, onde se inclui tudo aquilo que é necessário e tem conexão com o exercício dessa actividade, ou seja, tudo aquilo que é adquirido pelo comerciante ou industrial com vista à sua utilização no exercício dessa actividade: não só os bens, produtos e mercadorias que se destinam a revenda ou a transformação para posterior comercialização, mas também os bens, produtos e trabalhos que, embora não se destinem a revenda ou comercialização, são necessários e vão ser utilizados no exercício daquela actividade, tais como instalações, máquinas, equipamentos, veículos, etc.
Veja-se, a propósito, o Acórdão do STJ de 09/04/2003, processo nº 03B3336[4], onde se considerou que o crédito emergente de trabalhos efectuados para consertar o edifício onde funcionava uma livraria não estava sujeito ao prazo de prescrição de dois anos, aí se escrevendo que: “O exercício industrial contemplado pela disposição aludida, para excluir a presunção, tem o alcance de um exercício profissional do devedor, no âmbito do qual, e em razão do qual, surgiu a divida accionada, (no caso: ao mandar consertar o edifício, onde funciona a sua Livraria ou a ela destinada)”. Explicitando essa ideia, continua o citado acórdão, dizendo: “Por delimitação negativa: não é uma qualquer "divida exclusivamente civil", feita para um fim privado, não profissional, de um qualquer consumidor de bens ou serviços. Pela positiva: estamos perante uma dívida assumida por um devedor profissional num desempenho profissional e por causa dele, seja esse desempenho um comércio, ou uma indústria, ou uma outra qualquer actividade económica, especialmente, se lucrativa, como era o caso” e conclui afirmando que: “…os créditos dos comerciantes (comerciantes, industriais...etc, ou seja, em geral, os profissionais de certo ramo de actividade económica lucrativa), só estão compreendidos na alínea b), desde que as coisas vendidas ou os serviços prestados, se não destinem a essa actividade económica do devedor, ou porque ele não se dedique a tal actividade, ou porque dedicando-se, destine a coisa ou o serviço para o seu uso pessoal, próprio”.
E, nesta perspectiva, é evidente que o crédito da Autora não está sujeito ao prazo de prescrição de dois anos, que está estabelecido na citada norma, porquanto, como resulta da matéria de facto provada, os serviços e equipamentos fornecidos pela Autora (que envolveram a análise, desenho de projecto, instalação e montagem de equipamento e infra-estruturas de engenharia, designadamente: cablagem e fichas) destinaram-se à construção e apetrechamento dos novos estúdios da R de gravação de som e, portanto, destinaram-se ao exercício da sua actividade comercial ou industrial que consiste na pós-produção áudio, gravação de som, imagem, campanhas publicitárias e informática.
Assim, porque o crédito em causa não está sujeito ao prazo de prescrição a que alude o citado art. 317º, b) – não se presumindo, por isso, o seu cumprimento –, recaía sobre a Ré o ónus de provar o efectivo pagamento do preço devido pelos serviços e equipamentos fornecidos pela Autora.
E, porque a Ré não logrou fazer a prova desse pagamento – no que respeita à quantia de 14.626,90€ – a Ré teria que ser condenada a pagar essa quantia.
Consequentemente, nenhuma censura merece a sentença recorrida, improcedendo o presente recurso.
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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
I. O prazo de prescrição de dois anos – que está estabelecido no art. 317º, alínea b), do Código Civil – não é aplicável quando os objectos vendidos se destinem ao comércio do devedor ou quando as mercadorias, produtos, execução de trabalhos e gestão de negócios alheios se destinem ao exercício industrial do devedor e tal acontece sempre que o destino dos bens, produtos, mercadorias ou trabalhos fornecidos tenha conexão com o exercício da actividade comercial ou industrial do devedor, porque se destinam a revenda ou a transformação para posterior comercialização ou porque, embora não destinem a revenda ou comercialização, são necessários e vão ser utilizados no exercício daquela actividade (como é o caso das instalações, máquinas, equipamentos e veículos que são adquiridos com vista ao exercício dessa actividade e como é o caso dos trabalhos e serviços que são prestados e incorporados nesses bens).
II. Assim, o crédito da Autora – porque emergente do fornecimento de equipamentos e serviços que se destinaram à construção e apetrechamento dos novos estúdios da Ré de gravação de som, estúdios esses que se destinavam ao exercício da sua actividade comercial ou industrial – não está sujeito ao prazo de prescrição de dois anos que está fixado no citado art. 317º, b).
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V.
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.
Porto, 2010/07/08
Maria Catarina Ramalho Gonçalves
Filipe Manuel Nunes Caroço
Fernando Manuel Pinto de Almeida
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[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Cfr. Acórdão do STJ de 29/11/2006, processo 06A3693; Acórdão da Relação do Porto de 15/04/2004, nº convencional JTRP00035520; Acórdão da Relação de Lisboa de 16/07/2009, processo 1485/07.0TJLSB.L1.2 e Acórdão da Relação de Coimbra de 29/04/2008, processo 1278/05.9TBLRA.C1, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Disponível em http://www.dgsi.pt.