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TRANSPORTE RODOVIÁRIO
INFRACÇÃO RODOVIÁRIA
REGULAMENTO COMUNITÁRIO
Sumário
I- A aplicação do art. 10º, nºs 1, 2 e 3 do Regulamento (CE) 561/2006, de 15.03.06, carece de regulamentação pelo direito nacional, nomeadamente no que se reporta à responsabilização objectiva do empregador pelas infracções cometidas a esse Regulamento pelo condutor/trabalhador o que ainda não ocorreu entre nós. II- Praticadas pelo condutor/trabalhador infracções estradais,e às normas que regulamentam os tempos de condução e repouso, em consequência do que foi aplicada “multa” ou coima paga pelo empregador, compete àquele o ónus de alegação e prova de que a prática de tais infracções não proveio de culpa sua, antes são decorrentes de conduta imputável ao empregador. III- Na falta de tal prova, tem o empregador direito de regresso sobre o condutor trabalhador relativamente ao montante da “multa” ou coima paga em consequência da prática das infracções.
Texto Integral
Procº nº 191/09.5TTLMG.P1 Apelação
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 322)
Adjuntos: Des. André da Silva
Des. Machado da Silva (Reg. nº 1424)
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório
B………., Lda, intentou a presente acção com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra C………., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 4.245,00, decorrente das multas por si suportadas em consequência de conduta ilícita do Réu, bem como no pagamento da quantia de € 764,77, a título de indemnização pelo abandono do trabalho, acrescidas de juros de mora à taxa legal, a contar da data da citação.
Alegou, para tanto, em suma, que celebrou um contrato de trabalho com o Réu, em 10 de Março de 2008, mediante o qual este se comprometeu a prestar as funções de motorista, afecto ao transporte internacional rodoviário de mercadorias, mediante uma retribuição mensal.
Mais aduziu que no exercício das referidas funções em 4 de Julho de 2008 o Réu foi fiscalizado pela polícia francesa e condenado no pagamento de uma coima no valor total de €4.245,00, pela prática de várias infracções rodoviárias, a saber, “falsa dupla de motoristas”, desrespeito por medida de imobilização, desrespeito do descanso diário e do horário de trabalho, desrespeito da distância de segurança do veículo da frente.
Acrescentou que tais infracções foram determinadas por condutas do Réu e não por qualquer desconformidade da viatura tendo a Autora procedido ao pagamento das referidas coimas.
Mais alegou que no dia 7 de Julho de 2008 o Réu ao chegar a Portugal deixou o camião estacionado à porta da oficina de mecânica não mais se apresentando ao trabalho razão pela qual em 28 de Julho a Ré comunicou a cessação do contrato de trabalho por abandono do trabalho.
O Réu contestou a presente acção por impugnação alegando, em síntese, que as infracções cometidas foram resultado das ordens e instruções expressas da Autora que pressionava os seus motoristas para chegar ao destino no menor tempo possível ultrapassando os horários de descanso e sob ameaça de despedimento pelo que é a Autora responsável pela prática das referidas contra-ordenações.
Mais aduziu que nunca recebeu formação sobre os horários de trabalho e respectivos dispositivos de controlo.
Concluiu, assim, pela improcedência da acção e condenação da Autora como litigante de má-fé em indemnização de valor não inferior a € 1.000,00.
Proferido o despacho saneador, com dispensa da selecção da matéria de facto, realizada a audiência de discussão e julgamento e decidida a matéria de facto, de que não foram apresentadas reclamações, foi proferida sentença que, julgando a acção totalmente procedente, condenou o réu a pagar á Autora o valor de €5.009,77, acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4% e desde 12 de Maio de 2009 até efectivo e integral pagamento.
Mais se decidiu absolver a Autora do pedido de condenação como litigante de má-fé.
Inconformado, o réu apelou da sentença, formulando, a final das suas alegações, as seguintes conclusões:
A) O Tribunal a quo deu como provado que o Réu foi admitido ao serviço da Autora em 10 de Março de 2008, data a partir da qual passou a trabalhar para a mesma sob as suas ordens, direcção e fiscalização e mediante retribuição, com a categoria profissional de motorista, afecto ao Transporte Internacional de Mercadorias (TIR).
