SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
PRÉDIO ENCRAVADO
NOTIFICAÇÃO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
Sumário

I - Para efeitos de direito de preferência, interessa a natureza do prédio no momento em que é oferecido à preferência ou em que esta é exercida e não a sua sorte futura.
II - A situação de prédio encravado é essencial para a constituição de uma servidão legal de passagem mas não no que respeita à constituição de uma servidão de passagem por usucapião; esta pode suprir a falta daquela mas isso não lhe confere a natureza de servidão legal.
III - A notificação/comunicação prevista no n. 1 do artigo 416 do CC (constitui uma verdadeira declaração negocial, traduzindo a proposta contratual correspondente ao projecto de venda que o obrigado à preferência leva ao conhecimento do preferente) tanto vale para os pactos de preferência como para as preferências legais.
IV - Essa comunicação assume o carácter de uma proposta, revestindo a declaração de preferência o significado de uma aceitação; assim, pode o contrato ficar desde logo concluído se as partes manifestam a vontade de uma vinculação definitiva, com observância da forma legal para aquele necessária; quando assim não aconteça, a notificação e a declaração da preferência consubstanciam um contrato promessa, desde que satisfeita a forma exigida.
V - Enquanto os pactos de preferência têm, em princípio, apenas eficácia obrigacional, os direitos legais de preferência têm sempre eficácia real (aqui, o preferente, além de ser titular de um verdadeiro direito de crédito, é titular de um direito real de aquisição).
VI - Constitui orientação do STJ a de reconhecer eficácia real ao direito de preferência e também a de aceitar que, no caso de incumprimento, fica o devedor vinculado à realização do negócio, e o preferente investido no direito potestativo de exigir que, por decisão judicial, seja constituído o direito de propriedade sobre a coisa, não podendo o obrigado retractar-se ou desistir do negócio projectado.
VII - O relegar a liquidação para execução de sentença postula que na acção declarativa seja feita prova da existência dos danos; a fase preliminar dessa liquidação apenas pode servir para quantificar danos.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.
I
A (e mulher) e B intentaram no Tribunal Cível do Porto, em
6 de Junho de 1991, acção com processo sumário (que passou a ordinário em virtude da reconvenção) contra: C e outros.
Pedindo: a) Se reconheça aos autores o direito de haverem para si, através do exercício do direito de preferência, o prédio que identificam no artigo 6 da petição, considerando-se os autores substituídos, como compradores, às pessoas dos
9s. réus, na escritura de compra e venda realizada em 26 de Abril de 1990, em que outorgaram como vendedores os 8 primeiros réus e como compradores os indicados em
9. lugar. b) Se declare ter existido simulação do preço nessa escritura, declarando-se que o preço real foi de 600000 escudos, e reconhecendo-se aos autores o direito de preferência por esse preço. c) Que, a não se entender assim, seja reconhecido aos autores o direito de preferência pelo preço de 1575000 escudos, declarado nessa escritura. d) Se ordene, em qualquer caso, o cancelamento de qualquer registo porventura feito pelos 9s. réus, com base na mencionada escritura. e) A condenação dos 1. a 8. réus (vendedores) a pagarem
à 2. autora a indemnização que vier a liquidar-se em execução de sentença, pelos prejuízos causados pelo incumprimento da proposta negocial contida na carta de 12 de Novembro de de 1989. f) Se declare, no caso de não ser reconhecido aos autores o direito de preferência, que os mesmos são titulares de um direito de servidão de passagem de carro e tractor, através do referido prédio identificado no artigo 6 da petição, em benefício da parte a bravio do prédio rústico denominado "Sobreiro de Cima", identificado no artigo 1, para acesso a este pelo caminho que descrevem e identificam, condenando-se os 9s. réus a reconhecerem e a respeitarem esse direito.
1. Todos os réus contestaram, por impugnação e excepção; os 9s. réus (compradores) deduziram ainda pedido reconvencional.
Após normal processado, foi proferida sentença, a 27 de Março de 1996, que julgou:
- a acção improcedente, quanto ao pedido de reconhecimento do direito de preferência, por caducidade do direito;
- procedente, no respeitante ao reconhecimento do direito de servidão de passagem, com a consequente condenação dos
9s. réus nos termos deste pedido;
- prejudicado o pedido reconvencional, face ao não reconhecimento do direito de preferência.
2. Inconformados, os autores e os 9s. réus interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que por acórdão de 16 de Junho de 1997:
- declarou nula a decisão recorrida, na parte em que não conheceu do pedido de indemnização formulado na transcrita alínea e), e, conhecendo do objecto da apelação nos termos do artigo 715 do CPC, julgou improcedente tal pedido, dele absolvendo os réus;
- confirmou, no mais, a sentença recorrida.
É deste acórdão que os recorrentes - autores e 9s. réus - trazem a presente revista.
3. Ofereceram os autores alegações, em que concluíram:
"I) - Sendo os Autores, ora apelantes, proprietários de um prédio rústico, afecto a cultivo e bravio, com a área de cerca de 9000 m2 gozam do direito de preferência na venda de um prédio rústico contíguo, de lavradio e parte afecta a cultura de mato, pinheiros e eucaliptos, a quem não era proprietário confinante, nos termos do artigo 1380 n. 1 do Código Civil, como aliás não vem posto em causa;
II) - Quer o preço, quer o prazo para o seu pagamento sobretudo se for curto e de montante elevado - são condições essenciais do negócio, dado o seu relevo para a decisão de exercer ou não o direito, e deles deve ser dado conhecimento preciso e rigoroso ao preferente, para que este possa decidir-se;
III) - Não existe identidade entre um projecto de venda em que se refere como preço o montante de 1500000 escudos, com um pagamento inicial de um sinal de 500000 escudos e o restante no acto da escritura, a realizar no prazo máximo de dois meses, e a venda realizada e constante da escritura em que o preço é de 1575000 escudos e é realizada (e o preço, pelo menos na parte excedente ao sinal, pago) cerca de 5 meses depois;
IV) - Não tendo sido oferecida a preferência relativamente
à venda com as cláusulas constantes da escritura - preço de 1575000 escudos e pagamento de 5 meses depois de anunciada a venda - só a partir do conhecimento da venda com essas cláusulas se iniciou o prazo para o exercício do direito de preferência;
V) - O facto de os Autores não terem respondido no prazo de 8 dias à carta em que lhes era oferecida a preferência por um preço e condições de pagamento diferentes daquelas que vieram a ser as que foram observados na escritura é assim irrelevante, e não pode ter levado à caducidade do direito de preferência dos Autores, nos termos do artigo
416 n. 2 do Código Civil, que pressupõe a fiel comunicação das cláusulas do contrato, sendo que, no caso, não só o preço como o prazo de pagamento eram essenciais para os preferentes tomarem a decisão de exercer o seu direito;
VI) - Assim, não se tendo provado que os Autores tivessem tomado conhecimento daquelas cláusulas em momento diferente daquele em que obtiveram a fotocópia da escritura de compra e venda, e tendo a acção sido instaurada no prazo de 6 meses a contar dessa obtenção, é manifesto que lhes assiste o direito de preferência, por o terem exercido dentro do prazo previsto no artigo 1410 n. 1 do Código Civil e terem depositado o preço devido no prazo aí indicado;
VII) - Tendo os 1. a 8. Réus, vendedores, escrito à
2. Autora e recorrente B, oferecendo-lhe a preferência na venda do citado prédio pelo preço de 600000 escudos, e tendo aquela Autora aceitado essa proposta, por carta que lhes dirigiu dentro do prazo de 8 dias, fixado na proposta, esta tornou-se irrevogável depois de recebida pela destinatária, durante o prazo fixado para a aceitação, nos termos dos artigos 230 n. 1 e 229 n. 1 alínea a) (tratar-se-á aqui de um lapso) do Código Civil;
VIII) - Assim, não a tendo os proponentes cumprido, e tendo mesmo tornado impossível a prestação a que se obrigaram, por terem vendido o prédio a outrem, constituíram-se na obrigação de indemnizar pelos prejuízos causados à destinatária, nos termos dos artigos 798 e 801 n. 1 do Código Civil;
IX) - Tais prejuízos resultam necessariamente do facto de a preferente, pela procedência do pedido de preferência, vir a ter que desembolsar 1575 contos pela aquisição do prédio em lugar dos 600 contos constantes da proposta que lhe foi feita e aceitou, ou, no caso de improcedência daquele pedido, ficar privada do prédio que tinha o direito de adquirir por 600 contos;
X) - Tais prejuízos consistem, naturalmente, na diferença entre a situação em que estaria se aquela obrigação fosse cumprida (integrando no seu património o prédio contra o pagamento de 600 contos) e aquela em que se encontra tendo que desembolsar pelo prédio 1575 contos no caso de procedência do pedido de preferência, ou ficando privada do prédio no caso de improcedência daquele pedido);
XI) - Assim, e ao contrário do entendido pelo douto acórdão recorrido, é manifesto que se encontra provada a sua existência e nexo de causalidade com o facto dos referidos Réus, apenas não sendo possível afirmar, neste momento, o seu quantitativo, porque dependente de factos que neste momento se ignoram (procedência ou improcedência do pedido de preferência);
XII) - Consequentemente, deverá o seu quantitativo ser liquidado em execução de sentença, como o permite o artigo
564 n. 2 do Código Civil;
XIII) - Deste modo deve, na procedência do recurso, e revogando o douto acórdão recorrido, ser atribuído aos Autores o direito de preferência invocado, dado não ter caducado, e condenados os 1. a 8. Réus a pagar à 1.
