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CHEQUE SEM PROVISÃO
CHEQUE POST-DATADO
FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
Sumário
A conduta do agente que, mediante declaração falsa de extravio, obsta ao pagamento do cheque pós-datado, posto que não seja punível como crime de emissão de cheque sem cobertura, não deixa de o ser enquanto crime de falsificação de documento, verificados que se mostrem os respectivos elementos do tipo-do-ilícito.
Texto Integral
Proc. Nº 5562/08.1TAMTS.P1
3º Juízo do T.J. de Matosinhos
Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Na Comarca de Matosinhos, pelo MºPº, foi proferida acusação em Processo Sumaríssimo contra B……… pela prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, al. a) e d) do CP.
Autuado como Processo Sumaríssimo, no 3º Juízo do T.J. de Matosinhos, foi proferido Despacho com o seguinte teor:
“Nos presentes autos de processo sumaríssimo, o Ministério Público acusa B………, solteiro, gerente, nascido em 07/11/1983, da prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punível pelo artigo 256.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Código Penal, requerendo que lhe seja aplicada uma pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez) euros, no valor global de € 1.000,00 (mil euros).
Importa, pois, apreciar o requerimento formulado pelo Ministério Público à luz do disposto no artigo 395°, do Código de Processo Penal.
Dispõe o citado artigo 395.°, n.° 1, que “ juiz rejeita o requerimento e reenvia o processo para outra forma que lhe caiba: a) Quando for legalmente inadmissível o procedimento; b) Quando o requerimento for manifestamente infundado, nos termos do disposto no n.° 3 do artigo 311.°; c) Quando entender que a sanção proposta é manifestamente insusceptível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.
Por sua vez, estipula o artigo 311.°, n.° 3, do Código de Processo Penal que: “ efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime.”.
Pois bem.
Os factos que são imputados ao arguido são, em síntese, os seguintes: o arguido entregou um conjunto de cheques à ofendida, em Fevereiro de 2008, antes da data de vencimento de cada um desses cheques; nos dias 30 de Abril, 28 de Maio e 17 de Junho de 2008, o arguido emitiu três declarações que entregou no banco sacado, para que este não pagasse os cheques quando apresentados a pagamento, invocando como motivo o seu extravio/furto, declarações essas que foram fabricadas pelo arguido, que enviou ao banco sacado, sito em Matosinhos, cujo conteúdo bem sabia não corresponder à verdade.
Vejamos se estes factos são juridicamente enquadráveis na previsão do artigo 256.° n.° 1, alíneas a) e b), do Código Penal.
Ora, nos termos do disposto no citado artigo 256°, n.° 1 “[q]uem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo; b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram; c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento; d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante; e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito; é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.
Com efeito, no crime de falsificação de documentos, “(...) o que a norma protege, mais do que a protecção da fé pública dos documentos, traduzida num sentido geral de confiança nos actos públicos, é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental.” punindo-se assim as condutas que ponham em crise a confiança depositada pela comunidade ou por concretos e particulares destinatários do documento, na autenticidade e seriedade de um documento, sobretudo quando este se destina a provar factos com relevância jurídica (para além de relevância em termos de organização social).
Nas palavras de FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE com a incriminação ora em apreço visa-se proteger “(...) a verdade intrínseca do documento enquanto tal”, e não a protecção do património, nem sequer a confiança na verdade do conteúdo do documento, não obstante, as mais das vezes, andar associado com tipos que visam aquela protecção (v.g. burla e furto).
Relativamente aos elementos objectivos deste tipo de ilícito, verificamos que este crime utiliza, na sua constituição, um elemento normativo, que é o documento (objecto da acção, na medida em que será sobre ele que incidirá a conduta do agente).
Como bem refere HELENA MONIZ “(...) aquilo que constitui o crime de falsificação de documento é não a falsificação do documento enquanto objecto que incorpora uma declaração, mas a falsificação da declaração enquanto documento.”
Por outra banda, entre as modalidades da conduta que o tipo objectivo no aludido artigo 256°, comporta, integra-se, entre outras, o acto de fabricar documento falso, falsificar/alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso e ainda fazer constar de documento facto juridicamente relevante.