B) Ficou ainda provado que no dia 4 de Julho de 2008, no desempenho das suas funções, o Réu conduzia o veículo de matrícula ..-..-NC, quando foi fiscalizado pela polícia francesa em Verteuil – RN 10.
C) Durante essa fiscalização, os agentes constataram uma série de infracções do motorista, relativamente às normas que disciplinam o transporte pesado de mercadorias, das quais, para o presente recurso, interessam as seguintes:
1 – “Utilização irregular do dispositivo destinado ao controlo das disposições de trabalho. Falsa dupla de motoristas. Despacho 88-1310 – DT 86-1130 – Regulamento CEE 3821/85. Regulamento 561/06 de 15/03/2006”;
3 – “Descanso diário insuficiente de pelo menos 6 horas. Regulamento 561/06 de 15/03/2006. Das 00H40 às 06H30 no dia 4 de Julho de 2008”;
4 – Duração máxima do horário de condução contínua superior de 20%. Regulamento 561/06 de 15/03/2006. Duração 5H25 por 30 minutos de descanso no dia 02/07/2008”;
5 – “Duração máxima do horário de condução contínua superior de 20%. Regulamento 561/06 de 15/03/2006. Duração 10H10”.
D) O artigo 10.º, n.º 3, do Regulamento 561/06 de 15/03/2006, consagra a responsabilidade objectiva das empresas pelas infracções cometidas pelos condutores da empresa.
E) A determinação dessa responsabilidade objectiva impõe à empresa o ónus da prova de que as contra-ordenações procederam de culpa do condutor.
F) É a empresa quem organiza a actividade de transporte, nomeadamente, quem coloca no terreno os meios materiais – veículos – e humanos – os condutores, seus trabalhadores – determinando o seu número, o seu horário de funcionamento, as cargas a efectuar, os tempos de repouso e todos os outros meios organizacionais necessários à prossecução da sua actividade de transporte. O motorista entra nesta organização da empresa como seu elemento, estando sujeito a sanções disciplinares que o podem levar a ser excluído dela, pelo seu despedimento, nomeadamente, em casos extremos de incumprimento grave e reiterado das regras da organização empresarial, também de transporte. Por outro lado, a entidade empregadora tem meios de controlo sobre a actividade do motorista, a começar pelo tacógrafo, o que lhe permite ter domínio, também de facto, sobre a forma de trabalhar dos seus subordinados.
G) A inexistência de prova de que o Réu agiu contra as ordens expressas da entidade empregadora deveria ter como consequência necessária a absolvição do Réu quanto ao pagamento à Autora dos valores correspondentes às contraordenações enumeradas supra.
H) O Douto Tribunal a quo considerou, erradamente, que incumbia ao trabalhador – Réu – provar que a falta de cumprimento dos seus deveres não procedia de culpa sua.
I) É indiferente que as infracções ao Regulamento Comunitário já citado tenham sido “determinadas por condutas do motorista e não por qualquer desconformidade da viatura”, já que o horário de trabalho – mormente, períodos de condução e de repouso – nada tem que ver com a conformidade ou a falta de conformidade da viatura.
J) Ao concluir, em síntese, no seu veredicto, que incumbia ao Réu provar que a falta de cumprimento dos seus deveres não procedia de culpa sua, o que não logrou fazer, e que, por isso, tem a Autora direito a ser ressarcida do prejuízo causado pela conduta culposa do Réu no não cumprimento dos seus deveres laborais, a instância a quo violou, com a douta sentença recorrida, na parte objecto do presente recurso, o preceituado no artigo 10.º, n.º 3, do Regulamento CE 561/05, de 15/03/2006.
K) O Douto Tribunal de Primeira Instância entendeu, erradamente, existir abandono do trabalho, porquanto a partir de dia 7 de Julho de 2008, o Réu não se apresentou mais ao trabalho, nem apresentou qualquer justificação ou comunicação para além do escrito com os seguintes dizeres: “Sr. D…….., peço-lhe por favor que ligue ao Sr. E…….. e que lhe diga que eu fui multado em França e que tentei ligar várias vezes para ele, e não atendeu.