Autora a indemnização que se vier a liquidar em execução de sentença".
Os autores também apresentaram contra-alegações.
4. Por seu turno, os réus - que não deixaram igualmente de oferecer contra-alegações - remataram as alegações com as seguintes conclusões:
"a) Nos presentes autos (que retratam uma "acção de preferência") os Autores - 1. Recorrente também cumulam uma (como que...) "acção de constituição de servidão" (onde eles pedem que sejam declarados "titulares de um direito de servidão de passagem..." - Cf.-. alínea f), do seu pedido), acção esta com uma causa de pedir totalmente diferente, de natureza diversa, de que, assim, resultam pedidos incompatíveis entre si, o que a Lei adjectiva não permite - artigo 470 do C.P.C.; b) O prédio vizinho, dos Autores - 1s. Recorrentes, não é um prédio encravado, tendo frente para a via pública confinante, como resulta expressamente do teor das respostas aos Quesitos 20 e 21 - Cf.: artigo 1550 n. 1 do C.C.; c) Não pode declarar-se o reconhecimento de uma servidão de passagem a favor de um prédio não encravado, como é o caso do prédio dos Autores - 1s. Recorrentes, dado que, para tal "declaração", primeiro tem sempre de se verificar a existência de um prédio encravado e só depois é que se pode reconhecer a existência de uma servidão, ainda que constituída por usucapião; ou seja, aquela primeira condição (existência, ou não, de um prédio encravado) prevalece e releva quanto à segunda (a forma ou o modo como a servidão é - ou foi... - constituída - se por contrato, testamento, usucapião, destinação do pai de família, sentença judicial ou decisão administrativa). d) Não pode haver servidão sem um prédio encravado... Do mesmo modo que, decorrentemente, também não pode declarar-se o reconhecimento de uma servidão de passagem (seja ela constituída por que modo for...) sem igualmente haver, como é por demais óbvio e líquido, um mesmo prédio encravado - o contrário seria um verdadeiro absurdo e/ou contra-senso, que a Lei não concede. Cf.: Artigos 1547 e 1550 n. 1, ambos do Código Civil. e) Também não pode decretar-se o reconhecimento de uma servidão de passagem sem se declarar e descrever convenientemente o modus da sua existência, o seu conteúdo, a maneira do seu exercício e a sua extensão - o que não vem expressa e devidamente enunciado na petição inicial. Por outro lado, f) O prédio dos Réus - 2s. Recorrentes (subordinados), aqui Alegantes, já não é um prédio rústico - mesmo ao tempo da propositura da presente acção (Junho/1991) -, sendo antes de natureza urbana, como se alcança do teor das respostas aos Quesitos 27, 32, e 42 a 52, de modo que o mesmo (prédio) já não pode ser onerado com uma servidão legal de passagem. Cf.: Artigos 204 n. 1, e 1550 n. 1, ambos do Código Civil".
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
O acórdão recorrido deu como assentes os factos que a sentença da 1. instância considerou provados, nos termos que seguem:
Especificação:
"- Os 1s. Autores são titulares da raiz ou nua propriedade, sendo a 2. Autora do respectivo usufruto, de um prédio rústico denominado "Sobreiro da Cruz", parcela de terreno essa destinada a cultivo e em parte bravio, com a área de 9000 m2, sito no lugar da Lomba, freguesia do mesmo nome, Concelho de Gondomar, inserido a favor dos referenciados Autores na respectiva matriz sob o artigo 527 e descrito na C.R.P. de Gondomar sob o n. 0191/160490 - Lomba. (A)
- Prédio esse que confronta, a Sul, com um outro prédio rústico, a bravio, afecto a cultura de mato, pinheiros e eucaliptos, denominado "Forcado", com a área de 4500 m2, inscrito a favor dos 9s. Réus na respectiva matriz no artigo 526 e descrito na C.R.P. Gondomar sob o n. 10436, que aliás confronta também pelo norte com outro prédio rústico dos Autores. (B)
- Ambos os identificados prédios confrontam pelo nascente com estrada municipal. (C)
- Em 12 de Novembro de 1989, os primeiros oito Réus dirigiram à 2. Autora uma carta, dando-lhe conta da sua intenção de venderem o prédio identificado em (B), pelo preço de 600 contos, a pagar nas condições ali referidas (sinal de 100 contos e o restante no acto da escritura) e concedendo-lhe o prazo de 8 dias para declararem se pretendem usar do seu direito de preferência - doc. fls. 20. (D)
- Porque os Autores estavam interessados na sua compra, a Autora, logo em 17 de Novembro de 1989 - respondeu à citada carta dos Autores, (como é óbvio, deve ler-se réus) informando-os pretender usar a faculdade que lhes assistia e pedindo para ser indicado o dia e local para a concretização da transacção, nos termos propostos pelos ditos Réus - doc. fls. 21. (E)
- Porém, em 28 de Novembro de 1989, os Réus em causa escreveram nova carta àquela Autora informando que o valor inicialmente proposto, no montante de 600000 escudos, era um valor desajustado (...); que continuavam interessados na sua venda, mas pelo valor de 1500000 escudos; que tinham uma pessoa interessada, a Sra. Maria José Ferreira (aqui 9. ré); que o preço seria pago da seguinte maneira: sinal de 500 contos e os restantes 1000 no acto da escritura (...) e que esta deverá efectuar-se no prazo máximo de 2 meses, no Cartório Notarial de Rio Tinto - doc. fls. 22. (F)
- Por escritura pública de 26 de Abril de 1990, do cartório notarial de Rio Tinto, os oito primeiros Réus venderam à 9. ré (Maria José dos Santos Ferreira) o terreno denominado "Forcado", a bravio, sito no lugar de Forcado, Lomba, Gondomar, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 526 e descrito na C.R.P. de Gondomar sob o n. 10436, pelo preço global de 1575 contos, que declararam já terem recebido - docs. fls. 23 a 28 (G)
Respostas aos quesitos:
- Partindo da estrada municipal existe um caminho em terra batida, com a largura de cerca de 2,5m, bem marcado pela continuada passagem de rodados de carros e tractores, em dois trilhos paralelos. (1)
- O qual se desenvolve no sentido nascente-poente, de forma aproximadamente paralela à parede em pedra que serve de confrontação entre os prédios identificados respectivamente em (B) e (A). (2)
- A certa altura do seu percurso, percorridos cerca de
50 m., a contar do início, na referida estrada municipal, a aludida passagem bifurca-se em dois ramais, com as mesmas características referidas em (1) (3).