Da descrição destas condutas, resulta que a falsificação de documentos, tanto abrange a falsificação material, como a falsificação ideológica
Na falsificação material ocorre uma alteração, modificação total ou parcial do documento, ou seja, o agente imita ou altera algo que está feito segundo uma forma pré-determinada, fazendo-o com a preocupação de criar a aparência de o documento é genuíno ou autêntico. Nestes casos o documento deixa de ser genuíno ou autêntico por haver sido quebrada a normal coincidência entre a autoria real e a autoria aparente.
A falsificação intelectual ou falsidade integra, por seu turno, as hipóteses em conteúdo do documento diverge da declaração emitida ou em que a declaração feita é de facto falso. Nesta situação, o que se verifica é uma desarmonia entre a declaração efectuada e a declaração documentada ou uma narração e/ou descrição de factos falsos, sendo, por isso, em qualquer dos casos, inverídico o conteúdo do documento.
Em suma, a falta de genuinidade que tipicamente corresponde à falsificação material existirá quer quando o documento é elaborado por pessoa diversa daquela de que aparentemente provém, quer quando, apesar de redigido pelo autor real, sofre posteriores modificações que o tornam falso; inversamente será “inverdadeiro” — e, por isso, ideologicamente falso —, quando, apesar de genuíno nos termos indicados, contenha declarações mentirosas, ou a narração e/ou descrição de factos falsos.
Isto posto, importa ainda referir que, doutrinalmente este tipo de ilícito tem sido qualificado como um crime de perigo abstracto (pois o legislador não exige, para a respectiva consumação, a efectiva lesão do bem jurídico tutelado) e de consumação formal (embora exigindo uma realização material, no que respeita à sua execução), que se basta com o preenchimento dos elementos do tipo, causadores de perigo para o bem jurídico tutelado, sendo independente da verificação de um ulterior resultado material que o agente possa paralelamente pretender obter com a sua realização.
A este propósito, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça — Assento n.° 4/2000, de 19/01/2000, in Diário da República, 1 Série, páginas 570 e seguintes, que produziu um trabalho notável a propósito do crime de falsificação, fazendo a distinção entre falsificação material e ideológica. Aí se escreveu: “A falsificação, na definição mais corrente (...) consiste na alteração, adulteração ou viciação da verdade. (...) A falsidade não será, pois, a verdade alterada, mas, sim, a não verdade, (...) ou seja, a relação de desconformidade entre a realidade e a sua representação. Falsificar consistirá, portanto, em, colocando no lugar da realidade uma aparência diversa ou afirmando que é o que não é, ou que não é o que é, determinar um juízo ou representação que não corresponde ou não se adequa à própria realidade. (...) Na falsificação documental distingue-se a material (suposição total ou fabrico de documento antes inexistente, não escrito ou criado pela pessoa que nele se declarou havê-lo feito, ou viciação - por supressão e ou aditamento - dos termos de um preexistente) da ideológica (desconformidade entre o documento genuíno e o que ele documenta). HELENA MONIZ, in ob. cit. páginas 684 e 685 toma a segunda em sentido amplo e, nela, distingue a falsidade intelectual propriamente dita (“desconformidade entre o documento, no sentido de declaração documentada, e a declaração”) e a falsidade em documento (“o documentado, embora conforme com a declaração, incorpora, porém, um facto falso juridicamente relevante, pois o facto declarado não corresponde à realidade”).
Já quanto ao elemento subjectivo exige o n.° 1 do citado artigo 256.° que o agente tenha a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, pressupondo a existência de dolo, em qualquer uma das suas modalidades (artigo 14°, do Código Penal), determinado e dirigido para esse efeito. A intenção danosa tanto pode ser de natureza patrimonial como moral ou envolver até redução de direitos ou outras garantias, em resultado da falsificação.
De notar que as condutas descritas no n.°1 do artigo ora em análise, se praticadas sobre documento previsto no n.°3 daquela norma, implicam uma agravação da moldura penal. Considerou o legislador que tal agravação se justificaria porque a falsificação deste tipo de documentos, dada a sua força probatória como que reforçada, corresponde a uma “especial perigosidade” para o bem jurídico tutelado.
Feitas estas considerações gerais e vertendo ao caso dos autos, resulta da descrição dos factos constantes da acusação pública, deduzida em processo sumaríssimo, que os mesmos não consubstanciam a prática de um ilícito penal, basicamente por duas ordens de razões.
