CONTRATO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
Sumário

I- Para além das situações de não observância de prazo fixo absoluto contratualmente estipulado, o carácter definitivo do incumprimento do contrato consuma-se se, em consequência da mora do devedor, o credor perder o interesse na prestação, a qual terá de resultar objectivamente das condições e das expectativas concretas que estiveram na origem da celebração do negócio, bem como das que posteriormente venham a condicionar a sua execução.
II- A afirmação da perda de interesse na prestação do devedor tem carácter conclusivo, relevando da análise de matéria de direito, razão por que não vincula o Supremo Tribunal de Justiça.
III- Uma coisa é ser a obrigação líquida ou ilíquida; outra coisa é a controvérsia sobre se existe ou não a obrigação.
No caso de iliquidez, são devidos juros desde a citação; no caso de liquidez, os juros são devidos desde a constituição em mora.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A intentou a presente acção com processo ordinário contra a Junta de Freguesia de B, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 4024940 escudos, acrescida de juros vincendos.
Alegou, no essencial, que, no exercício da respectiva actividade, de prestação de serviços na área do "design" gráfico e visual, procedeu, a solicitação da Ré, à concepção, maquetização, fotocomposição, fotografia, redacção, impressão e entrega, durante o ano de 1993, de três números de uma revista denominada "C", órgão oficioso da mesma Ré, com saída nos meses de Julho, Setembro e Novembro, não tendo sido publicado o último número, a pedido da própria Ré.
Apenas foram pagas as facturas relativas a um dos referidos números da revista, que teve o nº 3 na capa, ficando por pagar as facturas relativas ao nº 4, duas de 629880 escudos e uma de 839840 escudos, e ainda uma última, de 1206400 escudos, respeitante às despesas suportadas com a elaboração do último número - o nº 5.
Na contestação, a Ré defendeu-se, invocando, desde logo, a excepção da incompetência material do Tribunal Cível por entender que a acção devia ser proposta nos Tribunais Administrativos, uma vez que se estaria em presença de um contrato administrativo. Adicionalmente, alegou diversas excepções de carácter substantivo - a falta de competência do Presidente da Junta para, inexistindo prévia deliberação da Junta, assinar o contrato, a não precedência de concurso público e a não sujeição a visto do Tribunal de Contas -, pelo que o contrato seria nulo e ineficaz perante a Ré.
Alegou ainda que o nº 4 da revista não foi publicado atempadamente, pelo que não seria devido qualquer pagamento quanto a ele, e, relativamente ao nº 5, só depois da eleição do actual presidente, foi a Ré contactada pela A. no sentido da confirmação da respectiva publicação, o que a Ré recusou, além do mais por ter há muito decorrido a data para o efeito, com o consequente desinteresse da mesma Ré em face do atraso da publicação.
Na réplica, a A. pugna pela improcedência de todas as excepções.
Elaborou-se o despacho saneador - fls. 27 -, no qual foi julgada improcedente a excepção de incompetência, sendo o Tribunal cível considerado materialmente competente. No saneador foram também julgadas improcedentes as referidas excepções de direito substantivo.
Foram organizados especificação e questionário - cfr. fls. 29.
A Ré, não se conformando com a decisão que, no saneador, julgou improcedentes as excepções por ela deduzidas, interpôs recurso de agravo - cfr. fls. 34.
Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença que condenou a Ré nos termos pedidos - cfr. fls. 75.
Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação ( fls. 82), tendo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão 29 de Outubro de 1998 (fls. 116-123) , decidido julgar parcialmente procedente o recurso, alterando parcialmente a decisão recorrida, sendo a Ré condenada a pagar à A. a quantia de 2099600 escudos, correspondente a 629880 escudos + 629880 escudos + 839840 escudos das facturas nºs 254, 255 e 258, relativas á revista nº 4 e absolvendo-se do demais (relativo à revista nº 5), acrescida de juros de mora nos termos fixados na sentença.
