CRIME
ABUSO DE CONFIANÇA
CRIME DE FURTO
SUBTRACÇÃO
Sumário

Comete um crime de abuso de confiança (e não um crime de furto) o agente que procede ao levantamento e à transferência de quantias depositadas em conta bancária de que não é titular mas apenas pessoa autorizada a movimentar, delas se apropriando.

Texto Integral

Recurso Penal 168/08.8TAMT-P1


Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto


1. Relatório
No Tribunal Judicial de Montalegre, após julgamento em processo comum (n.º 168/08.8TAMTR) e perante tribunal singular, foi o arguido B………., identificado nos autos, condenado como autor material de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1 e 204º nº.2 al. a), por referência ao art. 202º, al. b), todos do C. Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período.

Inconformado com tal condenação, o arguido recorreu para esta Relação, insurgindo-se “tão-somente sobre a qualificação jurídica” dos factos por si praticados. Na verdade, referiu desde logo “não pretender discutir os factos que o tribunal considerou provados, nem tão pouco a medida concreta da pena no âmbito do enquadramento jurídico efectuado”.
Concluiu a motivação formulando as seguintes conclusões (transcrição):

“1. Versa o presente recurso sobre a qualificação jurídica atribuída aos factos praticados pelo Arguido, sendo os seguintes os elementos de facto relevantes para a análise da questão a suscitar:

a) Em 28/07/2006 a DGCI — Finanças creditou conta titulada pela sociedade insolvente C………., LDA junto do D………., no montante de € 87.705,61, proveniente de reembolso de IVA;

b) Em 31/07/2006 o arguido B………. levantou da referida conta a quantia de € 10.000,00 em numerário e transferiu a quantia de € 77.630,27 para conta titulada por si, em nome individual, no mesmo banco;

c) O administrador de insolvência da insolvente, C………., Lda. não comunicou ao D………. a aludida declaração de insolvência nem procedeu ao encerramento da conta titulada pela insolvente ou à alteração da respectiva ficha de assinaturas (ver declarações para memória futura prestadas pelo administrador de insolvência E……….);

d) À data de 31 de Julho de 2006 o arguido B………. era a única pessoa autorizada a movimentar a creditada conta da sociedade C………., Lda. (ver declarações prestadas pelo funcionário bancário F………., referidas na sentença recorrida)

2. O arguido utilizou em benefício próprio quantia que não lhe pertencia, pelo que se encontra preenchido um dos elementos do tipo objectivo do crime de furto, a saber, a ilegítima intenção de apropriação.

3. A questão ora colocada reside em saber se os factos apurados permitem extrair o outro elemento necessário ao preenchimento do tipo, a subtracção de coisa móvel alheia.

4. Em “Comentário Conimbricense do Código Penal” (Tomo II, pag. 24 a53), Faria Costa tece as seguintes considerações quanto ao elemento do tipo “‘subtracção”:
- “Subtracção traduz-se em uma conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor. Implica, por conseguinte, a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa o agente da infracção lança sobre a coisa um novo poder de facto”.
- “A subtracção caracteriza-se, assim e sobretudo, pela finalidade prosseguida, a qual consiste, repete-se, no fazer entrar no domínio de facto do agente da infracção as utilidades da coisa que estavam anteriormente no sujeito que as detinha”.

5. No caso dos autos, à data do crédito em conta efectuado pela DGCI, o arguido B………. era a única pessoa autorizada a movimentar a conta bancária titulada pela sociedade C………., LDA. Ninguém, para além do próprio arguido, alguma vez teve acesso à quantia creditada.

6. A verba em apreço entrou na esfera de disponibilidade do arguido B………. por motivo independente da sua vontade, sendo que o seu apossamento não decorreu do desapossamento de outrem.

7. Concorda-se com o argumentário constante da sentença recorrida no sentido que o acesso formal do arguido à conta da sociedade em nada desresponsabiliza ou isenta a sua conduta. A questão é que essa responsabilidade não decorre da prática de um crime de furto, sendo que a actuação do arguido é censurável do ponto de vista civil (abrindo na massa insolvente uma pretensão indemnizatória) e, eventualmente, ponto de vista penal, mas não pela prática de um crime de furto, porquanto não houve subtracção de coisa móvel alheia, mas, quando muito, apropriação de coisa móvel alheia.