Primeiro, porque, na verdade, a descrita conduta do arguido era abstractamente subsumível ao crime de emissão de cheque sem provisão, pois que a revogação de um cheque com fundamento em falso extravio (v.g. furto) enquadra-se na alínea b) do artigo 11.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.°454/91, de 28/12.
E só não foi deduzida acusação contra o arguido pela prática desse ilícito criminal, aliás, tal como ressalta, desde logo, do teor do despacho de arquivamento prévio à acusação ora deduzida, porque os cheques em referência são efectivamente cheques pós-datados, porquanto os mesmos foram entregues em data anterior à aposta nesses títulos e foi convencionado entre as partes que a ofendida só os apresentaria a pagamento nas datas neles mencionadas, sendo certo que tal conduta, por força da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.° 3 16/97, de 19/11 ao artigo 11.º, n.° 36, do Decreto-Lei n.° 454/91, foi despenalizada, conforme resulta expressamente do mencionado acórdão de fixação de jurisprudência n.° 9/2008.
Não obstante tal despenalização, o certo é que sempre se dirá que entre o crime de emissão de cheque sem provisão e o crime de falsificação existe, pelo menos, nesta parte, uma relação de concurso aparente (de consunção) pois que tal conduta encontra-se integrada de forma unitária na previsão normativa do citado artigo 11.º, n.° 1, alínea b), carecendo, assim, de autonomia para ser alvo de punição em separado.
Neste sentido, escreveu-se nos acórdãos da Relação do Porto de 08/10/1997 e 24/09/1997, segundos os quais: “ conduta do arguido, sacador de cheque, que, com vista ao seu pagamento pelo banco sacado, como veio a acontecer, lhe comunicou por escrito que o mesmo se havia extraviado, o que sabia não corresponder à verdade, deve subsumir-se à previsão do artigo 11. n.° 1, alínea c) do Decreto-Lei n.° 454/91 de 28/12, que se trata de uma norma especial, retirando tal conduta da previsão geral da norma que pune a falsificação de documentos” e “ a carta em que se participa ao banco o (falso) extravio do cheque de meio de proibição do seu pagamento, tem-se por integrado o crime de emissão de cheque sem provisão previsto no artigo 11°, n.° 1, alínea c) do Decreto-Lei n,° 454/91 e não o crime de falsificação de documento, como era orientação normalmente seguida nos Tribunais Superiores antes da entrada em vigor deste Decreto-Lei.”.
Estes argumentos evidenciam, pois, a relação de consunção existente entre os dois mencionados tipos legais de crime, contemplando a punição do crime de emissão de cheque sem provisão a valoração objectiva dos actos integradores do crime de falsificação de documentos, sendo certo que, no vertente caso, é de recorrer aos argumentos aduzidos, concluindo, pois, que o pedido de revogação com fundamento em facto falso, ainda que plasmado em documento, em si mesmo considerado, não é susceptível de preencher, autonomamente, a previsão típica do artigo 256.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Código Penal.
E nunca poderíamos concluir de outra forma só porque, in casu, não está verificado o crime de emissão de cheque sem provisão, por se tratar de cheque pós-datado, como dissemos supra. Conforme se escreveu no recente acórdão da Relação do Porto de 20/05/2009, numa situação idêntica à dos presentes autos, se o crime de falsificação está consumido, não faz sentido dizer-se que há crime de falsificação quando falta um dos requisitos do crime de emissão de cheque sem provisão. Havendo, nestes casos, concurso aparente de normas, apenas uma delas subsiste sob pena de, assim não acontecendo, se violar o princípio ne bis in idem
Em segundo lugar, e com particular relevo, analisando apenas e só a declaração que motivou o não pagamento dos cheques em referência, sempre será de considerar que, in casu, não se está perante documento cuja falsidade seja relevante no âmbito do artigo 256.°, n.° 1, alínea b), sendo certo que, conforme fizemos referência supra, um dos elementos objectivos deste tipo de ilícito é precisamente o documento.
Nos termos do disposto no artigo 255.°, alínea a), do Código Penal, documento é toda e qualquer: “(...) declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.”.