Autora e Ré trouxeram deste acórdão os competentes recursos de revista (fls. 126 e 128), oferecendo, ao alegar, as seguintes conclusões:

A) Conclusões das alegações da A. "A" - fls. 130 e segs.:

1. A matéria de facto apurada nos autos, por especificada ou resultante das fundamentadas respostas dadas aos quesitos dos autos, é cristalina no sentido de conduzir, pela subsumpção dos factos ao Direito aplicável, à integral condenação operada pelo Tribunal Colectivo de 1ª instância.
2. Confessa-se a A. vencida quanto à fundamentação processual do douto Acórdão recorrido para "cercear", nos termos em que o fez, a resposta inicialmente dada ao quesito 5º do questionário.
3. Contudo, tem como obviamente abusivo, e destituído de qualquer sentido, qualquer entendimento tendente à imputação a outrem, que não a Junta de Freguesia R., de responsabilidade objectiva, ou de culpa, pelo facto de não ter sido publicado o nº 5 da Revista "C".
4. É óbvia a constatação de que, de toda a matéria factual provada ou assente nos autos, nada é possível extrair ou concluir no sentido de imputar à aqui recorrente qualquer incumprimento contratual culposo.
5. E o carácter culposo desse eventual, mas inexistente, incumprimento seria pressuposto indispensável à recondução da situação jurídica dos autos para a disciplina do art. 808º do Cód. Civil, atento o disposto no art. 798º do mesmo Código.
6. Ao invés, mesmo "riscada" dos autos a matéria que o douto Acórdão recorrido deu como não escrita, induz-se da demais matéria relevante que foi a R. que não praticou os actos necessários ao cumprimento da obrigação, sobre ela recaindo o risco da impossibilidade ou inutilidade superveniente da prestação, continuando obrigada ao pagamento integral do preço, já que não houve benefícios para a A. com a extinção daquela - arts. 815º e 795º, nº 2, do Cód. Civil.
7. Por outra via, e sem prescindir, verifica-se que a absolvição parcial, operada no douto Acórdão de que se recorre, se revela tributária de um flagrante abuso de direito por parte da R.
8. Preceituando o nº 2 do art. 808º do Cód. Civil que a perda do interesse na prestação é apreciado objectivamente, constata-se que, no douto Acórdão recorrido, tal apreciação não foi efectuada no verdadeiro sentido que a lei prescreve - assim prejudicando o julgamento operado, que se mostra - inquinado - por uma clara subjectividade, desajustada dos dados de facto relevantes.
9. Como detalhadamente se demonstrou no contexto, a Revista "C" era um órgão informativo e oficial da autarquia R., e não um mero folheto propagandístico eleitoral, como diversas asserções da douta decisão recorrida parecem ter como adquirido - ao reconduzirem para a publicação finalidades político-eleitorais apenas alegadas quanto ao último número, o nº 5.
10. A própria R. afirma peremptoriamente que o nº 5 da Revista não foi publicado por ordem sua, e que o incumprimento dos prazos previstos para a edição daquele tornou a mesma Revista sem interesse para a R., porque feita à medida do seu anterior Presidente, e laudatória da sua obra, tendo em vista as eleições de 12.12.93.
11. Assim, só por motivações políticas intrínsecas e exclusivas à esfera da própria R. - e em função de alternância democrática na composição daquela autarquia - veio a Junta de Freguesia de B a fazer tábua rasa dos compromissos antes assumidos com a sociedade A., em função do contrato com a mesma celebrado, e depois desta ter efectuado todo o trabalho a que respeita a factura nº 270.
12. Verifica-se, pois, que a apreciação que é feita no douto Acórdão recorrido sobre a perda do interesse na prestação, alegada pela R., não foi objectiva - antes injusta e imponderada - pois ajuizou, em exclusivo, os elementos volitivos, as motivações e os interesses intrínsecos à R.
13. Olvidando completamente o efectivo objecto da prestação em apreço, à luz das legítimas e normais finalidades sociais e económicas dos direitos conflituantes das partes.
14. Ora, não pode aceitar-se, a qualquer luz, da Moral e do Direito - mesmo nos tempos surpreendentes que vão correndo (...) - que a validade dos compromissos assumidos pelas pessoas colectivas, de direito público ou privado, têm a duração etérea dos mandatos daqueles que momentaneamente as representam.