8. Na expressão do citado Prof. Faria Costa: -“ Deste conjunto de coisas distingue-se, de forma claríssima, o universo de coisas perdidas, esquecidas e de todas aquelas que entrem na posse ou detenção de terceiro por efeito por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independente da sua vontade (art.º 209º). Na verdade, todas as coisas agora referidas são objecto não de um crime de furto mas sim de um crime de apropriação ilegítima em caso de acessão de coisa achada. Isto é: as coisas pertencem a alguém. Têm um proprietário. Pura e simplesmente ninguém exerce sobre elas um domínio de facto. Ninguém delas retira utilidades (sublinhado nosso)”.

9. No caso dos autos: (i) a verba creditada na conta da sociedade C………., Lda. veio à detenção do arguido B………. por facto independente da sua vontade (ele não deu nenhum contributo para que aquela verba ali fosse depositada); (ii) a quantia em apreço tem um proprietário, a massa insolvente; (iii) Porém, essa massa insolvente, representada pelo respectivo administrador de insolvência, não exerce sobre este dinheiro qualquer domínio de facto, porquanto não lhe tem acesso; (iv) à data da prática dos factos em mérito, nenhuma utilidade a massa insolvente retirava da quantia pecuniária depositada, uma vez que, para o fazer, carecia da prévia intervenção do arguido no sentido do respectivo levantamento bancário e posterior entrega ao administrador de insolvência.

10. Não está preenchido o tipo legal do crime pelo qual o arguido veio condenado, pelo que a sentença recorrida violou o disposto no art° 203° do Código Penal”.

Concluiu pedindo o provimento do recurso e, em consequência, a sua absolvição.

Respondeu o MP na 1ª instância, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

Nesta Relação, o Ex.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, 2, do CPP, o arguido nada disse.

Em 14-06-2010 a Relatora do processo proferiu o seguinte despacho:
“Os factos descritos na decisão recorrida poderão ser qualificados juridicamente como “abuso de confiança qualificado”, p. e p. no artigo 205º, nºs 1 e 4, al. b), com referência ao art. 202º, b) do C. Penal. Assim, e nos termos do art. 424º, n.º 3 do C. P. Penal, notifique o arguido para se pronunciar, querendo, em 10 dias”.

O arguido respondeu, sustentando que, em seu entender, os factos praticados não integram qualquer crime, mas, “a haver crime, ele chama-se apropriação ilegítima e está previsto no art. 209º do C. Penal”.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto

A sentença recorrida deu como assentes os seguintes factos:

a) Factos Provados:
1. Em 18 de Fevereiro de 2005, foi decretada por sentença já transitada em julgado em 15/4/2005, a insolvência da sociedade C………., Lda., sociedade comercial unipessoal, contribuinte ………, que tinha como sócio e único gerente B………..

2. Nos termos daquela sentença, a qual foi notificada ao arguido e da qual o mesmo ficou bem ciente, foi ordenada a imediata apreensão para imediata entrega ao administrador da insolvência dos elementos da contabilidade da insolvente e todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados, ou por qualquer forma apreendidos ou detidos – artº 36º, g) do CIRE.

3. Não obstante o arguido bem saber que os bens da insolvente não lhe pertenciam e que deles não podia dispor, o certo é que a 31 de Julho de 2006, o arguido transferiu da conta da insolvente nº ……… do D………., um reembolso de IVA que ali tinha sido depositado pelas DGCI – Finanças, no valor de € 87.705,61, e colocou a quase totalidade – €77.630,27 – sua conta particular nº ……….., do banco D………., além do mais o arguido levantou ainda da mesma conta €10.000,00 em numerário.