- Seguindo um dos ramais em frente, vai-se desembocar num prédio rústico, pertença de um tal Celestino Ferreira, constituindo o único acesso desse prédio à via pública.
(4)
E o outro inflecte para norte, penetrando no prédio rústico dos Autores, através de uma abertura na parede da vedação. (5)
- Achando-se o respectivo leito calcado e trilhado, e bem diferenciado dos terrenos marginais, para além da dita abertura na parede. (6)
- Desde há mais de 5, 10, 15 e 25 anos que os Autores e seus antecessores passam no referido "caminho" com carros e tractores para acesso à parte bravia do seu prédio. (7)
- Fazendo-o à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, nomeadamente dos donos do prédio em que a dita passagem se localiza, ininterruptamente, na convicção de exercer um direito próprio e de não lesar direitos alheios. (8)
- E é pela estrada municipal que se faz o acesso à parte cultivada do prédio dos Autores. (9)
- A vantagem da mencionada passagem resulta do facto de, assim, evitar o atravessamento da parte cultivada do prédio dos Autores para atingir a parte bravia, situada mais atrás. (10)
- Os Autores obtiveram prova da escritura pública (de fls.
23 a 28) em 1 de Março de 1991. (11)
- O prédio identificado (B) situa-se entre dois prédios pertença dos Autores. (19)
- Os três prédios em questão têm frente para a via pública. (20)
- E a sobredita estrada municipal, que dá acesso ao dito lugar da Lomba, a partir da EN que segue de Gaia para Castelo de Paiva, abrange o lado norte, ou nordeste, de tais prédios. (21)
- O dito Celestino Ferreira é dono e legítimo possuidor de um prédio, para o interior (sul), sem qualquer ligação à via pública. (23)
- A venda referida em (G) esteve vários meses "anunciada" num café do próprio lugar da Lomba. (26)
- O prédio em causa dá para construção. (27)
- Os Autores não responderam à carta especificada em (F)
(ou seja: a de 28 de Novembro de 1989). (29)
- Os Autores tiveram conhecimento do teor dessa carta.
(30)
- A ré Maria José mandou desbravar a dita parcela do terreno, procedendo-se aí ao corte de sobreiros. (32)
- A Autora B possui residência no lugar da Lomba, onde vão amiúde os seus co-Autores. (34)
- Onde, aliás, deflagrou um incêndio, no Verão de 1990.
(35)
- Estando, nessa altura, presente uma familiar (mãe do Autor A) foi a mesma esclarecida que tal prédio era pertença dos nonos Réus. (36)
- Os oito primeiros Réus resolveram efectuar uma avaliação
à dita parcela de terreno. (38)
- Os nonos Réus pretendem edificar, na parcela de terreno em causa, um armazém industrial, que servisse às "artes" dos mesmos. (42)
- Obra essa há algum tempo iniciada no local, e com projecto aprovado pela Câmara Municipal de Gondomar. (43)
- A qual foi orçada em 2800 contos. (44)
- Por conta do qual os nonos Autores já entregaram e pagaram a quantia de 1300 contos. (45)
- No tocante ao telhado dessa obra, que foi orçado em 1500 contos, os nonos Réus já entregaram e pagaram por conta a quantia de 500 contos. (46)
- Os nonos Réus, ao efectuarem a ligação da água à rede pública, despenderam a quantia de 50176 escudos e 40 centavos. (47)
- E a quantia de 30000 escudos no concernente ao "projecto" e respectiva licença municipal. (48)
- As sisas montaram a 126 contos. (49)
- O custo da escritura pública em referência, pago pelos nonos Réus, cifrou-se em 25460 escudos. (50)
- E pelo registo a seu favor, do prédio em causa, os nonos Réus pagaram, na CRP Gondomar, a quantia de 11450 escudos.
(51)
III
O acórdão recorrido equacionou as várias questões suscitadas nas alegações dos recorrentes - as quais delimitam o âmbito do recurso (artigos 684, n. 3, e 690, n. 1, do CPC) -, para todas elas buscando o enquadramento jurídico julgado adequado.
Uma nota prévia se justificará para dizer que, na sua grande maioria, as alegações ora produzidas neste recurso de revista, acompanham de muito perto, por vezes textualmente, as que foram oferecidas com o recurso de apelação (usa-se mesmo o termo "apelantes"), reproduzindo argumentação sobre a qual a decisão recorrida teve já o ensejo de reflectir e ponderar.
Sem embargo de a (im)procedência do pedido do reconhecimento do direito de preferência se apresentar como prévia e prejudicial (pelo menos quanto ao pedido de reconhecimento do direito de servidão e ao pedido reconvencional formulado pelos compradores), optamos por seguir a mesma (ou próxima) metodologia de abordagem que o acórdão recorrido, porventura ao arrepio de uma aproximação mais lógica.
Vejamos, então, cada uma das questões de per si, começando pelo
RECURSO dos RÉUS
1. Cumulação de Pedidos (reconhecimento do direito de preferência e reconhecimento do direito de servidão de passagem)
A decisão recorrida considerou que esses pedidos são perfeitamente compatíveis, a ambos correspondendo o processo comum, nada obstando, pois, à sua cumulação.
Antes do mais cumpre sublinhar, aliás na linha daquela decisão, que a questão ora em apreço "foi apreciada no saneador (fls. 84), e com trânsito" (com efeito, pode ler-se nesse despacho que inexiste a invocada ilegalidade de cumulação de pedidos, já que o pedido da alínea f) da petição inicial é um pedido de reconhecimento da existência de uma servidão de passagem, que não de "constituição de uma servidão", cabendo ao pedido em causa a forma de processo comum e não a especial).
É óbvio que nunca se poderia afirmar uma incompatibilidade processual entre esses dois pedidos, ambos seguindo a tramitação do processo comum de declaração.
Todavia, com mais rigor se dirá que o referido pedido formulado sob a alínea f) se apresenta claramente como um pedido subsidiário, como ressalta dos próprios termos:
"no caso de não ser reconhecido aos autores o direito de preferência, ser declarado que estes são titulares de um direito de servidão de passagem..." (e assim sendo, excluída fica à partida toda e qualquer incompatibilidade, pois o pedido subsidiário é para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior - artigo 469 do CPC).
2. Servidão de Passagem:
Confirmada foi a decisão da 1. instância na parte em que reconheceu aos autores o direito de servidão de passagem
- de carro e tractor, em benefício da parte a bravio do prédio dominante -, constituída por usucapião, sobre o prédio dos réus.
Réus que se insurgem contra o assim decidido, fundamentalmente por três ordens de razões: a) o prédio onerado já não é um prédio rústico (mesmo ao tempo da propositura da acção), sendo antes de natureza urbana; b) não pode decretar-se o reconhecimento de uma servidão de passagem, sem se declarar e descrever convenientemente o modus da sua existência: o seu conteúdo, a maneira do seu exercício e a sua extensão; c) não pode haver uma servidão, sem um prédio encravado.