Fiquei lá detido uma tarde e uma noite. Consegui trazer o camião e a carga. Para mim a TIR acabou. Os documentos do camião e da carga estão na Gendarmerie de Rufec – Estrada N10. Está aí a chave do camião e está no camião o telemóvel e os cartões.”
L) A Autora obrigou o Réu a desrespeitar os períodos de condução e de descanso – presunção que a Autora não logrou ilidir –, o que configura uma violação culposa das garantias legais do trabalhador e uma falta culposa das condições de segurança e saúde no trabalho.
M) Ao abrigo do preceituado no artigo 441.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e d) do Código do Trabalho, a referida violação confere ao trabalhador o direito de fazer cessar imediatamente o contrato de trabalho, com fundamento em justa causa.
N) Ao julgar como julgou, a Meretíssima Juiz a quo incorreu em erro na determinação da norma jurídica aplicável e decidiu manifestamente contra a lei, violando o disposto no artigo 440.º, n.º 1 e 2, alínea b) e d) do Código do Trabalho, que é a norma aplicável ao caso sub judice.
O) Atenta a fundamentação de facto deveria o Tribunal a quo ter absolvido o Réu no pagamento à Autora do valor de € 4.169,77 (quatro mil, cento e sessenta e nove euros e setenta e sete cêntimos).
NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS:
1. ARTIGO 10.º, N.º 3, DO REGULAMENTO CE 561/06, DE 15/03/2006;
2. ARTIGO 441.º, N.º 1 E 2, ALÍNEA B) E D) DO CÓDIGO DO TRABALHO.
NESTES TERMOS, E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVE SER DADO TOTAL
PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, CONSEQUENTEMENTE, DEVERÁ A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA SER REVOGADA E, EM CONSEQUÊNCIA, JULGAR-SE A ACÇÃO IMPROCEDENTE, (…)”
A A. não contra-alegou.
O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso, ao qual as partes, notificadas, não responderam.
Foram colhidos os vistos legais.
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II. Matéria de Facto Provada
Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte matéria de facto:
1. O Réu foi admitido ao serviço da Autora em 10.03.2008, data a partir da qual passou a trabalhar para a mesma sob as suas ordens, direcção e fiscalização e mediante retribuição, com a categoria profissional de motorista, afecto ao Transporte Internacional Rodoviário de Mercadorias (TIR).
2. O Réu auferia a retribuição mensal de € 764,77.
3. No dia 4.7.2008, no desempenho das suas funções, o Réu conduzia o veículo de matrícula ..-..-NC, quando foi fiscalizado pela polícia Francesa em Verteuil – RN 10.
4. Durante essa fiscalização os agentes constataram uma série de infracções do motorista relativamente às normas que disciplinam o transporte pesado de mercadorias:
1 - “Utilização irregular do dispositivo destinado ao controlo das disposições de trabalho. Falsa dupla de motoristas. Despacho 88-1310 - DT 86-1130 – Regulamento CEE 3821/85. Regulamento 561/06 de 15/03/2006”;
2 – “Não respeito por motorista de viatura pesada de transporte de mercadorias, com PTAC > 3,5, de uma medida de imobilização”;
3 – “Descanso diário insuficiente de pelo menos 6 horas. Regulamento 561/06 de 15/06/2006. Das 00H40 às 06H30 no dia 4 de Julho de 2008”;
4 – “Duração máxima do horário de condução contínua superior de 20%. Regulamento 561/06 de 15/03/2006. Duração 5H25 por 30 minutos de descanso no dia 02/07/2008”;
5 – “Duração máxima do horário de condução contínua superior de 20%. Regulamento 561/06 de 15/03/2006. Duração 10H10”;
6 – “Condução de viatura sem respeitar a distância de segurança com o veículo que o precede. Artigo R412-12 do Código da Estrada – II III V e VII.”;
5. Todas as infracções foram determinadas por condutas do motorista e não por qualquer desconformidade da viatura.
6. Como consequência dessas infracções foi a Autora multada em € 4.245,00, tendo o veículo ficado imediatamente imobilizado.
