Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ARRESTO
DÍVIDA COMERCIAL
ACTO COMERCIAL
COMERCIANTE
EMPREITADA
Sumário
I - Antes da nova red. do CPC (a de 1995), era proíbido o arresto contra comerciantes se a dívida proviesse de actos relacionados com o exercício do seu comércio (comercialidade substancial), salvo provando o arrestante que aquele não estava matriculado ou, estando-o, nunca exerceu o comércio ou deixou de o exercer há mais de 3 meses. II - A intenção do legislador era a de protecção da actividade comercial (a garantia podia ser substituída pela falência, que melhor acautelava a defesa dos interesses dos credores) e evitar o abuso cometido pelo devedor (matricular-se como comerciante sem exercer ou deixando de exercer, de facto, o comércio). III - O CCOM contempla, no seu artigo 2, os actos comerciais - objectiva (1.parte) e subjectivamente (na 2. parte; os que, em princípio, têm conexão com o comércio dos seus agentes - presunção juris tantum - só o não são os actos que, por sua natureza, não podem ser particados em conexão com o comércio dos seus autores). IV - É mercantil o contrato de empreitada cujo resultado seja economicamente produtivo e a obra realizada através de uma empresa. V - A expressão "se o contrário do próprio acto não resultar" significa que um acto de um comerciante só pode ser objectivamante comercial se não resultar do próprio acto que este não tem aquela conexão.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
A, requereu, na comarca de Coimbra, procedimento cautelar de arresto contra B, o qual veio a ser decretado.
Inconformada, a requerida agravou com o fundamento de que a dívida era comercial, e fê-lo com êxito já que a Relação, revogando a decisão de 1. instância, ordenou o levantamento do arresto.
Desta vez, quem se não conformou foi a requerente do arresto, que pediu revista, tendo concluído as suas alegações pela forma seguinte:
1- O contrato de empreitada é um contrato meramente civil, pelo que não é mercantil a dívida cuja garantia é assegurada pelo arresto decretado pelo tribunal.
2- O acórdão recorrido violou os artigos 1207 do CC, 2. do CCOM. e 403 n. 3 do CPC, na sua redacção anterior ao DL 329-A/95 de 12 de Dezembro.
Contra-alegando, a recorrida pugna pela manutenção da decisão.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir, para o que começaremos por elencar os seguintes factos que as instâncias consideraram provados:
1- Entre a requerente e a requerida foi celebrado um contrato de empreitada destinado a restaurar o prédio urbano sito em Coimbra, composto de cave, rés-do-chão e
1. andar, inscrito na matriz sob o artigo 910 e descrito na Conservatória do Registo Predial e aí inscrito a favor da requerida.
2- Em cumprimento do contrato, a requerente procedeu à realização das obras de restauro dos interiores ao longo de mais de um ano, com recurso a trabalhadores seus assalariados e com incorporação de materiais, em grande parte por si fornecidos.
3- Por carta de 15 de Março de 1996, a requerida solicitou
à requerente que removesse do prédio todo o material que lhe pertencia e comunicou-lhe a intenção de encerrar o prédio.
4- Nessa altura ainda não se encontravam terminadas as obras contratadas, faltando efectuar alguns trabalhos e acabamentos no interior do prédio, tendo a requerente abandonado o prédio e colocado cadeado nas portas.
5- Nesta data, a requerida devia cerca de 7000000 escudos pelos trabalhos efectuados que a requerida se recusou a pagar.
6- Durante o mês de Fevereiro de 1996, quando os trabalhos ainda decorriam, compareceram no local várias pessoas interessadas em adquirir o edifício, acompanhadas de mediadores imobiliários e do próprio representante da requerida.
7- Não são conhecidos à requerida (e não requerente, como por lapso foi escrito no acórdão, que repetiu o lapso já cometido na 1. instância) outros bens imóveis ou móveis de valor na cidade de Coimbra ou noutro local.
8- A requerida é uma sociedade por quotas que tem por objecto a construção civil, estudos económicos e projectos, aquisição, mediação e venda de propriedades e representações comerciais.
A questão a apreciar consiste em saber se a dívida em que se baseou o pedido de arresto é comercial ou civil.
Enquanto para a recorrente a dívida tem natureza civil, já a Relação enveredou pela natureza mercantil, entendendo que competia à requerente provar que a dívida não era comercial.
O artigo 403 do CPC (redacção anterior à reforma, por ser a aqui aplicável) dispõe no seu n. 3: "Se a dívida for comercial e o arrestado comerciante, provar-se-à que ele não está matriculado ou que, embora matriculado, nunca exerceu o comércio ou deixou de o exercer há mais de três meses".
A intenção do legislador, com a norma citada, ao proibir o arresto dos bens de comerciante matriculado, visou proteger o exercício da actividade mercantil (R. Bastos,
Notas ao CPC, 2., p. 275), porque a garantia respectiva pode ser substituída pela falência, que garante melhor a defesa dos interesses dos credores. Mas também procurou "evitar o abuso cometido pelo devedor que, para se subtrair ao arresto se fazia matricular como comerciante, sem exercer, de facto o comércio" (A. Reis, CPC anot., 2., p.26).