4. O arguido bem sabia que aquele dinheiro não lhe pertencia, mas que pertencia à massa insolvente, não obstante, levantou e transferiu o mesmo para uma sua conta particular, comportando-se em relação aquele dinheiro como seu verdadeiro proprietário se tratasse.

5. O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo ser a respectiva conduta proibida por lei e que incorria em responsabilidade criminal.

6. O arguido utilizou € 8.922,13, do valor aludido em 3), para pagamento de dívidas fiscais da insolvente.

7. O arguido é operador de máquinas, e aufere cerca de €600,00 a €800,00 mensais.

8. Tem três filhos menores, estudantes.

9. A esposa encontra-se desempregada, e aguarda pelo recebimento do subsídio de desemprego.

10. Vive em casa que se encontra registada em nome dos filhos.

11. Estudou até ao 2º ano do ciclo.

12. O arguido não tem antecedentes criminais.

b) Factos não provados:
1. O arguido não sabia que o valor depositado na conta da insolvente não lhe pertencia e não o podia gerir.
2. O arguido não sabia que a conta aludida em 3) pertencia à insolvente.

2.2. Matéria de Direito
A questão objecto do presente recurso versa exclusivamente matéria de direito. Na verdade, o arguido insurge-se apenas contra a qualificação jurídica dos factos dados como provados. Em seu entender, tais factos não integram o crime de furto por que foi acusado e condenado, pois não se mostra preenchido o elemento do tipo “subtracção”.
Alega, em síntese, o arguido:
“(…)
Concorda-se com o argumentário constante da sentença recorrida no sentido que o acesso formal do arguido à conta da sociedade em nada desresponsabiliza ou isenta a sua conduta. A questão é que essa responsabilidade não decorre da prática de um crime de furto, sendo que a actuação do arguido é censurável do ponto de vista civil (abrindo na massa insolvente uma pretensão indemnizatória) e, eventualmente, ponto de vista penal, mas não pela prática de um crime de furto, porquanto não houve subtracção de coisa móvel alheia, mas, quando muito, apropriação de coisa móvel alheia.
(…)”

A argumentação do arguido dirige-se, como decorre da parte transcrita, contra a integração (jurídica) dos factos provados no conceito indeterminado de “subtracção de coisa móvel”. O arguido entende que, quando muito, os factos provados integram o crime previsto no art. 209º do C. Penal (apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada), mas nunca o crime de furto por que foi condenado.

A sentença recorrida, pelo contrário, entendeu verificados todos os elementos do tipo de furto, apoiando-se, além do mais, num acórdão da Relação de Lisboa, proferido numa situação semelhante e onde, na parte relevante, se defendeu o seguinte:
“(…)
Com efeito, demonstrado ficou, e a recorrente nem sequer o contesta (refugiando-se, em sede de facto, na invocação da sua ignorância, já acima afastada e, em sede de direito, na mera invocação das características de uma conta solidária), que o dinheiro depositado na conta (onde era depositado o vencimento do assistente e mais tarde a sua pensão de reforma) constituía exclusiva propriedade do assistente. E sendo assim, manifesto é que ao transferir para uma conta da sua exclusiva titularidade determinada quantia depositada na conta que titulava em conjunto com o assistente (no regime de solidariedade), fazendo-o contra a vontade do outro titular, agiu em prejuízo deste, apropriando-se de coisa (neste caso quantia monetária) que não lhe pertencia. (…)” – Acórdão da Relação de Lisboa, de 26-11-2009, proferido no processo 1834/06.8TDLSB.L1-9.

Que dizer?

No capítulo dos crimes contra a propriedade o Código Penal prevê (i) o furto, (ii) o abuso de confiança, (iii) o furto de uso, (iv) a apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada, (iv) o roubo, (v) o dano, (vi) a usurpação de coisa móvel e (vii) a alteração de marcas. Em todos estes tipos de crime é protegido o mesmo bem jurídico, isto é, o direito de propriedade, variando todavia a intensidade dessa lesão e o modo como tal lesão ocorre.