15. Assim, no concreto contexto factual e jurídico dos presentes autos, verifica-se que a pretensão da R., ao pretender exonerar-se das suas obrigações para com a A., com recurso ao disposto no nº 2 do art. 808º do Cód. Civil, configura exercício de flagrante abuso de direito - cristalinamente interditado pela nossa ordem jurídica pelo disposto no art. 334º do Cód. Civil.
16. Ao operar a abolvição parcial de que vem o presente recurso, o douto Acórdão da Relação do Porto violou, ou fez errada interpretação, para além do mais, das disposições dos arts. 808º, 798º, 813º, 815º, 795º, nº 2, e 334º, todos do Código Civil, quando se impunha, à luz do Direito aplicável, e dos factos pertinentes para tanto, fosse confirmada integralmente a condenação operada na douta sentença proferida em primeira instância.
Termos em que se pede seja o acórdão recorrido revogado na parte em que absolveu a R. do pedido, confirmando-se o mesmo quanto ao mais.
B) Conclusões das alegações da Ré "Junta de Freguesia de B" - fls. 137 e segs.:
1. Num contrato bilateral incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso ou tardio da obrigação não procede de culpa sua, cabendo ao credor provar, apenas, o incumprimento objectivo do contrato, no caso, que a prestação foi satisfeita em finais de Novembro quando devia ser satisfeita em Setembro.
2. Há falta objectiva de cumprimento e perda do interesse do credor quando a prestação é efectuada para um determinado fim (publicidade ou elogio da obra de um órgão autárquico) e o atraso no seu cumprimento impede a sua utilização por razões objectivas (proibição legal de publicidade) e por desinteresse (mudança do órgão após as eleições).
3. Não entendendo assim, o douto Acórdão violou os arts. 799º, nº 1, e 334º, nº 1, do C. Civil.
Por outro lado , e sem prescindir,
4. Num contrato bilateral, não tendo o devedor cumprido a sua prestação atempadamente, e discutindo-se o dever de pagar ou não o preço, não são devidos juros de mora enquanto a prestação se não tornar líquida, já que tal obrigação é acessória da primeira e pressupõe o seu reconhecimento.
5. Sendo o atraso no cumprimento da prestação imputável ao credor do preço, são-lhe imputáveis as consequências da mora, pelo que só serão devidos juros de mora após o trânsito da decisão que reconheça a prestação, salvo prova da existência de dolo por parte do devedor do preço.
6. Não entendendo assim, as instâncias violaram os arts. 804º, nº 2, e 805º, nº 3, do C. Civil.
Termos em que se pede seja julgada a total improcedência do pedido formulado pela Recorrida ou, se assim não for entendido, se decida que os juros de mora apenas são devidos após o trânsito em julgado da decisão que reconheça à Recorrida o direito à prestação.
Contra-alegando a revista interposta pela A., a Ré/Junta de Freguesia pugna pela confirmação, nessa parte, do acórdão recorrido - fls. 145-153.
A Autora não deduziu contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II
A matéria de facto que a Relação deu como assente é a seguinte:
1 - A A. dedica-se, entre outras actividades, à prestação de serviços na área de "design" gráfico e visual (A) da Esp.).
2 - No exercício da sua actividade, a A. foi solicitada pela Ré a proceder à concepção, maquetização, fotocomposição, fotografia, redacção, impressão e entrega durante o ano de 1993 de três números da revista "C", órgão informativo da Ré com saídas em Julho, Setembro e Novembro (1º do Quest.).
3 - A A. e D, este na qualidade de Presidente da Ré, subscreveram o contrato de fls. 5 (Qº 2º).
4 - O valor global desses serviços ascendia a 6298500 escudos com I.V.A., a pagar em três prestações, sendo 30% na confirmação de cada número, 30% na aprovação desse mesmo montante e 40% na entrega, no montante de 839.840$00 (Qº 3º).
5 - A A. procedeu, durante o ano de 1993, à realização dos números da "C" correspondentes aos números de capa 3, 4 e 5 (Qº 4º).
6 - Dos três números atrás referidos apenas o nº 5 não chegou a ser publicado quando se encontrava já efectuado o trabalho jornalístico, fotográfico e "design" (Qº 5º) (1) Na sequência da decisão do acórdão recorrido no sentido de considerar como não escrito o segmento final constante da resposta ao quesito 5º, do seguinte teor: "por a Ré não ter apresentado o texto relativo ao editorial").