7. A Autora procedeu ao pagamento das multas em 12/7/2008, através de cheques da Caixa Geral de Depósitos.
8. No dia 7.7.2008, depois de regressar a Portugal, o Réu deixou estacionado à porta da oficina do Sr. D……… o identificado camião, deixando no seu interior uma comunicação com os seguintes dizeres: “Sr. D…….., peço-lhe por favor que ligue ao Sr. E…….. e que lhe diga que eu fui multado em França e que tentei ligar várias vezes para ele, e não atendeu.
Fiquei lá detido uma tarde e uma noite. Consegui trazer o camião e a carga. Para mim a TIR acabou. Os documentos do camião e da carga estão na Gendarmerie de Rufec – Estrada N10. Está aí a chave do camião e está no camião o telemóvel e os cartões”.
9. A partir dessa data o Réu não se apresentou mais ao trabalho, nem apresentou qualquer justificação ou comunicação para além do escrito supra referido.
10. Por tal facto, a Autora enviou ao Réu em 28.07.2008 uma carta registada com aviso de recepção, onde lhe comunicava a cessação do contrato de trabalho que mantinha com este por abandono do trabalho.
11. Até ao momento o Réu não reembolsou a Autora das multas por esta pagas, resultantes das condutas supra descritas.
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III. Do Direito
1. Nos termos do disposto nos artºs 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1, do CPC (na redacção introduzida pelo DL 303/2007, de 24.08), aplicáveis ex vi do disposto nos artºs 1º, nº 2, al. a), e 87º do CPT (na versão anterior à introduzida pelo DL 295/2009, de 13.10), as conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o objecto do recurso, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.
Assim, são as seguintes as questões a conhecer:
a. Da responsabilidade da A., e não do Réu, pelas infracções cometidas.
b. Direito de o réu fazer cessar o contrato de trabalho com justa causa e se a sentença errou ao concluir ter existido abandono do trabalho.
2. Da 1ª questão
Entende o Réu que o art. 10º, nº 3, do Regulamento (CE) 561/06, de 15.003.06, consagra a responsabilidade objectiva das empresas pelas infracções cometidas pelos seus condutores, pelo que, assim sendo, competia à A. o ónus da prova de que as contra-ordenações procederam de culpa do réu, prova essa que a A. não fez.
Tendo em conta que os factos ocorreram em 2008, ao caso é aplicável o Código do Trabalho (CT), na versão aprovada pela Lei 99/2003, de 27.08[1], ao qual, de ora em diante, nos reportaremos, salvo menção em contrário.
Ainda que a propósito de um recurso contra-ordenacional, sobre a responsabilidade objectiva do empregador pelas infracções aos tempos de repouso cometidas pelos seus condutores no âmbito dos transportes rodoviários de mercadorias, dissemos, em acórdão de 10.10.2009, relatado pela ora relatora e proferido no Processo 20/09.0TTMTS.P1, para além do mais que dele consta, o seguinte:
“(...)
2.2.. Apreciada tal questão, a que importa agora averiguar prende-se com a da possibilidade de imputar à arguida, empregadora, a violação do citado art. 8º do Regulamento (CE) 561/2006 e a prática da consequente contra-ordenação.
É conhecida a querela jurisprudencial que, seja no âmbito da então Lei 116/99, de 04.08, seja no âmbito do Código do Trabalho (versão aprovada pela Lei 99/2003), se colocou a propósito de tal questão.
Aquando da Lei 116/99 e perante a genérica responsabilidade da entidade patronal contida no seu artº 4º, vinha, pelo menos parte da jurisprudência, sustentando a imputabilidade objectiva (ou, pelo menos, a imputabilidade subjectiva “presumida”) da contra-ordenação ora em apreço ao empregador[2].