A noção de documento para efeitos penais parte, pois, da exigência de que para existir tem de haver uma declaração compreendida num escrito ou registada em outro meio técnico, ou seja, corporizada num certo objecto material e com as seguintes características: a) inteligibilidade para todos ou para um certo círculo de pessoas, isto é, o seu conteúdo deve estar expresso por forma a que seja geralmente compreendido ou apreendido; b) possibilidade de se saber quem a emitiu, seja ele emitente verdadeiro ou não, o que significa que o autor do documento deve ser identificável através do próprio documento (exclusão, portanto, dos documentos anónimos); e, finalmente, c) idoneidade para provar um facto juridicamente relevante, ainda que a finalidade probatória só lhe seja conferida em momento posterior ao da emissão.
Ou seja, desta noção jurídico-penal de documento extrai-se que o bem jurídico protegido é, como se disse, a segurança e a credibilidade no tráfico jurídico (probatório), sendo certo que não é toda a segurança jurídica, mas apenas a relacionada com os documentos.
Documento, no âmbito penal, é, assim, um conceito amplo que abrange a declaração de vontade ou de facto juridicamente relevante corporizado em qualquer meio material e, ao contrário, da noção de documento em direito civil, consiste na própria declaração e não no suporte em que se contém
Por outro lado, é essencial que o facto tenha relevância jurídica, ou seja, que se destine a provar facto juridicamente relevante, criando, modificando ou extinguindo uma relação jurídica.
Ora, no vertente caso, temos que a declaração corporizada no escrito através do qual se comunicou o “extravio-furto” não é idónea a provar facto juridicamente relevante, ou seja, a demonstrar um facto gerador, modificativo ou extintivo de uma relação jurídica.
Efectivamente, tal declaração através da qual o arguido solicitou ao banco o não pagamento das quantias tituladas nos cheques invocando que esses títulos de crédito foram objecto de furto, sendo embora aceite pela entidade bancária, levou a que os cheques não fossem pagos, mas não prova a efectiva verificação do facto alegado, ou seja, não tem a virtualidade de provar a existência desse facto extintivo da relação jurídica.
Poderá existir uma falsa declaração corporizada num escrito, uma mentira que é plasmada em papel, só que tal escrito não é apto a provar a efectiva existência do vício invocado como fundamento do pedido de não pagamento das quantias tituladas, pelo que não se pode considerar existir uma falsidade em documento (falsificação ideológica) uma vez que tal declaração não é um documento para efeitos penais, não constitui meio de prova da efectiva verificação do facto invocado, nem se destina à prova de tal facto, sendo certo não tem a virtualidade, por si só, de afectar a essência da relação jurídica cambiária ou da relação jurídica subjacente.
Tal declaração tem apenas e só como finalidade a transmissão aos bancos de um pedido de revogação dos cheques e em si mesma nada prova nem pode provar.
Aliás, como se deixou espelhado no acórdão da Relação de Coimbra de 03/12/200810, ainda que a propósito de urna situação diversa, mas com uma argumentação aplicável aos presentes autos, trata-se de “ cujo significado se esgota em “requerer” e não a substanciar o acto requerido. (...) Não se trata de “documento” para valer como meio de prova em si e por si, mas um mero requerimento para ser apreciado por quem de direito.”.
A declaração em causa não prova, nem pode provar, o facto alegado, ou seja, a efectiva verificação do furto, pelo que, por si, não afecta a essência do direito do beneficiário da ordem de pagamento, enquanto sujeito da relação cambiária, mas a mera efectivação imediata dessa mesma ordem de pagamento, no caso de o banco decidir seguir as instruções do sacador.
E sendo assim, então, é de concluir que a conduta em causa não integra a prática de um crime de falsificação de documento, não sendo igualmente punida como crime de emissão de cheque sem provisão, atento o que supra se disse.