Entre os crimes onde o direito de propriedade é atingido na sua plenitude, ou seja, onde ocorre uma lesão absoluta desse direito – suprimindo definitivamente os poderes do proprietário – destacam-se o furto (art. 203º), o abuso de confiança (art. 205º) e a apropriação ilegítima em caso de acessão ou coisa achada (art. 209º). No caso destes autos, a questão está precisamente em saber em qual destes três tipos de ilícito se devem subsumir os factos dados como provados.

Ora, como decorre dos respectivos tipos, a diferença entre estes crimes decorre do modo como se dá a apropriação da coisa móvel alheia.

No furto (art. 203º do CP) tal apropriação ocorre por subtracção: “subtrair coisa móvel alheia” (palavras da lei), o que significa que a apropriação se dá através de um acto físico de posse da coisa contra a vontade do dono. O agente, através de um acto físico, tira a coisa móvel do poder de disposição do seu detentor, contra a vontade deste.

No abuso de confiança (art. 205º do CP) a apropriação ocorre por inversão do título, ou seja, a coisa é entregue livremente ao agente, por título não translativo de propriedade e o agente inverte esse título e passa a agir como dono. A diferença entre o furto e o abuso de confiança está precisamente na ausência de um acto físico de acesso à coisa móvel, contra a vontade do dono. A coisa chega ao poder de disponibilidade do agente licitamente, para que este a use para determinado fim, em nome e por conta do proprietário. A ilicitude da conduta ocorre depois de o agente ter a coisa na sua esfera de acção, através de uma inversão do título jurídico que legitimava o uso da coisa. O agente que detém a coisa licitamente desvia o seu uso, arrogando-se desse poder de disposição pessoal. É através desta actividade jurídica, quando o agente passa de representante do proprietário a proprietário que se localiza a lesão do bem jurídico protegido pela incriminação.

Na apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada (art. 209º do CP) a coisa entra na posse do agente por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer outra maneira independente da sua vontade. Neste tipo de crime não existe subtracção, nem existe quebra da relação de confiança (inversão do título). Note-se que também no abuso de confiança a “entrega” da coisa pode ocorrer não propriamente por vontade do agente, mas por força da lei (FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense, Tomo II, pág. 153). No tipo agora em análise não existe qualquer entrega, “mas antes uma circunstância natural ou humana, por via da qual a coisa entra na posse ou detenção do agente” (autor, obra e local citados).

Podemos afastar, sem qualquer dúvida, a tese do arguido segundo a qual os factos provados integram, quando muito, o crime previsto no art. 209º do C. Penal, pois a quantia depositada não integrou a seu património por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou qualquer motivo independente da sua vontade.

No caso em apreço, a quantia foi depositada pela DGCI – Finanças (Serviços do IVA) na conta da sociedade “C………., Lda.” junto do D………., ou seja, o dinheiro ficou a pertencer ao património da sociedade, tendo sido depois movimentado (transferido) pelo arguido, na qualidade de representante da Sociedade, para uma conta apenas sua.

O arguido só tinha acesso à movimentação da conta da sociedade, enquanto seu representante. Daí que o acesso que tinha ao dinheiro – posse – não era em nome próprio, mas em nome e por conta da sociedade. Tal significa que não lhe chegou à sua esfera jurídica (em nome próprio) coisa alguma, por efeito do depósito na conta. Quando a Administração Fiscal depositou dinheiro na conta da Sociedade Unipessoal, tal depósito ficou a poder ser movimento pelo arguido, mas não em seu proveito, não como proprietário, mas como representante da Sociedade, pessoa jurídica distinta.

O dinheiro só integrou o património do arguido por acto por si praticado, quando o transferiu para uma conta exclusivamente sua.

Deste modo, o dinheiro chegou à sua disponibilidade (enquanto proprietário), isto é, a uma conta bancária sua e não da sociedade, por motivo exclusivamente dependente da sua vontade – cfr. FIGUEIREDO DIAS, ob. cit. pág. 154, destacando que só é caso fortuito “o caso para cujo efeito (a entrada na nova posse ou detenção) não concorreu o facto, nomeadamente a vontade, do agente”.
No presente caso, foi na vontade do agente que assentou a “entrada na nova posse”, isto é, a nova detenção do dinheiro, na qualidade de proprietário.