Contudo, a citada Lei 116/99 foi revogada pela Lei 99/03, de 27.08 que aprovou o Código do Trabalho, passando a vigorar o disposto no seu artº 617º do CT que, de certa forma corresponde a esse artº 4º da Lei 116/99, mas que não contém a genérica responsabilidade do empregador e sendo que o artº 614º do CT se limita a definir como contra ordenação laboral «todo o facto típico, ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma que consagre direitos e imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito das relações laborais e que seja punível com coima.».
Vinha-se assim entendendo, no domínio do CT/2003, que, para a responsabilização da entidade patronal por facto ilícito praticado pelo seu motorista, necessário seria que a decisão condenatória contivesse «materialidade fáctica que impute directamente a pratica do ilícito à empregadora, quer seja a nível de exclusiva autoria, quer de co-autoria, quer de cumplicidade (cfr. art. 26º e 27º do C.Penal), aplicáveis aos ilícitos contra ordenacionais, por força do disposto nos artºs 32º do DL 433/82 e 615º do C.Trabalho.» [3].
Do cotejo das mencionadas disposições, conjugadas ainda com o disposto no artº 7º, nº 6, do DL 272/89, de 19.08, afigurava-se-nos que, verificados que sejam os respectivos elementos (objectivos e subjectivos) da infracção, esta tanto podia ser imputada ao motorista, como à entidade empregadora, sendo certo que o dever de respeito dos tempos de condução e repouso a ambos se impõe: ao motorista, que os deverá observar; ao empregador que, no âmbito do seu poder determinativo e conformativo da prestação laboral, deverá criar as condições a que possa a prestação laboral ser executada pelo trabalhador em conformidade com o que a lei, nessa matéria, impõe.
No entanto, para que se responsabilizasse a entidade patronal pelo facto ilícito praticado pelo seu motorista, tanto mais perante a inexistência de norma idêntica à do art. 4º, nº 1, al. a) da anterior Lei 116/99 (com base na qual alguma jurisprudência sustentava a responsabilidade objectiva ou subjectiva, embora “presumida”, do empregador), necessário seria, como acima referido, que a decisão condenatória contivesse materialidade fáctica que permitisse a imputação da autoria da infracção ao empregador.
Por outro lado, o regime sancionatório contra-ordenacional, nos termos do disposto nos arts. 8º nº 1 do DL 433/82 e 616º do Cód. Trabalho, assenta na culpa (elemento subjectivo), seja na forma de dolo ou negligência, sendo que esta, nas contra-ordenações laborais, é sempre punível. E a esta regra não foge a contra-ordenação prevista no art. 7º nº 1 do DL 272/89, como decorre não apenas das citadas disposições, mas também do art. 6º deste último diploma, nos termos do qual “Nas contra-ordenações sancionadas pelo presente diploma a negligência é sempre punível.”.
Por sua vez, no art. 10º do Regulamento 561/2006, sob a epígrafe “Responsabilidade das empresas de transporte”, diz-se que:
“1. È proibido remunerar os condutores assalariados, mesmo sob a forma de concessão de prémios ou de suplementos de salário, em função das distâncias percorridas e/ou do volume das mercadorias transportadas, se essa remuneração for de natureza tal que comprometa a segurança rodoviária e/ou favoreça a violação do presente regulamento.
2. As empresas de transportes devem organizar o trabalho dos condutores a que se refere o nº1 de modo a que estes possam cumprir o disposto no Regulamento (CEE) nº3821/85 e no capítulo II do presente regulamento. As empresas transportadoras devem dar instruções adequadas aos condutores e efectuar controlos regulares, para assegurar o cumprimento quer do Regulamento (CEE) nº3821/85, quer do capítulo II do presente regulamento.
3. As empresas de transportes são responsáveis por qualquer infracção cometida pelos condutores da empresa, ainda que essa infracção tenha sido cometida no território de outro Estado-Membro ou de um país terceiro. Sem prejuízo do direito que lhes assiste de responsabilizarem plenamente as empresas de transportes, os Estados-Membros podem tornar esta responsabilidade dependente da infracção aos nºs.1 e 2 por parte da empresa de transportes. Os Estados-Membros podem tomar em consideração quaisquer provas susceptíveis de demonstrar que não existem fundados motivos para imputar à empresa de transportes a responsabilidade pela infracção cometida”.