Neste sentido foi decidido no acórdão da Relação de Coimbra de 25/06/200811, nos termos do qual “ [a] falsa informação prestada ao banco sacado de extravio ou furto de cheque, com a intenção de obstar ao pagamento desse cheque, integra apenas o crime de emissão de cheque sem provisão, previsto na alínea b), do n.° 1, do artigo 11.º, do Decreto-Lei 454/91, se verificados os demais elementos constitutivos do crime e não o crime de falsificação. (...) Perante um cenário de afastamento desse crime [de emissão de cheque sem provisão] será então possível integrar ainda essa conduta no crime de falsificação de documento? Parece-nos que tal possibilidade, a ser admitida, afrontaria, de forma grosseira, os princípios da especialidade e do ne bis in idem, porquanto é a referida alínea b) do n.° 1 do artigo 11.º que de forma mais especifica e como vimos anteriormente, prevê a conduta do arguido. Acresce que para além disso a prestação da falsa declaração de extravio ou furto destina-se a produzir efeitos no próprio cheque, pois revoga a ordem de pagamento consubstanciada na proibição do pagamento do cheque. Não há pois uma afirmação falsa constante do cheque.”
Desta forma, e pelas razões mencionadas, impõe-se rejeitar o presente requerimento de acusação sob a forma de processo sumaríssimo, por os factos dele constantes não consubstanciarem a prática de um crime de falsificação de documento, sendo assim manifestamente infundado, nos termos do disposto nos artigos 311.°. n.° 2, alínea a) e n.° 3 ex vi 395º, n.° 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.”
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Deste Despacho recorreu o MºPº, formulando as seguintes conclusões:
“1.- O arguido não foi acusado pela prática do crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pela aI. b) do art° 11º, do DL nº 454/91, de 28 de Dezembro, actual redacção, porque não se encontravam verificados os demais elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo daquele ilícito criminal, pelo que foi prolatado despacho de arquivamento, dado tratar-se de cheques pós-datados.
2-. A verificarem-se todos os elementos supra mencionados e integradores do crime de emissão de cheque sem provisão, a conduta do arguido que se consubstanciou no facto de emitir uma declaração cujo conteúdo ele sabia não corresponder à verdade, conteúdo este com efeitos juridicamente relevante, passava a integrar, também eia, a prática do mencionado crime, por força do imposto pelo art° 11º, nº 1, al. b) do DL n° 454/91.
3-.Aquele normativo legal não afasta a verificação do tipo da falsificação. Pode, quando muito, justificar apenas a não punição da falsificação, por estarmos perante um concurso aparente de crimes (consumpção).
4-. Quando não se verificam todos os elementos integradores (objectivos e subjectivos) do crime de emissão de cheque sem provisão a conduta do arguido de emitir uma declaração cujo conteúdo ele sabia não corresponder à verdade, conteúdo este com efeitos juridicamente relevante, preenche o tipo legal de crime p. e p. pelo art° 256°, n°1. als. a) e d), do C. Penal.
5-.O arguido ao emitir tal declaração ao banco actuou com dolo, dolo especifico que preside à incriminação em causa que se traduz na ‘intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa beneficio ilegítimo”.
6-. Não existe violação do princípio “ne bis in idem”, dado que o arguido não é punido pela prática do crime de emissão de cheque sem provisão, será, apenas, pelo crime de falsificação.
7-.No despacho, ora, em crise, foram violados os art°s 256°, n°s 1, als, a) e b), do C. Penal e 311°, n° 2, al. a) e n° 3, ex vi, 395°, n° 1, aI. b), ambos do CPPenal.
Acolhendo o entendimento do recorrente e, consequentemente, revogando a decisão proferida pela Mmª. Juiz a quo”, decretando que a acusação prolatada pelo Ministério Público seja recebida, farão V. Exas. como é de Direito.”
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela procedência do recurso, escrevendo nomeadamente:
“ (…) Ao contrário, porém, do que afirma o M.mº Juiz não nos parece que o facto de, no caso de concurso, o crime de falsificação ser absorvido pelo crime de emissão de cheque sem provisão possa constituir argumento para afastar a punição do crime de falsificação de documento quando o concurso se não verifique porque se não verificam os demais elementos típicos do crime de emissão de cheque sem provisão.
Não estando preenchidos todos os elementos típicos do crime de emissão de cheque sem provisão tal não significa que se não verificam todos os elementos típicos do crime de falsificação e, não havendo razões para o concurso, razões também não há para afastar a punição pela prática do crime de falsificação.