7 - A A. apresentou à R. as facturas relativas a tais serviços, tendo ela apenas liquidado as dos nºs 230, 231 e 232, relativas ao nº 3 (Qº 6º).
8 - As facturas nºs 254, 255 e 258, cujas cópias se encontram a fls. 6, 7 e 8 montam a 629880 escudos, 629880 escudos e 839840 escudos, respectivamente (Qº 7º).
9 - As despesas efectuadas com a elaboração do nº 5 montam a 1206400 escudos (Qº 8º).
Para além destes factos, há ainda os seguintes, constantes de aditamento à especificação, em resultado do deferimento da reclamação oportunamente apresentada pela Ré - cfr. fls. 32-33 e 37:
- Alínea B) da Esp. - O contrato de fls. 5 foi assinado por D, o qual, nessa ocasião, exercia funções de presidente da Junta de Freguesia de B.
- Alínea C) da Esp. - O nº 4 da revista a que alude o contrato de fls. 5 foi entregue à R. em finais de Novembro de 1993, levando a que muitos números dessa mesma revista não fossem distribuídos.
- Alínea D) da Esp. - Só após a posse da nova direcção da junta de freguesia de B, saída das eleições de Dezembro de 1993, o novo presidente foi contactado pela A. no sentido de "confirmar" a edição do nº 5 dessa mesma revista.
- Alínea E) da Esp. - Em consequência das datas de publicação das revistas como acima ficou referido, a R. perdeu o interesse na sua publicação da mesma revista, por ter sido feita com vista às eleições de 12-12-93 e laudatória à obra do seu presidente.
III
1 - Na origem dos presentes autos está um contrato de empreitada de direito privado - a qualificação e validade de contrato é matéria que já não se encontra em discussão nos presentes recursos -, mediante o qual a A. se comprometeu a proceder à concepção, elaboração e entrega durante o ano de 1993 de três números (os nºs 3, 4 e 5) da revista "B", órgão informativo da Junta de Freguesia/Ré, com saídas nos meses de Julho, Setembro e Novembro, pelo valor global de 6298500 escudos.
Está provado que os três números foram feitos, e apenas o nº 5 não chegou a ser publicado. A Ré só pagou as facturas relativas ao nº 3, estando por pagar três facturas correspondentes ao nº 4, as duas primeiras das quais no valor de 629880 escudos e a terceira de 839840 escudos, e ainda as despesas com a elaboração do nº 5, que ascendem a 1206400 escudos.

2 - Justifica-se, antes do mais, analisar as razões que justificam a diferença das duas decisões das instâncias que se acham em confronto.
Diversamente da 1ª instância, que acolheu, na totalidade, o pedido, a Relação do Porto considerou dever limitar a condenação da Ré ao pagamento das quantias das facturas relativas ao número 4 da revista "B" - e respectivos juros moratórios - absolvendo-a, porém, do valor da factura correspondente ao nº 5 da mesma revista e respectivos juros.
Justificou tal decisão pelo facto de que, ao passo que, quanto ao nº 4, e não obstante a existência de atraso na sua entrega, não ter o mesmo sido de molde a acarretar a perda de interesse para a Junta de Freguesia, credora de tal prestação, já no que ao nº 5 se referia, a sua não entrega antes das eleições autárquicas terá determinado necessariamente aquela perda de interesse, ficando a Ré, por isso mesmo, desonerada do pagamento do preço correspondente.
Relevante para a absolvição da Ré no pagamento da quantia relativa às despesas efectuadas com a elaboração do nº 5 da revista foi, sem dúvida, a alteração introduzida pelo Tribunal ad hoc à resposta dada ao quesito 5º, questão já brevemente aflorada.
Com efeito, em face da decisão de se considerar como não escrita a justificação dada pelo Colectivo para a não publicação daquele nº 5, razão que consistira, recorde-se, no facto de "a Ré não ter apresentado o texto relativo ao editorial", e inexistindo na matéria de facto dada como provada qualquer elemento que permitisse apontar para a culpa da Ré relativamente à mora no cumprimento daquela entrega, ficou a subsistir a presunção de culpa a que se refere o nº 1 do artigo 799º do Código Civil, diploma a que pertencerão os normativos que se venham a indicar sem indicação da origem. Presunção que a A. não conseguiu ilidir, o que se revela determinante para a improcedência da revista que agora traz.