Tendo o acórdão rebatido, com acerto, as razões acabadas de sintetizar - no tocante à matéria da alínea a), salientou que o que interessa é a natureza do prédio no momento em que é oferecido à preferência ou em que esta é exercida, e não a sua sorte futura, no que à alínea b) tange, remeteu para as respostas aos quesitos de onde constam esses elementos -, limitar-nos-emos a breves considerações suplementares sobre a matéria da alínea c).
Sobre ela, começa o acórdão por advertir para uma confusão: os autores não pedem a constituição de uma servidão de passagem, mas o reconhecimento de uma servidão de passagem constituída por usucapião, o que não pressupõe a existência de um prédio encravado (também os autores, nas contra-alegações - fls. 287 e 288 - recordam que jamais formularam qualquer pedido de "constituição de servidão", mas tão-só e apenas o de declaração do reconhecimento de uma servidão preexistente, constituída por usucapião).
2.1. Após os artigos 1543 e 1544 do CC nos darem a noção e conteúdo de servidão, dispõe o artigo 1547:
"1. As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família.
2. As servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos".
Há, pois, que distinguir entre servidões legais e voluntárias: aquelas derivam da lei, enquanto as segundas são constituídas no âmbito da autonomia da vontade.
Só as servidões aparentes podem ser constituídas por usucapião, considerando-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes (artigo 1548).
Os artigos 1550 e 1556 regem sobre servidões legais de passagem, dispondo o primeiro deles sobre a faculdade que o proprietário de prédio encravado tem de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.
2.2. Mas se a situação de "encravado" do prédio é essencial para o exercício desse direito potestativo, visando a constituição de uma servidão legal de passagem, o mesmo já não sucede no que respeita à constituição de uma servidão de passagem por susucapião.
Neste sentido se tem orientado a jurisprudência deste STJ, justificando-se, pela sua pertinência, um apelo mais detalhado ao acórdão de 1 de Fevereiro de 1994, Processo 84430, 1. Secção, de onde se extraem alguns passos mais significativos: na servidão de passagem adquirida por usucapião, a passagem faz-se através da faixa de terreno possuída e que é revelada por sinais visíveis e permanentes (n. 2 do artigo 1548) e não pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados, como sucede na servidão legal, face ao artigo 1553; pode a servidão de passagem adquirida por usucapião suprir a falta de uma servidão legal nos termos do artigo 1550, mas isso não lhe confere a natureza de servidão legal; as servidões constituídas por usucapião criam um direito de passagem ex novo por ser a usucapião um modo de aquisição originária, nada tendo a ver com o exercício do direito potestativo conferido pelo artigo 1550 (cfr., também, os acórdãos de 16 de Janeiro de 1996, Proc. 87824, de 2 de Outubro de 1997, Proc. 708/96, de 26 de Fevereiro de 1998,
Proc. 780/97 da 2. Secção).
Não colhe, portanto, a argumentação que os réus recorrentes vêm esgrimindo sobre este ponto, desde a
1. instância.
IV
A problemática suscitada pelo recurso dos AUTORES - que, a encerrar as suas conclusões, pedem lhes seja atribuído o direito de preferência (dado não ter caducado), e a condenação dos 1s. a 8s. réus a pagar à 1. autora a indemnização que se vier a liquidar em execução de sentença (conclusão XIII) - revela-se mais delicada e complexa, gerando alguma divergência a nível doutrinal e jurisprudencial.
1. Antes do mais, vejamos as normas legais pertinentes, que podem ser chamadas à colação nesta matéria específica.
Dispõe o artigo 1380 do Código Civil:
"1. Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante. (...)
4. É aplicável ao direito de preferência conferido neste artigo o disposto nos artigos 416 a 418 e 1410, com as necessárias adaptações".
Estabelece por seu turno o artigo 416:
"1. Querendo vender a coisa que é objecto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato.
2. Recebida a comunicação, deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade, salvo se estiver vinculado o prazo mais curto ou o obrigado lhe assinalar prazo mais longo".
E reza assim o artigo 1410, n. 1:
"1. O comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos oito dias seguintes ao despacho que ordene a citação dos réus".
2. Comece-se por sublinhar e reter que a notificação/ /comunicação prevista no transcrito n. 1 do artigo 416 tanto vale para os pactos de preferência como para as preferências legais (mediante remissão feita caso por caso), aspecto em que não se detectam divergências (ver, por todos, Henriques Mesquita, "Obrigações Reais e Ónus Reais", Livraria Almedina, 1990, p. 208, nota 130, e Carlos Lacerda Barata, "Da Obrigação de Preferência",
Coimbra Editora, 1990, p. 19).
2.1. A comunicação para preferir levanta delicados problemas de ordem jurídica, em vários planos, situando-se a maior complexidade - por isso mesmo, compreensivelmente geradora de algumas divergências - a nível da sua natureza jurídica e efeitos.
Denominada "denutiatio" pelo CC italiano, deve ela indicar as "condições propostas por terceiro".
O CC brasileiro fala de "apontação", que deve indicar "preço e vantagens que terceiros oferecem pela coisa".
De várias disposições, a doutrina francesa retira que ela deve indicar as condições aceites por terceiros.
A moderna doutrina alemã chama a este dever de comunicar "deveres de prestação de informação derivados", por nascerem da lei e não de um acordo.
A doutrina italiana, em geral, considera a comunicação como uma proposta contratual, revogável para uns e irrevogável para outros.
2.2. Ocupando-se dos efeitos da comunicação prevista no artigo 416, n. 1 do CC, Vaz Serra (RLJ, ano 101, pp. 233 e ss.), distingue:
- se o contrato não depender de formalidades, a declaração do titular do direito de preferência de que exerce esse direito, aperfeiçoa o contrato, pois representa a aceitação da proposta contida na comunicação;
- se o contrato depender de forma não contida na comunicação e na declaração do preferente, observar-se-ão as regras gerais sobre cumprimento de obrigações sem prazo certo (artigo 777 do CC).
Assim, segundo o Professor que estamos acompanhando, quando a comunicação e a declaração do preferente constarem de documento assinado, ficou concluído entre as partes (proponente e aceitante) um contrato, não de compra e venda de imóvel, mas de promessa de compra e venda.
Essencialmente no mesmo sentido, se pronunciou Mário Júlio de Almeida Costa, "Direito das Obrigações", 6. ed.,
Livraria Almedina, 1994, pp. 373-374: a comunicação prevista pelo artigo 416 assume "ope legis" o carácter de uma proposta de contrato, revestindo a declaração de preferência o significado de uma aceitação; assim, pode o contrato ficar desde logo concluído se as partes manifestam a vontade de uma vinculação definitiva, com observância da forma legal para aquele necessária; quando assim não aconteça, a notificação e a declaração da preferência consubstanciam um contrato promessa, desde que satisfeita a forma exigida.
Sobre este ponto específico, Antunes Varela ("Direito das Obrigações", vol. I, 9. ed., p. 391), considera que se a notificação tiver já o sentido de uma proposta contratual, como normalmente acontece, e o contrato não depender de forma especial, a declaração de querer preferir feita pelo notificado aperfeiçoará desde logo o contrato, valendo como aceitação da proposta (neste sentido, também, a jurisprudência do STJ, como ressalta dos acórdãos de 17 de Abril de 1997, Proc. 820/96, 2. Secção, de 22 de Abril de 1997 e 14 de Janeiro de 1998, respectivamente Proc. 805/96 e 880/97, ambos da 1. Secção).
