ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURADORA
DIREITO DE REGRESSO
ABANDONO DE SINISTRADO
Sumário

I . O direito de regresso da seguradora contra o condutor contemplado na al. c) do art. 19 do DL 522/85 de 31/12, quando haja abandono de sinistrado, tem uma finalidade preventiva, não se encontrando pois limitado aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado.
II. Se o legislador pretendesse limitar o direito de regresso pelo abandono às situações de agravamento das consequências produzidas pelo acidente, tê-lo-ia dito expressamente como o fez por ex. em relação ao sinistro ocorrido com veículo que não foi submetido à inspecção periódica (al. f) do citado preceito).

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. A "Companhia de Seguros Fidelidade, SA" propôs acção com processo ordinário pedindo a condenação de X a pagar-lhe a quantia de 8928811 escudos e juros de mora à taxa legal desde 29-12-94, até efectivo pagamento, com fundamento em que tendo este sido condenado pela prática de um crime de ofensas corporais por negligência e outro de abandono de sinistrado, a A., como sua seguradora do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, teve de pagar ao lesado a quantia de 8029050 escudos e ao Hospital da Covilhã a quantia de 899761 escudos, assistindo-lhe direito de regresso, nos termos da al. c) do art. 19 do DL n. 522/85 de 31-12.
O R. impugnou o invocado direito de regresso e reconvindo pediu a condenação da A. no pagamento da quantia de 7000000 escudos, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, resultantes da pena de prisão em que foi condenado, superior à que seria se beneficiasse da reparação do dano, se a A. tivesse pago logo a indemnização ao lesado: concluiu pela improcedência da acção e procedência da reconvenção.
Respondeu a A. impugnando os fundamentos da reconvenção.
No saneador foi admitido o pedido reconvencional, decisão de que a A. agravou, recurso que foi admitido com subida diferida, alegando logo ambas as partes.
Na sequência da tramitação, a sentença julgou improcedentes a acção e a reconvenção.
Apelou a A., mas a Relação, julgou o recurso improcedente e confirmou a sentença.
Recorrendo agora da revista, alega e conclui:
" 1 - Seria leonino o contrato que garantisse ao segurado a transmissão da sua responsabilidade civil para a seguradora em toda e qualquer circunstância, sem qualquer contrapartida, independentemente do grau de ilicitude do seu comportamento.
2 - No cumprimento do contrato de seguro, o segurado além de pagar o prémio deve agir de boa fé evitando comportamentos que agravam o risco coberto pela apólice.
3 - Os riscos que pela sua gravidade estariam em princípio excluídos da cobertura do contrato de seguro devem ser assumidos pela seguradora, atendendo apenas ao princípio que visa a protecção dos direitos das vítimas, recaindo no entanto sobre os seus agentes o dever de reembolsar as seguradoras.
4 - A lei define clara e taxativamente os comportamentos que estão para além do risco contratualmente admissível no art. 19 do Decreto-Lei 522/85 e simultaneamente a correspondente sanção contratual - o direito de regresso, sem esquecer evidentemente as exclusões previstas no art. 7 do mesmo diploma.
5 - A lei do seguro obrigatório visa apenas a protecção dos direitos das vítimas e não dos segurados/condutores delinquentes ou grosseiramente negligentes.
6 - Não é por acaso que o abandono de sinistrado, como motivo de direito de regresso das seguradoras é descrito na mesma alínea que a condução com álcool e sem habilitação legal. Tal contiguidade decorre do facto de todos estes comportamentos deverem a todos os títulos ser evitados, se não eliminados, por perigosos.
7 - Os comportamentos descritos no art. 19 do Decreto-Lei 522/85 têm em comum o facto de serem considerados crimes de perigo não se relacionando com os resultados; a gravidade dos resultados funciona apenas como motivo de agravação das respectiva penas - «a gravidade dos ferimentos não é elemento constitutivo ou quantificativo do crime, mas sim uma agravante» - Acórdão da Relação do Porto de 29 de Março de 1967, Jurisprudência das Relações, ano 13, pág. 383.
8 - A intenção do legislador ao criar a norma contida no referido art. 19 foi dar continuidade ao previsto nas normas penais, estabelecendo uma sanção civil.
9 - Apesar de o art. 60 do Código da Estrada prever a punição do abandono de sinistrado no caso de não agravamento do mal [...] o legislador não ressalvou na referida alínea c) do art. 19 tal situação, à semelhança da excepção que configurou na alínea f) deste artigo.
10 - A aceitar-se que o direito de regresso só poderia ser exercido nos casos de agravamentos dos danos e nessa medida, a norma em questão tornar-se-ia inútil, porquanto normalmente seria impossível determinar a percentagem dos danos resultantes do acidente e do abandono.
11 - A configurar-se a hipótese de a lei vir a limitar o direito de regresso aos danos resultantes do agravamento e nessa medida, sempre tal ónus, isto é, o discriminar de uns e doutros, deveria recair sobre o infractor e nunca sobre um terceiro alheio a tal conduta - a seguradora.