3 - Apreciemos, então, com mais detalhe, o recurso interposto pela Autora.
Não obstante aceitar, inevitavelmente, a restrição imposta à resposta dada pelo Colectivo ao quesito 5º, insurge-se a A. contra a absolvição parcial da Ré do pedido, atendendo a que, segundo alega, se provou matéria factual originariamente enunciada, não lhe podendo ser imputado a ela, Autora, qualquer incumprimento contratual culposo, indispensável à disciplina dos artigos 808º e 798º. Alega, ademais, que não se verificou, quanto ao nº 5 da revista, uma perda objectiva de interesse por parte da Ré e que, se o mesmo não foi publicado, isso resultou de ordem da Ré, por motivações de carácter político do seu interesse pessoal.
Não tem, no entanto, razão a A. quando invoca que, ainda que "riscada" dos autos a matéria que o acórdão recorrido deu como não escrita, "se induz da demais matéria relevante que foi a Ré que não praticou os actos necessários ao cumprimento da obrigação, sobre ela recaindo o risco da impossibilidade ou inutilidade superveniente da prestação (...)" - cfr. conclusão 6ª das respectivas alegações de recurso.
Com efeito, uma vez eliminado o já referido segmento da resposta inicial ao quesito 5º, debalde se procura no acervo fáctico dado como assente, matéria susceptível de fundamentar a afirmação de que "foi a Ré que não praticou os actos necessários ao cumprimento da obrigação". A circunstância de a Ré não ter autorizado a publicação do nº 5 não pode ser invocada como susceptível de transferir para ela a culpa pelo incumprimento da obrigação. Com efeito, e tal como resulta da matéria de facto dada como provada, isso resultou da perda de interesse da Ré na publicação daquele número da Revista já muito depois da "data-limite" da realização das eleições de Dezembro de 1993.
Tenha-se, a propósito, presente que, "só após a posse da nova direcção da junta de freguesia de "B", saída das eleições de Dezembro de 1993, o novo presidente foi contactado pela A. no sentido de "confirmar" a edição do nº 5 dessa mesma revista".
E que, em consequência, a R. perdeu o interesse na publicação da mesma revista, "por ter sido feita com vista às eleições de 12-12-93 e laudatória da obra do seu presidente".
Ou seja, não tendo o A. conseguido ilidi-la, subsiste a presunção de culpa no incumprimento da obrigação por parte do devedor, atento a disposto no artigo 799º, nº 1.
O problema que importa agora analisar consiste, pois, em apurar se a perda de interesse na prestação por parte da respectiva credora - a Junta de Freguesia - foi apreciada objectivamente - artigo 808º, nº 2.
3.1. - Para além das situações de não observância de prazo fixo absoluto, contratualmente estipulado, o carácter definitivo do incumprimento do contrato consuma-se se, em consequência de mora do devedor, o credor perder o interesse na prestação. É a lição do nº 1, primeira parte, do artigo 808º, segundo o qual: "se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação (...), considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação".
Nesse caso, a perda do interesse não pode resultar de um simples capricho do credor.
Dir-se-á apenas que a superveniente falta de utilidade da prestação, ou até eventual prejuízo, para o accipiens terá que resultar objectivamente das condições e das expectativas concretas que estiveram na origem da celebração do negócio - (artigo 808º, nº 2), bem como das que, posteriormente, venham a condicionar a sua execução, inscrevendo-se no contexto daquilo que Calvão da Silva chama o respectivo "programa obrigacional". Para o repúdio da fundamentação puramente subjectiva da perda do interesse e para o papel do Supremo na apreciação da objectividade exigida no nº 2 do artigo 808º, cfr. Antunes Varela, R.L.J., Ano 118º, págs. 54-57, anotação ao Acórdão do STJ de 3-12.81.