Segundo Inocêncio Galvão Teles ("Direito das Obrigações",
7. ed., Coimbra Editora, 1997, p. 168), a notificação para preferir e a declaração para preferir formam, pelo seu encontro, um contrato-promessa, desde que na hipótese concreta obedeçam ao formalismo legalmente prescrito para ele, possuindo a primeira o significado de proposta e a segunda de aceitação, corporizando as duas, no seu conjunto, a promessa bilateral ou recíproca de compra e venda.
Acrescente-se que este mesmo Professor, já antes havia ponderado (p. 162):
"Verdadeiramente, a preferência supõe que o obrigado a ela ajustou com terceiro fazer-lhe a venda em determinadas condições e se propõe vender ao titular nas mesmas condições (tanto por tanto). O obrigado à preferência poderá, na prática, seguir caminho mais curto, dirigindo-
-se logo ao beneficiário e manifestando-lhe a intenção de lhe fazer a venda nas condições tais e tais, independentemente de prévio ajuste com terceira pessoa.
Mas nesse caso, em bom rigor, sai-se do âmbito do instituto da preferência e o que se faz é um convite para contratar ou, quando muito, uma proposta de venda ou uma proposta de promessa de venda (consoante a comunicação revista a forma exigida para a venda ou apenas a exigida para a promessa)".
Também Antunes Varela (que desde há muito - RLJ, ano 105, p. 14 - escrevera que a comunicação prescrita pelo n. 1 do artigo 416 constitui uma verdadeira declaração negocial, traduzindo a proposta contratual correspondente ao projecto de venda que o obrigado à preferência leva ao conhecimento do preferente), faz idêntica advertência, ao ponderar que "é preciso não confundir, como na prática sucede muitas vezes, a notificação para preferência com a proposta de contrato que o obrigado à preferência dirija ao preferente antes de ter qualquer projecto ajustado de venda com terceiro. Ocorre, efectivamente, com relativa frequência, que o obrigado à preferência, decidido a contratar em determinadas condições antes de ter qualquer projecto negocial acertado com quem quer que seja, começa por comunicar ao preferente a sua vontade, perguntando-lhe se quer preferir nessas condições, se quer ou não usar do seu direito em tais circunstâncias. Quando assim aconteça, não existe ainda notificação para preferir, mas simples proposta para contratar, independentemente da designação que o autor dê à sua notificação" (ob. cit., 389-390; RLJ, anos 121-360, e 122-305; cfr. também os acórdãos do Supremo de 19 de Junho de 1997, Proc. 889/96, 2. Secção e de 8 de Julho de 1997, Proc. 939/96, 1. Secção).
No mesmo sentido, M. Henriques Mesquita, "Obrigações Reais e Ónus Reais", p. 207, pondera que um pressuposto sempre imprescindível é que esteja projectado, tendo as partes chegado já a completo acordo, um daqueles negócios que origina a preferência e o obrigado à prelação se proponha efectivá-lo.
3. Muitas outras questões se levantam neste domínio, embora nem todas envolvam a mesma ordem de dificuldades.
Assim:
3.1. Por força do disposto no transcrito artigo 416, n. 1, o obrigado deve comunicar à contraparte não apenas a sua intenção de contratar, mas também as cláusulas do contrato que está pronto a celebrar, para que ela possa usar do seu direito de preferência; o não exercício deste direito dentro do prazo devido, provoca a caducidade do direito
(n. 2).
É muito abundante a jurisprudência do STJ sobre os elementos que a comunicação imposta pelo citado artigo 416 há-de conter.
Aceita-se, em geral, que ela deve abranger todos os elementos susceptíveis de influir decisivamente na formação da vontade do preferente, de tal modo que, faltando algum deles, a comunicação não tem relevância, por não ser o preferente colocado em posição de dever tomar uma decisão (cfr., entre muitos outros, os acórdãos de 24 de Julho de 1979, no BMJ, n. 289-311, de 19 de Março de 1991, AJ 17-15, de 11 de Março de 1992, Proc. 81149, de
14 de Dezembro de 1994, Proc. 85961, de 7 de Março de 1995, Proc. 86424, de 7 de Maio de 1996, Proc. 88228 e de
22 de Abril de 1997, Proc. 934/96).
Segundo Jorge Alberto Aragão Seia, "Arrendamento Urbano Anotado e Comentado", 3. ed., 1997, p. 251, a notificação deficiente é equiparada à falta de notificação, acrescentando que as "condições têm de ser precisas, não valendo meras intenções de alienação, assim como a aceitação tem de ser clara, inequívoca e sem reservas".
Nesses elementos compreendem-se, seguramente, o preço e condições de pagamento (em certas situações - casos de o preferente ser comproprietário ou arrendatário -, também a pessoa do adquirente - sobre este ponto, ver Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. III,
2. edição, pp. 372-373, e Antunes Varela, Rev. Leg. Jur., ano 121, p. 361).
Como a lei não exige forma especial, a notificação para o exercício do direito de preferência pode ser feita verbalmente, por via judicial ou extrajudicial, e provar-
-se por qualquer meio de prova (Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. I, 1967, p. 275;
Mário de Brito, "Código Civil Anotado", vol. II, 1969, p. 42; Baptista Lopes, "Compra e Venda", pp. 324 e ss.;
Vaz Serra, Rev. Leg. Jur., ano 112, pp. 315-317; acórdãos do STJ de 8 de Abril de 1986, no BMJ, n. 356-325, e de 18 de Novembro de 1993, CJ, 1993, 3.-140 e de 9 de Outubro de 1997, Proc. 100/97, 2. Secção).
4. Justifica-se uma especial chamada de atenção (face ao caso concreto) para estoutro ponto: se em muitos casos (e um deles é precisamente o do artigo 1380, intencionalmente transcrito por ser a situação do presente recurso) os direitos de preferência resultam directamente da lei, também eles se fundam, por vezes, em convenção das partes, falando-se então usualmente em pactos de preferência (para maiores desenvolvimentos sobre a diferença, e suas consequências, entre direitos legais e direitos convencionais de preferência, veja-se Henriques Mesquita, ob. cit., pp. 196 e ss.).
Antunes Varela, ob. cit., pp. 385 e 402-403, define pactos de preferência como os contratos pelos quais alguém assume a obrigação de, em igualdade de condições, escolher determinada pessoa como seu contraente, no caso de se decidir a celebrar determinado negócio; o seu objecto típico reside na obrigação de escolha daquele que há-de ser o futuro contraente, se o obrigado vier a contratar, conservando a liberdade de decisão quanto a celebrar ou não celebrar o contrato.
4.1. Uma vez que se trata de uma distinção essencial, constituindo mesmo a verdadeira pedra de toque para a decisão da questão que nos ocupa, impõe-se prosseguir neste caminho.
Enquanto os pactos de preferência têm, em princípio, apenas eficácia obrigacional, só lhes podendo ser atribuída eficácia real, a título excepcional, conforme se dispõe no artigo 421 do CC (Antunes Varela, Mário Júlio de Almeida Costa, Galvão Teles e Carlos Lacerda Barata, obs. cits, pp. 387, 375, 166 e 169 e 22 a 24, respectivamente), os direitos legais de preferência, porque fundados em razões de interesse e ordem pública, têm sempre eficácia real.
Valerá a pena aprofundar um pouco mais este aspecto.
Assim:
Após considerar que nas várias disposições relativas aos direitos legais de preferência se manda aplicar sistematicamente a cada um deles, quer o dever de comunicação imposto ao vinculado à preferência, quer o prazo de caducidade que onera o direito do preferente, escreve Antunes Varela:
"Este lado obrigacional da relação não destrói nem substitui a eficácia real de que gozam todos os direitos legais de preferência... São dois aspectos que se justapõem e reciprocamente se completam, na definição da relação de preferência dotada de eficácia absoluta. Por um lado, o preferente é titular de um verdadeiro direito de crédito, quer a preferência tenha, quer não tenha, eficácia real. Por outro lado, gozando de eficácia real, como sucede com os direitos legais de preempção, a preferência atribui ainda a esse sujeito a titularidade de um direito real de aquisição" (RLJ, ano 105, pp. 12-13).