Mais discutível é a questão de saber se a conduta do arguido integra o crime de furto ou de abuso de confiança.

No acórdão da Relação do Porto, de 28-02-2007, proferido no processo n.º 0646074, decidiu-se: “O agente que levanta para apropriação, o capital de uma conta bancária de que é co-titular, pertencendo esse capital por inteiro a outro co-titular, comete, não um crime de furto, mas um crime de abuso de confiança”.

No referido acórdão, são ainda citados os seguintes arestos:

- “Constitui a prática de um crime de abuso de confiança, o levantamento, para apropriação, do capital de uma conta solidária feita por um dos seus co-titulares, quando se demonstre que a inclusão do seu nome nessa conta não corresponde a qualquer compropriedade do dinheiro e sim, apenas, a um mero possibilitar da movimentação de tal conta, no exclusivo interesse e ou, por ordem de outro, ou dos titulares dela” - cfr. Ac. RE de 19.7.84, in CJ, IV, 304.

- “A apropriação no abuso e confiança realiza-se pela inversão do título e posse ou detenção, consumando-se, pois, no momento em que o agente passa a dispor da coisa animo domino. O que ocorre quando o arguido transfere a quantia, que havia sido colocada em depósito bancário, na sua disponibilidade, para uma conta exterior à titularidade do co-titular daquele e passa a proceder como dono exclusivo da mesma” - cfr. Ac. STJ de 26-3-92, in processo nº. 42413.

- “Comete o crime de abuso de confiança o agente que, sendo co-titular de uma conta bancária de cujo dinheiro não era dono, nem sequer parcialmente e de que apenas podia dispor quando isso lhe fosse autorizado pelo outro co-titular, dono do dinheiro, se apropria dele sem o conhecimento ou autorização deste” - cfr. Ac. STJ de 14.4.94, no processo 46449

A posição defendida na sentença – e no acórdão da Relação de Lisboa, onde se ancorou – afasta-se, como se vê, da tese maioritária seguida nos citados acórdãos da Relação do Porto, da Relação de Évora e do Supremo Tribunal de Justiça.

Julgamos ser esta a subsunção jurídica correcta.

Na verdade, no momento em que o arguido transferiu o dinheiro da conta da sociedade para sua conta pessoal, inverteu o título que o legitimava a usar esse dinheiro, em nome e por conta da Sociedade. Em vez de o usar no âmbito dos seus poderes de gestão dos interesses da Sociedade, usou-o como dono, como proprietário e, nesse momento, inverteu o título que lhe permitia movimentar a conta.

É certo que se deu uma apropriação e também é verdade que tal apropriação foi ilegítima, mas já não é verdade que tal apropriação se tenha dado através da “subtracção” da coisa móvel alheia.

Tal apropriação deu-se, sim, através da inversão do título de detenção, na medida em que era o arguido quem tinha toda a legitimidade para movimentar a conta da Sociedade, deste que o fizesse no âmbito dos respectivos poderes de gestão.

O arguido cumulava assim a qualidade de detentor da coisa, antes da transferência (gestor da Sociedade e com poderes para movimentar a conta) e a qualidade de detentor da coisa, após a transferência (titular da conta onde foi depositada quantia). Essa dupla qualidade impede, a nosso ver, que haja subtracção, ou seja, uma transferência da posse contra a vontade do proprietário, pois a vontade do proprietário era, no caso, exteriorizada pela mesma pessoa.

Neste quadro factual, não pode pois falar-se em subtracção, pois era a mesma pessoa física quem tinha poderes de detenção sobre o dinheiro antes e depois da transferência.

O acesso à conta e a sua movimentação pelo arguido, desde que no uso da sociedade, era lícito, embora o dinheiro não fosse seu.