Por outro lado, não basta a simples diminuição do interesse do credor, exigindo-se uma perda efectiva desse interesse. Ou seja, impõe-se uma perda subjectiva do interesse com justificação objectiva. Perda de interesse que, no regime do Código civil alemão, analisado por Antunes Varela, é uma perda absoluta, completa, de interesse na prestação (kein interesse) - e não de mera diminuição ou redução de tal interesse - traduzida por via de regra no desaparecimento da necessidade que a prestação visava satisfazer - cfr. loc. cit., pág. 55.
A este propósito, observava Baptista Machado que a utilidade que a prestação representa para o credor está em estreita relação com o particular emprego que ele lhe pretenda dar, sendo certo que tal utilidade, por seu turno, foi determinante relativamente à decisão de contratar e de assumir a obrigação de dar o correspectivo prometido.
Posto o que acrescenta o Autor que, de momento, se acompanha: "Pelo exposto, e em termos gerais, deverá, em princípio, ser considerada grave e, como tal, susceptível de fundamentar o direito de resolução toda aquela inexecução ou inexactidão do cumprimento (quer sob a forma de atraso no cumprimento, quer sob a forma de inexactidão quantitativa ou qualitativa da prestação) que torne inviável um certo emprego do objecto da prestação ou que impossibilite o credor de o aplicar ao uso especial que ele tinha em mira" (cfr. "Pressupostos da Resolução por Incumprimento", Estudos em Homenagem ao Prof. Teixeira Ribeiro, vol. II, Iuridica, págs. 343 e segs, maxime, págs. 363 e seguintes).
Segundo Antunes Varela, a perda do interesse tem que resultar da mora no cumprimento e não de qualquer outra circunstância. Exigência que tem pleno cabimento em face do artigo 808º: " se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação (...)" - cfr. loc. cit., pág. 56.
3.2. - Lê-se no sumário do Acórdão deste STJ de 12-05-1993, processo nº 070613: "O direito de resolução de um contrato de empreitada pode fundar-se na mora se o credor, em consequência dela, perder o interesse que tinha na prestação, o que será apreciado objectivamente (artºs 808º, nºs 1 e 2 do CC); e quando o legislador se refere a uma perda objectiva do interesse na prestação em mora, tem em vista aqueles casos em que, pela natureza da própria obrigação, o retardamento no cumprimento destrói o objectivo do negócio".
Se se considerar o caso sub judice, deverá reconhecer-se que o atraso verificado na entrega do último número da revista - o nº 5 - é, por definição, susceptível de retirar ao destinatário - e credor - da prestação todo o interesse objectivo na respectiva publicação. Não se discute que, simultaneamente, inexista também qualquer interesse subjectivo, por parte dos novos titulares da Junta de freguesia, eleitos em Dezembro de 1993, na aludida publicação. O certo, porém, é que não foram eles que deram causa à mora. E, considerando que a publicação do referido número deveria ter tido lugar em data anterior à das eleições de Dezembro, estando, aliás, a respectiva "saída" contratualmente prevista para o mês de Novembro - cfr. supra, facto nº 2 -, é manifesta a existência de uma razão ponderosa que bem fundamenta a perda absoluta de interesse objectivo na publicação já depois da posse da nova direcção eleita.
Como se pode ler no sumário do Acórdão deste STJ de 25-06-1998, revista nº 446/98, 2ª secção, "a mora do devedor é equiparada ao não cumprimento da obrigação quando o credor perde o interesse na prestação, ou seja, se, em face das circunstâncias, essa perda de interesse corresponde à realidade das coisas".
Atentas as razões expostas, considera-se corresponder à realidade das coisas a perda de interesse numa eventual publicação, a efectuar nas referidas circunstâncias de tempo, do nº 5 da revista "B".
Atento o exposto, não procedem as razões invocadas nas conclusões da alegação da revista trazida pela A., apresentando-se também como manifestamente desajustado o apelo que faz ao instituto do abuso do direito, uma vez que o que aqui está em causa é o incumprimento do contrato por virtude da mora dela, Autora, e a eventual perda do interesse na prestação por parte da Ré.
Improcede igualmente a invocada violação das disposições legais citadas na conclusão 16ª.
4 - Passamos, assim, à apreciação do recurso da Ré.