Entendimento reiterado pelo mesmo autor, ao tratar das limitações à liberdade contratual: "Os direitos legais de preferência... têm uma eficácia limitativa da liberdade contratual ainda mais forte do que a resultante dos pactos de preferência. Enquanto os pactos de preferência possuem, em regra, mera eficácia relativa ou obrigacional, os direitos legais de preferência gozam sistematicamente de eficácia real (erga omnes), como melhor convém à natureza dos fins que determinam a sua instituição" (ob. cit., pp. 258-259).
E daqui resultam importantes consequências, como de imediato se verá.
A propósito da diversidade de regimes de um e outro, pondera Almeida Costa:
"O preferente convencional goza, em princípio, de um mero direito de crédito à conduta do obrigado à preferência, cujo inadimplemento dá apenas lugar a uma indemnização; ao invés, o preferente legal desfruta, mais do que isso, de um direito potestativo que lhe permitirá fazer seu o negócio realizado em violação da preferência - artigo 1410; ...As consequências da violação da preferência são diversas, consoante esta se encontre assistida de eficácia real ou não. No segundo caso, só existe a possibilidade de o preferente obter do promitente faltoso uma indemnização dos danos que resultem do incumprimento do pacto de preferência; pelo contrário, se o seu direito possui eficácia real, é-lhe lícito, mediante o exercício da acção de preferência, fazê-lo prevalecer sobre o negócio realizado com terceiro; ...no pacto de preferência "erga omnes", se o obrigado a dar preferência aliena a coisa a um terceiro sem observar o disposto no artigo 416, o preferente pode substituir-se ao adquirente, isto é, exercendo o seu direito de ficar com a coisa em igualdade de condições" (ob. cit, pp. 375-377 e 381).
Também Antunes Varela extrai do carácter misto ou híbrido da relação legal de referência, entre outras, a seguinte consequência: "Assentando deste modo a acção de preferência sobre um facto ilícito do obrigado, o preferente pode não só substituir-se ao adquirente na titularidade da coisa (dada a eficácia real da preferência), mas reclamar também do alienante a indemnização do prejuízo resultante de não ter adquirido a coisa logo no momento em que o negócio se efectuou" (RLJ, ano 105, p. 13); "Há múltiplos casos em que as pessoas... têm o dever jurídico de contratar, logo que se verifiquem determinados pressupostos. Quando assim seja, a pessoa que se recusa a contratar pratica um acto ilícito, que pode constitui-la em responsabilidade perante a que deseja realizar o contrato. Casos há inclusivamente em que a esta pessoa se permite obter a execução coerciva do contrato" (ob. cit., p. 247).
Do mesmo modo, Galvão Teles, após considerar que o preferente convencional tem de se contentar com uma indemnização, não podendo chamar a si a coisa alienada, logo ressalva a hipótese de ao pacto ter sido atribuída eficácia real, caso em que o direito do preferente prevalece sobre o do comprador, exercido através da acção de preferência, cuja procedência tem como resultado a substituição retroactiva do preferente na posição do comprador, tudo se passando (em princípio), por força da sentença, como se a venda fora feita ao preferente (ob. cit., pp. 169-170).
Significativamente, escreve Carlos Lacerda Barata: "onde a atribuição de eficácia real ao pacto de preferência assume especial relevância é em sede de incumprimento da respectiva obrigação. Com efeito, incumprido o dever de dar preferência na celebração de certo contrato, mediante a alienação da coisa a terceiro, poderá o titular do respectivo direito vir a colocar-se na posição jurídica do terceiro adquirente, mediante a propositura (e, naturalmente, procedência) da acção de preferência a que se refere o artigo 1410 (o que permite a muita doutrina
- que o autor cita na nota 19 - afirmar que se trata de um direito real de aquisição, aquele que é concedido ao credor com a atribuição de eficácia real a um pacto de preferência (como também ao titular de um direito legal de preferência). Para que isto assim se passe é necessário que o direito do preferente resulte directamente da lei... ou de convenção das partes a que tenha sido atribuída eficácia real...Verificado este condicionalismo, em sede de preferência pactícia, o direito do preferente torna-se oponível erga omnes, tal qual sucede com o direito de preferência legal que confere ao seu titular um direito potestativo "que lhe permite fazer seu o negócio de alienação realizado com violação da preferência" - Pessoa Jorge, "Direito das Obrigações", 1. vol., 1975- -1976, p. 188".
Rematando amplas e judiciosas considerações sobre a matéria, escreveu Henriques Mesquita (ob. cit., pp. 225- -228):
"No regime de um direito legal de preferência (ou de um direito convencional de preferência a que tenha sido atribuída, nos termos do artigo 421, "eficácia real") importa distinguir duas fases - uma das quais se verifica sempre e a outra apenas nos casos em que o vinculado à prelação não cumpre determinadas condições. Numa primeira fase, que se desencadeia a partir do momento em que o obrigado à preferência decide realizar o negócio... ao preferente assistem sucessivamente, antes que aquele negócio se efective, os seguintes direitos:
- o direito (creditório) a que lhe sejam notificados os termos essenciais do projecto de alienação;
- o direito (potestativo) de, na sequência desta notificação, declarar que pretende preferir - declaração esta que, conjugada com a do notificante, dará origem a uma relação creditória equiparável, pelo seu conteúdo e efeitos, a um contrato-promessa bilateral, ou tornará mesmo perfeito o contrato definitivo, se em ambas as declarações (a do obrigado à preferência, que equivale a uma proposta de contrato, e a do preferente, que se traduz na aceitação dessa proposta) houver sido observada a forma exigida para a celebração deste contrato;
- finalmente, o direito (creditório) de exigir, após ter declarado a vontade de exercer a preferência, que o obrigado a esta realize com ele o negócio projectado, sempre que aquela declaração não baste para o consumar.
"A segunda fase do regime da preferência surgirá apenas se o obrigado à prelação alienar a coisa sem proporcionar ao preferente, de acordo com o regime legal, a possibilidade de, em igualdade de condições, a adquirir para si. Em tal eventualidade, o preferente passa a ter o direito potestativo de, por via judicial - através de uma acção de preferência - se substituir ou subrogar ao adquirente da coisa, no contrato por este celebrado com o obrigado à prelação... Trata-se de um direito que incide sobre um contrato e que, bem vistas as coisas, tem por finalidade conseguir, à custa de um terceiro, em relação ao qual o direito de opção é eficaz, a execução específica da prestação, que o vinculado à preferência não cumpriu, de, em igualdade de condições (tanto por tanto), realizar o negócio com o preferente interessado em fazer valer o seu direito".
5. Após este excurso doutrinal, cumpre fazer breve alusão (para além dos arestos já referidos) aos acórdãos mais significativos sobre esta matéria específica.
No sumário do acórdão do Supremo de 18 de Julho de 1975, no BMJ, n. 249-485, escreveu-se que, cumprido o dever de comunicação ao preferente, a não celebração do contrato de venda por parte do proprietário pode sujeitá-lo a indemnização (esta decisão foi anotada criticamente por
Vaz Serra, na RLJ, ano 109, pp. 298-300).