Daí que, se o arrestado é comerciante e se a dívida é comercial, aquela protecção faça impender sobre o arrestante o ónus da prova de que o arrestado não está matriculado ou, estando-o, nunca exerceu o comércio ou deixou de o exercer há mais de 3 meses.
Face ao facto provado, elencado sob o n. 8 supra, não há dúvida de que a requerida é uma sociedade comercial. É uma sociedade por quotas e tem por objecto a prática de actos de comércio (cfr. artigos 1 n. 2 do CSC e 230 n. 6 do CCOM.).
Posto isto, importa averiguar que sentido se deve dar à expressão "dívida comercial".
A doutrina, desde A. Reis, vem entendendo que a dívida tem de ser substancialmente comercial, isto é, a dívida tem de ser proveniente de actos relacionados com o exercício do comércio, não bastando a comercialidade formal para fazer funcionar o preceito (obra e vol. cits., p. 28 e R.
Bastos, obra, vol. e loc. cits.).
A dívida em causa resultou de um contrato de empreitada celebrado entre a requerente como empreiteira e a requerida como dona da obra (factos ns. 1 e 2 supra), em que esta se constituiu devedora em relação àquela (facto n. 5).
O artigo 2 do CCOM. estatui que "são considerados actos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste código, e, além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar".
Na 1. parte da norma estão contemplados os actos objectivamente comerciais e na 2. os subjectivamente comerciais. Relativamente a estes, seguimos o caminho traçado pelo Prof. Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, 1. p. 101, ed. 1965), quando ensina que a 2. parte do artigo 2 contém uma presunção de que os actos aí referidos têm, em princípio conexão com o comércio dos seus agentes, ligam-se à sua complexa actividade mercantil.
Então, porque a presunção é juris tantum, relativa, é ilidível através do mecanismo das ressalvas previstas na última parte do segmento da norma: serem os actos de natureza exclusivamente civil e se o contrário do próprio acto não resultar (vide no mesmo sentido, Dr. Pupo Correia, Direito Comercial, ed. 1996, p. 53).
Como o contrato de empreitada vem regulado no CC (artigos 1207 e ss.), a questão cai na 2. parte do artigo
2, sendo à luz desta que se deve resolver. E podíamos ficar por aqui, face à aludida presunção que não se mostra ilidida. Mas importa ir mais longe, e tentar averiguar se, in casu, o contrato de empreitada referido ou, pelo menos, a dívida, tem natureza comercial. Porque o facto de actos jurídicos serem praticados por comerciante não basta para os qualificar como comerciais. É necessário que, "além desta condição subjectiva, tenham uma certa conformação objectiva, que se traduz nestas duas fórmulas: não serem de natureza exclusivamente civil e se o contrário do próprio acto não resultar" (Prof. F. Correia, ibidem, p.54).
Atentemos nos factos acima descritos sob os ns. 8, 1, 2 e
6 e por esta ordem, para melhor se perceber a sua conexão com a actividade mercantil da recorrida.
E, agora, relembremos que a interpretação da expressão "actos de natureza exclusivamente civil" originou duas correntes doutrinárias. Para Veiga Beirão, G. Moreira e Pinto Coelho tais actos eram apenas os regulados no CC.
Para Barbosa de Magalhães, F. Correia, Vasco Xavier e Pupo Correia, entre outros, só estão excluídos de uma eventual comercialização subjectiva os actos que, por sua natureza, não podem ser praticados em conexão com o comércio dos seus autores.
Das duas, é a segunda a que seguimos, remetendo a opção para a argumentação do Mestre de Coimbra (fls. 103 e ss.).
E, se dúvidas ainda houvesse, elas dissipar-se-iam trazendo à colação a opinião abalizada do Prof. Pedro Martinez, para quem "por força do artigo 2 do CCOM., poder-se-à considerar como mercantil o contrato de empreitada cujo resultado seja economicamente produtivo e a obra realizada através de uma empresa" (Contrato de empreitada, p.23).
Quanto ao sentido a dar à expressão "se o contrário do próprio acto não resultar", e no seguimento da orientação tradicional, ele deve ser o de que um acto de um comerciante só pode ser objectivamente comercial se não resultar do próprio acto que este não tem qualquer conexão com o comércio do seu autor.
O recorrente não só não ilidiu a presunção referida no artigo 2 do CCOM., como até, pela prova feita, existe uma relação de conexão com a actividade comercial que leva à qualificação de comercial da dívida.
Não foram, portanto, violadas as disposições legais referidas na pretensão do recorrente, não merecendo censura o acórdão recorrido.
Termos em que se nega a revista, com custas pela recorrente.
Lisboa, 20 de Janeiro de 1999.
Sousa Dinis,
Miranda Gusmão,
Sousa Inês.