De igual modo, no considerando preambular nº 26 do mesmo diz-se que “Os Estados-Membros deverão determinar o regime das sanções aplicáveis às violações do presente regulamento e assegurar a sua aplicação. As referidas sanções deverão ser eficazes, proporcionadas, dissuasivas e não discriminatórias. (…). As disposições contidas no presente regulamento relativas às sanções ou acções penais não deverão afectar as regras nacionais relativas ao ónus da prova.”[4]
O teor desse considerando preambular veio a ser vertido no seu art. 19º do Capítulo V, sob a epígrafe “Controlo e Sanções”, que dispõe o seguinte:
“1. Os Estados-Membros devem determinar o regime de sanções aplicável às violações do disposto no presente regulamento e no Regulamento (CEE) nº3821/85 e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a sua aplicação. Essas sanções devem ser eficazes, proporcionadas, dissuasivas e não discriminatórias (…)”
Do referido, podemos concluir que foi intenção desse Regulamento prever como princípio/regra a responsabilidade objectiva dos empregadores transportadores pelas infracções cometidas pelos respectivos trabalhadores; não obstante, aí se admitiu também que os Estados-Membros, no âmbito do poder/dever de regulamentação do quadro sancionatório, viessem a prever formas atenuadas dessa responsabilidade objectiva, mormente: (a) enquadrando-a no âmbito de uma verdadeira responsabilidade subjectiva, ao fazer depender a sua responsabilidade da violação, por si cometida, dos deveres previstos nos nºs 1 e 2 do art. 10º do Regulamento; (b) ou, consagrando embora a responsabilidade da empresa transportadora com base numa presunção de culpa, permitir que esta alegue e prove não ter sido responsável pelo seu cometimento.
Certo é que o citado Regulamento não é, nessa parte, directamente aplicável em todos os Estados-membros, já que, contendo normas que carecem de regulamentação pelo direito nacional, necessita de ser concretizado por cada um desses mesmos Estados, nomeadamente no que se reporta à responsabilização objectiva do empregador pelas infracções cometidas pelo condutor.
E, em Portugal, tal ainda não sucedeu, já que as normas em vigor (artºs 8º do DL 433/82, 616º do CT e 6º do DL 272/89) fazem assentar a responsabilidade do empregador na culpa (dolo ou negligência) e tendo o quadro sancionatório previsto no Código do Trabalho como pressuposto essa culpa (cfr. art. 620º do CT, que apenas prevê coimas para as situações de dolo ou negligência, estas integrantes de uma responsabilidade subjectiva, assente na culpa, e não de uma responsabilidade meramente objectiva).
Nem se diga que essa concretização veio a constar do art. 10º, nº 2, do DL 237/2007, o qual refere que “O empregador é responsável pelas infracções ao disposto no presente decreto-lei”. Como dele decorre, a sua aplicabilidade restringe-se às infracções ao disposto nesse diploma. Ora, como acima se disse, a contra-ordenação em apreço não está prevista no DL 237/2007 (mas sim no DL 272/89, art. 7º, nº 1), nem emerge de obrigação que seja nele consignada. Por outro lado, e como também já se deixou dito, o legislador nacional não consagrou o quadro legal sancionatório correspondente à responsabilidade objectiva do empregador, sendo que o regime sancionatório existente (art. 620º do CT na versão de 2003) assenta na responsabilidade subjectiva.
2.3. Em síntese, diremos que:
a) Aos tempos de repouso dos condutores é aplicável o art. 8º do Regulamento (CE) 561/2006 (e não o art. 9º DL 237/2007, de 19.06), consubstanciando a sua violação a contra-ordenação prevista no art. 7º, nº 1, do DL 272/89, que se mantém em vigor.
b) A possibilidade, prevista no Regulamento (CE) 561/2006, da responsabilização objectiva do empregador pela prática dessa contra-ordenação carece de previsão e regulamentação no ordenamento jurídico nacional, quer quanto à consagração dessa responsabilidade, quer quanto ao quadro sancionatório correspondente, não lhe sendo aplicável o art. 10º, nº 2, do DL 237/07.
c) No quadro legal constante quer do art. 7º do DL 272/89, quer do Cód. Trabalho, na versão aprovada pela Lei 99/2003, a responsabilidade do empregador pela violação dos tempos de descanso dependerá da possibilidade de lhe imputar, a título de culpa (dolo ou negligência), a autoria da prática da infracção.