Mas é precisamente o acesso livre à movimentação do dinheiro (desde que em nome e por conta da sociedade) que afasta a possibilidade de haver um furto. Quando alguém tem acesso juridicamente lícito a uma coisa, não a furta, pois adquire a sua detenção licitamente.

A ilicitude surge em momento posterior, ou seja, surge apenas quando o agente – com acesso à coisa – transforma esse acesso livre para a usar em nome da sociedade, em uso pessoal.

Diz o recorrente que não há abuso de confiança, porque o que decorre da matéria de facto “é que o arguido, por facto independente da sua vontade ou aceitação, viu-se confrontado com a circunstância da quantia em causa ter surgido na sua esfera exclusiva de disponibilidade, tendo-se disso aproveitado”.

Este seu argumento não é concludente.
Como vimos, foi por facto da sua vontade que se deu a nova detenção, isto é, a detenção em nome próprio.
Na verdade, quando o agente vê surgir na sua esfera de disponibilidade uma coisa móvel (que aí entra para ser usada em nome de outrem) e inverte o título que legitimava essa disponibilidade, passando a agir como proprietário, pratica um facto dependente da sua vontade que se traduz precisamente na constituição de uma nova detenção.
O arguido aproveitou-se da situação (como diz) através de um acto voluntário, causal da nova detenção. Esse acto voluntário causal da nova detenção foi a transferência bancária e, por detrás dela, em termos jurídicos, esteve uma atitude jurídica de agir como proprietário e, dessa forma, apropriar-se da coisa.

Do exposto resulta que a sentença recorrida não pode manter-se, pois não se verificam os elementos do tipo do furto, mas sim os do crime abuso de confiança.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 424º, 3 do CPP, tendo-se pronunciado o arguido sobre a possível alteração da qualificação jurídica. Assim, nada obsta à condenação do arguido pelo crime que resulta da factualidade provada.
O crime cometido pelo arguido, previsto nos artigos 205º, nºs 1 e 4, al. b), com referência ao artigo 202º, al. b) do C. Penal, é punido com uma pena de 1 a 8 anos de prisão.

A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção – art. 71º, 1 do C. Penal.

No caso em apreço, o grau de ilicitude é acentuado, tendo em conta o montante da quantia de que o arguido se apropriou € 77.630,27.
O dolo foi directo.
O facto de o arguido ter usado parte da quantia para pagar dívidas fiscais da insolvente evidencia algum sentido de responsabilidade, sendo certo todavia que, tendo a Sociedade Unipessoal sido declarada insolvente, não era ao arguido que cabia decidir quais os credores que deveriam ser pagos e em que medida.
Está social e familiarmente integrado, é de condição económica modesta, auferindo, como operador de máquinas, entre € 600,00 a € 800,00 mensais.

Justifica-se, assim, uma pena mais próxima do limite mínimo, afigurando-se-nos adequada a pena de 3 anos de prisão.
Pelas razões já apontadas na sentença recorrida (para uma pena igual, mas reportada a uma qualificação jurídica diversa - furto), entendemos que se justifica a suspensão da execução da pena. Com efeito, tendo em atenção o disposto no art. 50º, 1 do C. Penal, o facto de o arguido não ter antecedentes criminais e mostrar-se integrado social, profissional e familiarmente, é objectivamente de esperar que a censura do facto e a ameaça da prisão satisfaçam adequadamente as finalidades da punição.

Deste modo, suspende-se a execução da referida pena de prisão (3 anos), pelo período de três anos.

3. Decisão
Face ao exposto, os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam:
a) Revogar a sentença recorrida, no que respeita à qualificação jurídica dos factos provados;
b) Condenar o arguido B………. como autor material de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelos artigos 205º, 1 e 4, al. b) com referência ao artigo 202º, b) do C. Penal, na pena de 3 anos de prisão;
c) Suspender a execução da pena de prisão acima referida, por igual período de tempo (três anos).

Custas pelo arguido, fixando a taxa de justiça em 4 UC.

Porto, 15/09/2010
Élia Costa de Mendonça São Pedro
Pedro Álvaro de Sousa Donas Botto Fernando