Todavia, posteriormente a este aresto pode afirmar-se que a orientação do Supremo Tribunal de Justiça tem sido a de reconhecer eficácia real ao direito de preferência e também a de aceitar que, no caso de incumprimento, fica o devedor vinculado à realização do negócio, e o preferente investido no direito potestativo de exigir que, por decisão judicial, seja constituído o direito de propriedade sobre a coisa, não podendo o obrigado desistir do negócio projectado (entre outros, os acórdãos de 15 de Junho de 1989, BMJ, n. 388-479, de 11 de Maio de 1993,
BMJ, n. 427-491, de 22 de Abril de 1997, Proc. 54/97, de 7 de Outubro de 1997, Proc. 246/97, de 14 de Janeiro de 1998, Proc. 880/97, e também, de algum modo, os de 7 de Dezembro de 1994, Proc. 85958, e de 22 de Abril de 1997,
Proc. 934/96).
A problemática que acabamos de abordar prende-se intimamente, na sua globalidade, com as duas notificações para preferência que o presente recurso revela:
- a consubstanciada na carta de 12 de Novembro de 1989 (dirigida pelos oito 1s. réus à 2. autora, informando-a da intenção de venderem o prédio em causa pelo preço de 600 contos, com o sinal de 100 contos e o restante no acto da escritura, e concedendo-lhe o prazo de oito dias para declarar se pretendia usar do seu direito de preferência
- doc. de fls. 20 e alínea D) da especificação); e a da
- carta de 28 de Novembro de 1989.
Seria lógico que começássemos pela primeira, mas também aqui, um tanto ao arrepio dessa logicidade, é pela
2. carta que iniciaremos o tratamento das questões que neste campo se suscitam, imbricadas como estão umas nas outras.
1. Decorridos 16 dias sobre a primeira carta, os mesmos réus escreveram outra carta á mesma autora, informando que
"o valor inicialmente proposto, no montante de 600000 escudos, era um valor desajustado (...); que continuavam interessados na sua venda mas pelo valor de 1500000 escudos; que tinham uma pessoa interessada, a Sra. Maria José Ferreira (aqui 9. ré); que o preço seria pago com o sinal de 500 contos e os restantes 1000 no acto da escritura, devendo esta efectuar-se no prazo máximo de 2 meses, no Cartório Notarial de Rio Tinto" (doc. de fls. 22 e alínea F) da especificação).
Da resposta ao quesito 30 apenas consta que os autores tiveram conhecimento do teor desta segunda carta, mas sem se dizer quando.
Porém, o acórdão recorrido, esclarecendo essa resposta, deu como assente que esse conhecimento ocorreu seguramente antes de 28 de Janeiro de 1990, prosseguindo assim o seu raciocínio: "Donde resulta que os autores teriam, para poderem exercer o seu direito, de declarar a sua vontade de preferirem na compra (comunicada pela carta de 28 de Novembro de 1989), o mais tardar até 5 de Fevereiro de 1990 - artigo 416, n. 2, do CC. O que não fizeram.
Pelo que o seu direito caducou".
Na verdade a esta carta os autores não responderam (resposta ao quesito 29).
Assim sendo, na tese do acórdão, quando os autores propuseram a acção - em 6 de Junho de 1991 -, já o seu direito tinha há muito caducado.
A aceitar-se essa tese, é obvio que teria ocorrido a caducidade do direito (potestativo) de preferência, pelo que os autores não poderiam socorrer-se da acção de preferência prevista no artigo 1410 do CC, a menos que houvesse violação da preferência (cfr. Henriques Mesquita,
"O Direito", ano 120-186).
Com efeito, operada a caducidade, fica o obrigado com as mãos livres para celebrar o contrato projectado com outra pessoa (Antunes Varela, ob. cit., p.390).
Ponto é que se observem os termos oferecidos ao titular da preferência.
Por isso, nessa linha de entendimento, compreende-se que o acórdão tenha procedido à verificação e comparação desses termos com os expressos na escritura pública de 26 de Abril de 1990, tendo concluído, a tal propósito, não se detectar qualquer alteração essencial.
Assim, no tocante aos 75 contos a mais (na carta indicou-se o preço de 1500 contos, e na escritura o de 1575, havendo pois que convir não se tratar de diferença grandemente significativa), ponderou-se que essa mudança não beneficiou o comprador, antes o prejudicando (cita-se, a propósito, Antunes Varela, RLJ, ano 120 - 31 e 32, que, em anotação ao acórdão do Supremo de 3 de Março 1983, considerou como uma alteração não essencial uma modificação traduzida num preço comunicado de 230 contos, conseguindo a vendedora que um interessado o comprasse por 340; também Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. III, 1972, p. 337, afirmam que é preciso que haja uma alteração essencial, o que não sucede se o contrato veio a realizar-se, na mesma época, em condições mais onerosas do que as projectadas).
E no que concerne ao prazo anunciado de 2 meses para a celebração da escritura, que, afinal, veio a realizar-se decorridos 5 meses, diz-se não se saber, por exemplo, se o alongamento do prazo se ficou a dever a mora do comprador
(da nossa parte, não hesitaríamos em não reconhecer a essencialidade de uma tal alteração - cfr. sobre este ponto Vaz Serra, "Obrigação de Preferência", BMJ n. 76, pp. 165 e 269).
2. Notificação para preferência vertida na carta de 12 de Novembro de 1989
A esta carta logo a autora respondeu, em 17 de Novembro de 1989, informando pretender usar da faculdade que lhe assistia e pedindo a indicação do dia e local para a concretização da transacção, nos termos indicados pelos réus (doc. de fls. 21 e alínea E) da especificação).
O acórdão recorrido entendeu, porém, que a (primeira) comunicação, mesmo depois de aceite dentro do prazo fixado no n. 2 do artigo 416 do CC, é revogável - o obrigado à preferência podia abandonar ou alterar o seu projecto de venda.
Entendimento que apoiou no acórdão da RP de 11 de Março de 1996 (CJ, ano XXI, tomo II, pp. 188-191), para o qual, aliás, remeteu para mais e melhor fundamento.
2.1. Ora, sucede que este acórdão veio a ser revogado, e a sua fundamentação - diga-se que rica e sedutora - criteriosa e adequadamente apreciada e refutada pelo citado acórdão do Supremo de 7 de Janeiro de 1997, Proc. n. 246/97.
Acórdão este que equacionou devidamente as questões suscitadas, às quais deu correcta e fundada resposta jurídica.
Não custa aceitar que na base da revogabilidade/ /retractação possam estar razões mais ou menos atendíveis e compreensíveis - pense-se, por exemplo, num vinculado à preferência que se decide a realizar uma venda ao desbarato para ocorrer a inadiáveis despesas de saúde e que, entretanto, obtém meios de fortuna (saiu-lhe a lotaria), ou num casal desavindo que se propõe vender a casa de morada de família e que se vem a reconciliar.
Se tal pode suceder, a verdade é que as mais das vezes serão outros os interesses a explicar uma alteração dos elementos comunicados - aumenta-se o preço para evitar a preferência, ou para permitir a obtenção de benefícios injustificados.
Como quer que seja, decisivo é que, incontestavelmente, são sempre interesses públicos que estão na base e fundamentam as preferências legais.
Discorda-se, assim, da argumentação e entendimento perfilhados pelo acórdão recorrido, que não logram apoio na doutrina e jurisprudência mais autorizadas, como ressalta claro dos vários elementos que atrás tivemos o cuidado de citar com alguma profundidade.
Doutrina e jurisprudência que conduzem, pois, a solução diferente da acolhida na decisão recorrida, quer se defenda que a carta de 12 de Novembro de 1989 representou uma verdadeira e própria notificação para preferir (ao abrigo do n. 1 do artigo 416), quer se entenda que, em bom rigor, se tratou antes de uma proposta de promessa de venda (recorde-se que os vinculados à preferência se limitaram a comunicar a sua "intenção" de vender por um preço que indicaram, sem que tivessem fornecido a identificação do terceiro com quem já tivessem acertado o projectado negócio), porquanto, em qualquer dos casos, aquela declaração dos réus, uma vez aceite, se tornou irrevogável, não lhes sendo legalmente permitido retractarem-se ou dela desistir.