Neste sentido se expressaram os Venerandos Juízes Conselheiros no texto do acórdão de fixação de jurisprudência citado:
“Se é verdade que a proibição do pagamento, à instituição sacada, integra o crime de emissão de cheque sem provisão, tal não afasta a verificação do tipo da falsificação. Pode, quando muito, justificar apenas a não punição da falsificação, por estarmos perante um concurso aparente (consumpção). Contudo, se não se ver os demais elementos do crime de emissão de cheque sem provisão, fica por punir não só o cheque sem provisão, como a falsificação. Daí que, como se diz no acórdão acima citado, não tem sentido argumentar, como também se faz na decisão recorrida, que, integrando a conduta da arguida um dos elementos do crime de emissão de cheque sem cobertura - proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque (art° 11°, n° 1, alínea b), do DL nº 454/91) - haveria violação do principio ne bis in idem, se houvesse punição pela falsificação na medida em que no caso não há procedimento pelo crime de emissão de cheque sem provisão, por se ter entendido não estarem presentes todos os seus elementos constitutivos.”
Também não parece assiste razão ao M.mº Juiz no seu entendimento de que o escrito em que se corporiza a declaração do extravio do cheque e, também, o próprio cheque com o carimbo contendo a declaração de não pagamento por razão de extravio, não constitui documento por não provar facto juridicamente relevante.
É certo que o escrito contendo a declaração de extravio do cheque não prova o extravio, mas prova que o sacador declarou perante o banco sacado que o cheque se extraviou e esta declaração é necessária para que o banco sacado possa recusar o pagamento ou como se diz no acórdão citado pela magistrada recorrente: “justifica a recusa de pagamento por parte do banco...”
Também o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciou no sentido da punibilidade do crime de falsificação, quando não seja punível o crime de emissão de cheque sem provisão, designadamente no acórdão datado de 9/12/99 (citado no acórdão de fixação de jurisprudência atrás referido) no qual se decidiu confirmar a decisão recorrida que tinha condenado o arguido por crime de falsificação agravada de documento, previsto e punido pelo art. 256.°, n.°s 1, alínea a) e 3 do CP, por ter comunicado falsamente ao banco sacado o extravio dos cheques emitidos e entregues:
«Pratica uma falsificação intelectual, e consequentemente um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256.°, n.ºs 1 al. b) e 3, do CP, quem, após a emissão de um cheque, induz dolosamente a instituição bancária sacada à aposição no mesmo de uma falsa declaração de extravio, em ordem a obstar, por esse meio, ao pagamento do título. Na realidade, posto que essa conduta não incida sobre uma facto que não entra na normal finalidade e estrutura do documento, a verdade é que estamos perante um título de crédito à ordem, transmissível por endosso, da qual tal declaração passa a fazer parte, por inserção obrigatória (art. 40.º n.ºs 2 e 3, da LU), consubstanciando um facto, que por ser causal da recusa de pagamento, é juridicamente relevante.»
“Todavia, os cheques, nesse caso, eram pós-datados, não podendo proceder-se por crime de emissão de cheque sem provisão”, acrescenta-se no acórdão de fixação de jurisprudência.
Face ao que fica dito o nosso parecer é no sentido de que o recurso merece provimento devendo ser substituída a decisão recorrido por outra que, recebendo a acusação do Ministério público, designe dia para Julgamento.”
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o MºPº pretende suscitar as seguintes questões:
- Revogação do Despacho que rejeitou uma Acusação em Processo Sumaríssimo, pela prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1 al. a) e d) do CP.
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Pelo MºPº, foi proferida acusação em Processo Sumaríssimo contra B…….. pela prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, al. a) e d) do CP, imputando-lhe o preenchimento, assinatura e entrega, como legal representante da “C………”, à D…….., de 6 cheques, no montante de € 1833,34 Euros, cada um. Posteriormente, emitiu três declarações que entregou no Banco (E…….), pedindo o não pagamento desses cheques, devido a extravio/furto, declaração que era falsa, levando o Banco a não os pagar.
Nessa acusação, o MºPº propôs a pena de 100 dias de multa.
Recebido o Processo em Tribunal e ordenada a sua autuação como Processo Sumaríssimo, foi rejeitado “o requerimento de acusação sob a forma de processo sumaríssimo, por os factos dele constantes não consubstanciarem a prática de um crime de falsificação de documento, sendo assim manifestamente infundado, nos termos do disposto nos artigos 311.°. n.° 2, alínea a) e n.° 3 ex vi 395º, n.° 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.”