12 - O certo é que actualmente a norma prevista na alínea c) do art. 19 do Decreto-Lei 522/85 não contém qualquer excepção ou condição que limite o direito de regresso da seguradora.
13 - Ao estabelecer o direito de regresso para os casos de abandono de sinistrado, o legislador quis evitar que o condutor alcoolizado ou sem habilitação para conduzir contornasse o inerente direito de regresso das seguradoras recorrendo à fuga do local do acidente. Esta afirmação é de tal forma pertinente que o agente da Guarda Nacional Republicana que elaborou o auto de ocorrência chamou a atenção para o facto de se presumir que o condutor tenha abandonado o local do acidente a fim de se furtar ao teste de alcoolemia.
14 - A interpretação perfilhada na douta sentença contém em si um germe potenciador da propensão à fuga do local do acidente de condutores alcoolizados ou não habilitados a conduzir - lembremos as notícias de fugas do local dos acidentes de figuras conhecidas do futebol português.
15 - Mostra-se violada, por erro de interpretação e aplicação, a disposição do art. 19, alínea c), do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro."

Vem fixada esta matéria de facto:
- No âmbito da sua actividade, a A., Companhia de Seguros Fidelidade, SA, celebrou com o R. X um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº 2626489, pelo qual o R. transferira a sua responsabilidade civil emergente da condução do veículo de matrícula NH-25-14, para a A. (A).
- Ao abrigo desse contrato, foi pelo R. participado à A., em 24 de Junho de 1987, um acidente de viação ocorrido no dia 23 de Junho de 1987, pelas 15h30, na E. M. de Ferro, área da comarca de Covilhã (B).
- Tal acidente deu origem aos autos de processo correccional, com enxerto cível, que correu seus termos pelo Tribunal de Círculo da Covilhã, sob o nº 204/89, em que o R. foi constituído arguido e a ora A. foi demandada civilmente, e no qual aquele foi pronunciado como autor material de um crime de ofensas corporais, p. e p. pelo art. 148, n. 3 do C. Penal, e de um crime de abandono de sinistrado, p. e p. pelo art. 60, n. 1, al. a) do Código da Estrada (C).
- Efectuado o julgamento, foi X condenado, por acórdão de 9-10-91, pelos crimes de que vinha acusado, na pena única de 10 meses de prisão, perdoada na totalidade ao abrigo da Lei 23/91, de 4-7 e na inibição da faculdade de conduzir pelo período de oito meses (D).
- Foi ainda solidariamente condenado com a Fidelidade a pagar ao assistente Y a quantia de 3810000 escudos e ao Hospital da Covilhã a quantia de 343420 escudos, acrescendo juros (E).
- Interposto recurso pelo R. e seguradora e, subordinadamente, pelo assistente Melfe, por acórdão da Relação de Coimbra de 4-3-92, foi decidido:
* por parcial provimento do recurso, foi o período de inibição de conduzir reduzido para 6 meses;
* negado provimento ao recurso interposto pela seguradora;
* parcialmente provido o recurso subordinado, foi fixado o montante da indemnização cível a prestar ao assistente, em 4070000 escudos, com juros desde a notificação;
* confirmar a decisão de 1ª instância quanto ao mais (F).
- Segurado e seguradora interpuseram novo recurso, e o STJ, por acórdão de 3-11-94, julgou improcedentes os recursos levados àquele Supremo Tribunal.
- Procedendo à liquidação das quantias em que o segurado e a seguradora foram condenados a pagar no Processo Correccional nº 204/90, esta última pagou, em 29-12-1994 a Y, a soma de 8029050 escudos e ao Hospital Distrital da Covilhã o montante de 899761 escudos (G).
- Interpelado o R. X, designadamente pela carta de 7-9-95, a reembolsar a A. Fidelidade, SA, das quantias por esta satisfeitas - 8029050 escudos + 899761 escudos - nada pagou até agora - (H).
- Nas proximidades do local onde ficou caído Y e descrito na sentença de fls. 54 a 61, estavam os moradores da casa aí existente e outras pessoas a trabalhar (1º)
- As quais, apercebendo-se do acidente, acorreram ao local e socorreram o sinistrado Y (2)
- O R. andou preocupado com a possibilidade de vir a ser condenado em pena de prisão (5º)
- Antes do processo e respectiva condenação, o R. era um homem alegre, sociável e trabalhador, ex-funcionário muito conceituado da Câmara Municipal de Belmonte (9º).
- Sendo pessoa estimada na região (10º).
3 - A questão a decidir é a de saber se o direito de regresso por abandono de sinistrado, contemplado pela al. c) do art. 19 do DL 522/85, de 31 de Dezembro, apenas existe quando do abandono resulte agravamento das consequências produzidas pelo acidente.