2.2. Como se sabe, diferentemente da solução consagrada no
CC de 1867 (Mário de Brito, "Código Civil Anotado", vol.
I, 1967, p. 269), o actual artigo 230 estabelece, em princípio, a irrevogabilidade da proposta de contrato, depois de ela ter sido recebida pelo destinatário ou de ser dele conhecida (cfr., também, o artigo 224, n. 1, do mesmo Código).
Como já se salientou no citado acórdão de 7 de Outubro de 1997, a notificação para preferir ficaria despojada de qualquer sentido útil se o obrigado pudesse desistir livremente do negócio, perante resposta positiva do preferente; na verdade, todo o mencanismo legal relativo ao direito de preferência visa, por um lado, possibilitar o exercício desse direito e, por outro, evitar situações de conflito a dirimir por via judicial (as frequentes acções de preferência), por omissão da notificação.
Em suma: aos autores assiste o direito de exigir que, por decisão judicial, seja constituído o direito de propriedade sobre a coisa, fazendo seu o negócio realizado com violação da preferência - mais concretamente, têm o direito de se substituirem aos terceiros adquirentes na posição que este ocupa no contrato celebrado com os obrigados à preferência, titulado pela escritura pública de 26 de Abril de 1990 (recordem-se, fundamentalmente, os passos doutrinais e jurisprudenciais que seleccionamos e transcrevemos no ponto IV ns. 4.1. e 5., respectivamente).
Sendo este o entendimento que, perante a comunicação de 12 de Novembro de 1989, temos por correcto, daí resulta, logicamente, que a segunda carta ficou sem relevância jurídica.
3. Resta uma última questão: os autores pedem que os 1s. a
8s. réus (vendedores) sejam condenados a pagar à 2. autora a "indemnização que se vier a liquidar em execução de sentença, correspondente aos prejuízos causados pelo incumprimento da proposta negocial contida na sua carta de
12 de Novembro de 1989" (cfr. alinea e) da petição inicial).
Fácil é concluir que tudo isto se imbrica e interpenetra com a questão fundamental da procedência do pedido de reconhecimento do direito de preferência; e também se compreende que esta questão ganhou um novo equacionamento, face à nossa decisão de julgar procedente aquele pedido
(em contrário do acórdão recorrido).
Recorde-se, na verdade, que neste plano também é defensável o direito à indemnização do prejuízo resultante da não aquisição da coisa logo no momento em que o negócio se realizou.
3.1. O acórdão recorrido declarou nula a decisão recorrida na parte em que não conheceu do referido pedido de indemnização e, do mesmo passo, conheceu do objecto da apelação nos termos do artigo 715 do CPC, julgando improcedente tal pedido, dele absolvendo os réus.
Improcedência essencialmente fundamentada na circunstância de não poder relegar-se para a execução de sentença - tal foi o pedido dos autores (embora tenham feito apelo ao artigo 564, n. 2, do CC, e não ao artigo 661, n. 2 do CPC
- cfr. conclusão XII) - a prova da existência do próprio dano, nem do nexo causal.
Decisão correcta, e que tem o apoio da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça, como decorre dos acórdãos de 4 de Junho de 1974 e 6 de Março de 1980, respectivamente no BMJ, n. 238-204 e n. 293-369, e mais recentemente dos acórdãos de 27 de Fevereiro de 1996,
Proc. 88211, 2. Secção, de 14 de Janeiro de 1997, Proc.
664/96, 1. Secção, de 9 de Outubro de 1997, Proc. 544/97,
2. Secção, de 14 de Outubro de 1997, Proc. 46/97,
1. Secção e de 25 de Novembro de 1997, Proc. 318/97,
1. Secção.
Na verdade, tem-se decidido, com significativa constância, que o relegar a liquidação para execução de sentença postula que na acção declarativa seja feita prova da existência dos danos, não se dispondo, porém, de elementos que os permitam quantificar, mesmo com o recurso à equidade; ou seja, a fase preliminar de liquidação, em execução de sentença, apenas pode servir para quantificar danos quando, na acção declarativa, tenha ficado demonstrada a sua existência, embora ilíquida, jamais podendo destinar-se a renovar o apuramento ou averiguação sobre a existência de danos.
Na linha desta corrente jurisprudencial, o acórdão recorrido concluiu que, por não estar provado o dano nem o nexo causal, não podia condenar os réus ao abrigo do disposto no artigo 661, n. 2 do CPC (para maiores desenvolvimentos, veja-se Alberto dos Reis, "Código de Processo Civil Anotado", vol. I, 1948, pp. 609-613, e vol.
V, 1952, pp. 70-71).
Conclusão acertada, mesmo tendo em conta que o cotejo das conclusões dos recorrentes para este Supremo Tribunal, com as do recurso de apelação, revela que eles tiveram agora a preocupação de tratar com mais desenvolvimento esta matéria (cfr. conclusões VII a XIII).
Na verdade, e decisivamente, não se mostram articulados, e muito menos provados, factos bastantes sobre a extensão e valoração dos danos (para já não falar do nexo causal - cfr. artigo 563 do CC), que habilitem à sua quantificação (cfr. artigos 564 e 566 do CC).
Em breve súmula, oferecem-se as seguintes proposições:
- com a aceitação da comunicação contida na carta de 12 de Novembro de 1989, dentro do prazo assinalado no n. 2 do artigo 416 do CC, os preferentes tornaram-se titulares de um direito potestativo que lhes permite exigir que, por decisão judicial, seja constituído o direito de propriedade sobre a coisa;
- mais concretamente, ficaram investidos no direiro de se substituirem aos adquirentes (9s. réus), no contrato titulado por escritura pública de 26 de Abril de 1990, celebrado com os obrigados à preferência (os 1s. a 8s. réus - vendedores);
- o preço e demais condições são os indicados na referida carta de 12 de Novembro de 1989;
- com a procedência desse pedido de reconhecimento do direito de preferência, fica prejudicado o reconhecimento do direito de servidão formulado pelos autores, e, por outro lado, haverá que conhecer do pedido reconvencional deduzido pelos 9s. réus (compradores), pedido que a sentença da primeira instância julgou prejudicado, face ao não reconhecimento do direito de preferência.
Face ao exposto, acorda-se em:
1. Revogar parcialmente o acórdão recorrido, julgando: a) Procedente o recurso dos autores, na parte respeitante ao direito de preferência, condenando-se os 1s. a 8s. réus (vendedores) a ver transferido para os autores do prédio identificado no artigo 6 da petição inicial, pelo preço e condições comunicados pela carta de 12 de Novembro de 1989; b) Improcedente o recurso dos autores, no tocante ao pedido de condenação dos réus em indemnização que viesse a liquidar-se em execução de sentença; c) Improcedente o recurso dos réus Maria José dos Santos Ferreira, e marido (compradores), que são condenados a ver declarada a ineficácia da transmissão a seu favor do mencionado prédio.
2. Ordenar a baixa dos autos à 1. instância para conhecimento do pedido reconvencional deduzido pelos 9s. réus (compradores).
Custas na proporção de vencimento, sendo 10% a cargo dos autores (decaíram no pedido de indemnização), e o restante a cargo dos réus recorrentes.
Lisboa, 9 de Julho de 1998.
Ferreira Ramos,
Pinto Monteiro,
Lemos Triunfante.