(…)”
Em causa nos presentes autos está o eventual direito de regresso da A. sobre o réu, então trabalhador ao seu serviço, em consequência da “multa” que aquela pagou pelas infracções cometidas por este, referidas no nº 3 dos factos provados.
Ora, não vemos razão para alterar o que acima deixamos transcrito, pelo que consideramos que, no âmbito da responsabilidade contra-ordenacional, tanto a responsabilidade objectiva do empregador, bem como a assente numa eventual presunção de culpa do mesmo pelas infracções cometidas, designadamente no âmbito do Regulamento (CE) 561/2006, não tem, ainda, consagração legal no regime sancionatório nacional vigente que, pese embora o art. 10º, nº 3, do Regulamento (CE) 561/2006, assenta na culpa.
A exclusão do direito de regresso pelas “multas” pagas pela A. no âmbito das infracções ao referido Regulamento e ao Código da Estrada cometidas pelo Réu aquando da condução a que procedia dependia da responsabilidade da A. por tais infracções ou seja, da possibilidade de se lhe imputar a autoria dos factos cometidos e/ou a responsabilidade pelo cometimento dos mesmos.
Na sentença recorrida refere-se, com o que se está de acordo, que “o artigo 121º, nº 1, alíneas d) e f), do Código do Trabalho, que o trabalhador deve cumprir as ordens e instruções do empregador em tudo o que respeite á execução e disciplina do trabalho e velar pela conservação e boa utilização dos bens relacionados com o seu trabalho, estipulando o artigo 363º, do mesmo diploma, que se uma das partes faltar culposamente ao cumprimento dos seus deveres torna-se responsável pelo prejuízo causado á contraparte.
(…)
Ora, conforme resulta do artigo 799º, do Código Civil, incumbia ao Réu provar que a falta de cumprimento dos seus deveres não procedia de culpa sua, o que não logrou fazer.”.
Ou seja, não competia à A. o ónus de alegar e provar que não foi responsável pelo cometimento das infracções perpetradas pelo réu, mas sim a este, que as praticou, que essa prática foi determinada pela A. ou por esta induzida, designadamente face às circunstâncias relativas à execução da prestação laboral por que a A. fosse responsável, prova essa que o Réu não fez, já que a matéria de facto por ele alegada a esse propósito, designadamente que as infracções foram cometidas por ordens e instruções da A. ou que esta não lhe tenha dado formação em matéria de horários de trabalho, foi dada como não provada.
De todo o modo, da matéria de facto provada (nº 5) decorre que todas as infracções cometidas, seja ao Regulamento Comunitário, seja ao Código da Estrada, foram determinadas por condutas do motorista.
E, assim sendo, entendemos que improcedem, nesta parte, as conclusões do recurso.
3. Quanto à segunda questão
Sobre esta questão, diz o Recorrente que a sentença recorrida errou ao considerar que existiu abandono do trabalho, discordância essa cujo fundamento faz assentar no alegado direito à resolução, com justa causa, do contrato de trabalho. E, para tanto, refere que não tendo a A. logrado ilidir a presunção decorrente do nº 3 do art. 10º do citado Regulamento (CE) 561/06, obrigou ela a que o réu desrespeitasse os períodos de condução e descanso, o que, configurando violação culposa das garantias legais do trabalhador e falta culposa das condições de segurança e saúde no trabalho, constituía, nos termos do art. 441º, nºs 1 e 2, als. b) e d), do CT, justa causa para a imediata cessação do contrato de trabalho.