4.1. - A primeira questão levantada diz justamente respeito ao nº 4 da revista, entendendo a Ré que, também quanto a ela, ocorreu perda objectiva do interesse na sua publicação, já que chegou ao seu poder com cerca de dois meses de atraso e quase em cima da data das eleições. Pelo contrário, a Relação do Porto considerou que o mero atraso não significou perda de interesse.
Para uma adequada análise da questão, é conveniente revertermos ao facto constante da alínea E) da especificação, nos termos do qual "em consequência das datas de publicação das revistas como acima ficou referido, a R. perdeu o interesse na publicação da mesma revista, por ter sido feita com vista às eleições de 12-12-93 e laudatória à obra do seu presidente".
Dir-se-á, a propósito, que, em face da sua redacção, enredada e confusa, sempre tal alínea exigirá um esforço complementar de interpretação.
Apesar de, na sua letra, a mesma não se limitar ao nº 5 da revista, abrangendo também o nº 4, publicado que foi em Novembro, quando deveria ter "saído" em Setembro, o certo é que o problema da perda de interesse por parte da Ré se coloca em termos bem distintos quanto aos dois números. É que, quanto ao nº 4, sem prejuízo dos inconvenientes havidos com o atraso - muitos exemplares desse número não foram distribuídos (cfr. alínea C) da especificação) -, a verdade é que, apesar disso, foi respeitada a aludida data-limite - a das eleições de Dezembro, que se constituiu como marco temporal decisivo para a consideração da subsistência do interesse na publicação.
Ou seja, apesar de, tal como está redigida a alínea E), a perda do interesse poder abranger os nºs 4 e 5 da revista, merece concordância o entendimento da Relação do Porto segundo o qual o critério objectivo para apurar da subsistência ou da perda do interesse eram as eleições de Dezembro, pelo que o nº 4, por ter sido entregue antes dessa data, embora depois do prazo convencionado, manteve interesse para a autarquia.
Voltando ainda à referida alínea E), importa reconhecer que, tal como está redigida, aí se descreve um "facto" que se apresenta como conclusivo, sendo, assim, criticável a forma como foi acolhido na especificação. Com efeito, a afirmação de que a R. perdeu o interesse na publicação tem manifesto conteúdo conclusivo, relevando da análise de matéria de direito. Razão para não vincular este Supremo Tribunal de Justiça, devendo, nessa parte, ser considerada como não escrita.
O que significa que, na análise da questão relativa à subsistência ou à perda do interesse da Ré na publicação dos nºs 4 e 5 da revista, em consequência da mora verificada na sua elaboração e entrega, se aplicam os princípios expostos que conduzem ao resultado acolhido no acórdão recorrido, ou seja: (a) manutenção do interesse no cumprimento da obrigação, quanto ao nº 4, não obstante os prejuízos verificados, mas dos quais a Ré não extrai consequências no plano jurídico; (b) perda do interesse quanto ao cumprimento, pela A., da prestação, relativamente ao nº 5, ultrapassada que se encontrava a data das eleições autárquicas, pré-figurada, de um ponto de vista teleológico, como data-limite para a utilidade e interesse da publicação.
Não foi, aliás, por acaso, que, não obstante a verificação do atraso, o referido nº 4 foi, ao contrário do que aconteceu com o nº 5, objecto de publicação. Em consequência do que se completou, relativamente a tal nº 4, o "iter" obrigacional a cargo da A. "Iter" que, nos termos convencionados, incluía, recorde-se, a confirmação e a aprovação de cada número, uma e outra a cargo da Ré, seguindo-se a respectiva entrega .
Diversamente, quanto ao nº 5, a Ré, através do novo presidente eleito da Junta de freguesia, recusou "confirmar" a respectiva edição, razão por que o número em apreço não foi publicado. Poder-se-á figurar a ocorrência, ao menos implícita, nesse momento, da declaração resolutória do contrato, a qual, em qualquer caso, não foi feita atempadamente pela Ré, aquando da elaboração e publicação do nº 4.
Extrai-se do exposto que improcede, nesta parte, o recurso da Ré, pelo que se confirma, neste ponto, o acórdão recorrido, que condenou a Ré a pagar à A. a quantia de 2099600 escudos, correspondente às três facturas relativas ao nº 4 da revista.