A Decisão fundamenta-se no seguinte:
- A conduta descrita era “abstractamente subsumível ao crime de emissão de cheque sem provisão”, pois que a revogação de um cheque, com fundamento em falso extravio, enquadra-se na al. b) do art. 11º, n.1 do DL 454/91 de 28/12, conforme Acórdão uniformizador de Jurisprudência n.º 9/2008 (DR 27/10/2008, 1ª Série A), só não tendo sido deduzida a acusação porque os cheques eram pós-datados (entregues em data anterior à aposta nessas títulos).
Não obstante essa despenalização, entre o crime de emissão de cheque sem provisão e o crime de falsificação, existe uma relação de concurso aparente (consumpção) pelo que, carece de autonomia para ser objecto de punição em separado. E, só porque o crime de cheque sem provisão não é punível, não faz sentido dizer-se que há crime de falsificação, pois este está consumido.
- Em segundo lugar, a declaração emitida, comunicando o extravio/furto, não prova a efectiva verificação do furto (ou do extravio), pelo que, não é “idónea a provar facto juridicamente relevante”.
No recurso, o MºPº defende que, quando se não verificarem todos os elementos integradores do crime de emissão de cheques sem provisão, a conduta de quem emitir uma declaração cujo conteúdo sabe não corresponder à verdade, com efeitos juridicamente relevantes, preenche o tipo legal do crime de falsificação, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1 als. a) e d) do CP (por lapso, por vezes surge referida a alínea b), o que estará, certamente, relacionado com a versão anterior desse artigo).
Neste Tribunal, o Sr.º Procurador-Geral Adjunto, afirma que, não estando preenchidos os elementos típicos do crime de emissão de cheques sem provisão, tal não impede que se verifiquem todos os elementos típicos do crime de falsificação, não havendo concurso aparente, não há absorção.
Por outro lado, “é certo que o escrito contendo a declaração de extravio do cheque não prova o extravio, mas prova que o sacador declarou perante o banco sacado que o cheque se extraviou e esta declaração é necessária para que o banco sacado possa recusar o pagamento ou como se diz no Acórdão citado pela magistrada recorrente: “justifica a recusa de pagamento por parte do banco...”
O MºPº tem razão.
A questão do concurso aparente de normas (e da consequente relação de consumpção), não se coloca, uma vez que, a primeira delas – o art. 11º do DL 454/91, de 28/12, na Redacção conferida pelo DL 316/97, de 19/11 que prevê e pune o crime de emissão de cheques sem provisão, não se encontra preenchida, por os cheques terem sido emitidos com data posterior à sua entrega à tomadora.
Há, pois, apenas que subsumir os factos imputados ao arguido, à norma que prevê e pune o crime de falsificação de documento, neste caso, o art. 256º, n.º1, als. a) e d) (na versão actual, já aplicável à data dos factos).
E – indo apenas aos elementos da previsão que aqui estão em causa -, perante os factos imputados ao arguido, este emitiu declarações falsas de furto/extravio dos cheques, aptas a inviabilizar o pagamento dos cheques pelo Banco sacado.
Tem-se presente que, tratando-se de cheques pré-datados, não são susceptíveis de integrarem a prática do crime de emissão de cheque sem provisão. Mas, continuam a ser títulos cambiários, meios de pagamento imediato (ainda que apresentados antes da data) e à vista da soma neles inscrita (e, susceptíveis, por exemplo, de endosso).
É evidente que, as declarações emitidas não provam a efectiva verificação do furto, ou do extravio. E, neste caso, elas eram falsas.
Mas, eram idóneas, aptas, a inviabilizarem o pagamento imediato desses cheques.
O facto juridicamente relevante é, pois, o de esse pagamento imediato ser inviabilizado pelas falsas declarações emitidas.
Em conclusão, o recurso mostra-se procedente.
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Nos termos relatados, decide-se julgar procedente o recurso, revogando-se a Decisão recorrida, e ordenando-se a sua substituição por outra que receba o requerimento do MºPº, e observe o procedimento previsto no art. 396º do CPP.
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Sem custas.
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Porto, 14/7/2010
José Joaquim Aniceto Piedade
Airisa Maurício Antunes Caldinho