Na contestação, o Réu não invocou, designadamente em contraposição ao abandono do trabalho alegado pela A., o direito à resolução, com justa causa, do contrato de trabalho (seja ele com fundamento na invocada violação das garantias do trabalhador em matéria de segurança e saúde no trabalho, seja com base em qualquer outro fundamento), questão essa que não é de conhecimento oficioso e que não foi submetida, nem, consequentemente, apreciada pela 1ª instância, sendo apenas agora suscitada e invocada no recurso e que, assim, consubstancia questão nova.
Conforme é orientação jurisprudencial pacífica, com excepção das questões de conhecimento oficioso (que não é o caso dos autos), os recursos ordinários são meios processuais de impugnação de anteriores decisões judiciais e não ocasião para julgar questões novas, não se podendo nos tribunais superiores, em recurso, alegar matéria nova[5].
Como, e bem, refere o Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto no seu douto parecer: “(…)
Trata-se, pois, de questão nova de que esta Relação não pode conhecer.
Ora, salvo as questões de conhecimento oficioso, os recursos visam apenas modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matérias ou questões novas que não foram suscitadas ou conhecidas pelo tribunal recorrido, sendo pacífica a jurisprudência no sentido de que a missão do tribunal de recurso é a de apreciar se uma questão decidida pelo tribunal de que se recorreu foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes.
(…).”.
E, assim sendo, não pode esta Relação conhecer do alegado direito à imediata resolução do contrato de trabalho com justa causa, pelo que, também nesta parte, improcedem as conclusões do recurso.
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III. Decisão
Em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Porto, 14.07.2010
Paula A. P. G. Leal S. Mayor de Carvalho
Luís Dias André da Silva
José Carlos Dinis Machado da Silva
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SUMÁRIO
I. A aplicação do art. 10º, nºs 1, 2 e 3 do Regulamento (CE) 561/2006, de 15.03.06, carece de regulamentação pelo direito nacional, necessitando de concretização por cada um dos estados membros, nomeadamente no que se reporta à responsabilização objectiva do empregador pelas infracções cometidas a esse Regulamento pelo condutor/trabalhador, o que ainda não ocorreu, mormente no período de vigência do Código do Trabalho, na versão aprovada pela Lei 99/2003, de 27.08.
II. Praticadas pelo condutor/trabalhador infracções estradais, bem como às normas que regulamentam os tempos de condução e repouso, em consequência do que foi aplicada “multa” ou coima que foi paga pelo empregador, compete àquele o ónus de alegação e prova de que a prática de tais infracções não proveio de culpa sua, mas sim que são decorrentes de conduta imputável ao empregador.
III. Na falta de tal prova pelo condutor/trabalhador, tem o empregador direito de regresso sobre o trabalhador relativamente ao montante da “multa” ou coima paga em consequência da prática de tais infracções.
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[1] Cfr. art. 7º, nº 1, da Lei 7/2009, de 12.02.
[2] Entendendo outros que, ainda assim, tal não dispensava a prova da factualidade de que resultasse o elemento subjectivo (culpa) do empregador na imputação da infracção materialmente praticada pelo seu motorista.
[3] Cfr., entre outros, Ac. RC de 09.03.04, in CJ, 2004, TII, p. 53 e segs.
[4] Com relevância dispõe-se também nos “considerandos” desse Regulamento que: “A responsabilização das empresas transportadoras deverá aplicar-se, pelo menos, às empresas que sejam pessoas singulares ou colectivas e não deverão excluir a autuação de pessoas singulares que sejam autoras, instigadoras ou cúmplices de infracções ao presente regulamento” (considerando 20) e que “No interesse de uma execução clara e eficaz, é desejável assegurar disposições uniformes sobre a responsabilização das empresas transportadoras e dos condutores por infracções ao presente regulamento. Essa responsabilização poderá resultar em sanções de carácter penal, civil ou administrativo, consoante o regime aplicável em cada Estado-Membro” (considerando 27).
[5] Na doutrina, veja-se, entre outros, José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, em comentário aos artºs 676º e 706º; João Espírito Santo, in O Documento Superveniente Para Efeito De Recurso Ordinário e Extraordinário.