4.2. - A segunda questão colocada no recurso da Ré diz respeito à questão dos juros moratórios. Recorde-se que a primeira instância condenou a Ré no pagamento dos juros desde a propositura da acção, invocando os artigos 804º, 805º, nº 2, alínea a), e 806º.
Observa a Ré, no arrazoado das suas alegações, que o Mmº Juiz da 1ª instância "condenou a ré nos juros de mora "desde a data da propositura da acção", como se dívida existisse, como se a Ré fosse devedora, e devedora daquele montante, como se a A. tivesse cumprido pontualmente o contrato".
Atento o que conclui o seguinte (cfr. conclusões 4ª e 5ª):
- Num contrato bilateral, não tendo o devedor cumprido a sua prestação atempadamente, e discutindo-se o dever de pagar ou não o preço, não são devidos juros de mora enquanto a prestação se não tornar líquida, já que tal obrigação é acessória da primeira e pressupõe o seu reconhecimento;
- Sendo o atraso no cumprimento da prestação imputável ao credor do preço, são-lhe imputáveis as consequências da mora, pelo que só serão devidos juros de mora após o trânsito da decisão que reconheça a prestação, salvo prova da existência de dolo por parte do devedor do preço.

Não tem, porém, razão. Contrariamente ao que a Ré pretende, não se trata, in casu, de uma situação de iliquidez da dívida. A obrigação é ilíquida quando é incerto o seu quantitativo ou, como se extrai do sumário de acórdão deste STJ de 18/12/1990 "(...) quando não estiver fixada predeterminadamente nem houver critérios rígidos ou facilmente contabilizáveis para a sua determinação".
Se é certo que existe controvérsia sobre se são, ou não, devidas as quantias peticionadas, não pode tal facto beneficiar o devedor quando se conclui que efectivamente deve. De outro modo estaria encontrada a forma de livrar os devedores relapsos do pagamento de juros ...
No caso em presença seriam devidos juros desde a data da constituição em mora (artigo 806º, nº 1). Todavia, a sentença da 1ª instância condenou a Ré no pagamento de juros desde a data da propositura da acção. Não tendo o A. reagido contra a restrição efectuada pela 1ª instância, deve manter-se a condenação de pagamento de juros apenas desde a propositura da acção.
É certo que a decisão do acórdão recorrido, no que a esta questão se refere, reza o seguinte: "A esta quantia (de 2099600 escudos) acrescem juros de mora contados nos termos fixados na sentença e que não foram minimamente postos em causa pelo recurso e a partir das datas constantes de tais facturas, como também ficou decidido, de forma implícita".
Não é possível acompanhar, neste particular, a decisão recorrida, ferida, aliás, de contradição nos termos.
Não faz sentido que o Tribunal da Relação integre uma eventual incompletude da decisão da 1ª instância, afirmando, sem fundamentação, que se tratava de algo que estava implícito.
Em face da clara singeleza formal da sentença da 1ª instância - condenação em determinada quantia, acrescida de juros desde a data da propositura da acção -, não é possível fazer apelo a uma decisão implícita.
E, não tendo a Autora impugnado a sentença da 1ª instância, transitou em julgado a condenação em juros nos termos ali fixados. O que, aliás, também é afirmado - em termos que se têm como contraditórios - pela decisão recorrida, na parte ora em questão.
Sem prejuízo da precisão acabada de fazer, improcede, ainda neste ponto, pelas razões supra expostas, o recurso da Ré.
Também neste recurso a invocação do instituto do abuso do direito se revela completamente desajustada em relação ao caso dos autos.
Termos em que improcedem os recursos da Autora e da Ré, confirmando-se a condenação desta a pagar àquela a quantia de 2099600 escudos, à qual acrescerão juros de mora contados nos termos fixados na sentença da 1ª instância, desde a data da propositura da presente acção.
Custas pelas A. e Ré na proporção do respectivo decaimento, estando, no entanto, a Ré delas isenta.
Lisboa, 16 de Março de 1999.
Garcia Marques,
Ferreira Ramos,
Pinto Monteiro.