O art. 19 daquele diploma, relativo ao "Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel" confere o direito de regresso à seguradora que tenha satisfeito a indemnização ao lesado, em diversos casos previstos nas suas alíneas a) a f). A alínea c) contempla como obrigados de regresso o condutor se "não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandono de sinistrado".
Alguma jurisprudência deste Supremo - Acórdãos de 5 de Março de 1999, BMJ 455, pág. 513, e de 27 de Janeiro de 1993, in CJ-STJ, pág. 104 - tem interpretado restritivamente aquela norma no sentido de que o direito de regresso não abrange os danos que sempre se produziriam, com ou sem abandono, sendo este de todo irrelevante quanto ao risco. E, em consequência, impor-se-ia à seguradora, que invocasse o direito de regresso, o ónus de alegar e de provar que, para além dos danos do acidente, houve outros ou o agravamento daqueles, em resultado do abandono.
A letra da lei não favorece este entendimento. E a sua razão de ser parece de molde a afastá-lo, como se vai ver.
O "Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel" foi instituído pelo DL 408/79, de 25-9, dando satisfação, como se refere no seu relatório, às recomendações da "Convenção Europeia para o Seguro Obrigatório Automóvel (Convenção de Strasbourg de 1959) e foi depois alterado pelo DL 522/85, de 31-12, actualmente em vigor, dando cumprimento à 2ª Directiva do Conselho das Comunidades, de 30 de Dezembro de 1983.
É reconhecido na doutrina o papel desempenhado pelo seguro no alargamento e despersonalização da responsabilidade e socialização do risco abarcando sectores cada vez mais largos da responsabilidade civil - Diogo Leite de Campos, "Seguro da Responsabilidade Civil Fundada em Acidentes de Viação", pág. 15. O mesmo A. sublinha, a pág. 21 da mesma obra: "De individual a responsabilidade torna-se colectiva. A obrigação de reparar os danos causados é repartida entre os membros da organização seguradora; o encargo fracciona-se sob a forma de prémio entre os diversos segurados. Em vez de gravar, pesada e ocasionalmente, alguns patrimónios individuais, a responsabilidade onera, ligeira e periodicamente, uma multidão de patrimónios. Para o segurado, o problema da responsabilidade transforma-se num problema de repartição. A responsabilidade civil, com o seguro, de individual torna-se colectiva, socializa-se. O problema da indemnização deixa de respeitar às relações lesantes e ao lesado".
Por outro lado o seguro evoluiu no sentido da despersonalização do dever de indemnizar: reconhece-se ao lesado o direito autónomo de acção directa contra a seguradora, como que substituindo, prática e economicamente, ao seguro de responsabilidade civil o seguro directo do dano e substituindo o débito do responsável pelo da seguradora. - Cfr. A. citado pág. 22.
"A transição do seguro facultativo para o obrigatório reflecte uma significativa alteração dos interesses em causa. ---- No primeiro momento, o seguro, embora indo beneficiar o lesado, é contratado por quem quer tutelar o seu próprio património contra eventualmente pesadas obrigações de indemnizar. É, portanto, o interesse do segurado que prevalece. ---- Numa segunda fase, o legislador ao tornar o seguro obrigatório, fá-lo com vista à protecção dos eventuais lesados, colocando, deste modo, o benefício que de tal contrato resulta para o lesado na posição de finalidade principal do seguro". - A. cit. pág. 23.
O DL 408/79 já no relatório confessava o propósito de "remediar as carências e as gritantes injustiças que não obrigatoriedade do seguro automóvel de responsabilidade civil determinava, sendo um factor importante na protecção dos legítimos interesses dos cidadãos" e o mesmo acontece com o vigente DL 522/85, em cujo preâmbulo se refere que "a institucionalização do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel revelou-se uma medida de alcance social, inquestionável, que, com o decurso do tempo apenas impõe reforçar e aperfeiçoar, procurando dar uma resposta cabal aos legítimos interesses dos lesados por acidentes de viação".
A obrigatoriedade do seguro veio trazer estas inovações (os preceitos a citar de ora avante, sem menção de diploma referem-se ao vigente DL 522/85): interdição de circulação dos veículos terrestres a motor, a respeito dos quais não tenha sido satisfeita a obrigação de segurar (arts. 1 e 30); direito de acção directa do lesado contra a seguradora (art. 29, n. 1); numerus clausus de excepções oponíveis pela seguradora ao lesado (art. 14), reserva da seguradora na direcção da acção judicial, sem exigência de intervenção do responsável (art. 29, n. 1 e 2).
Mas, como é sabido, a responsabilidade civil, tem uma dupla função reparadora e sancionatória (e preventiva) - Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5ª ed. pág. 888/889 e Jorge Sinde Monteiro, "Estudos sobre a responsabilidade civil", pág. 30. Como sublinha, no local citado, na medida em que os próprios actos culposos são cobertos pelo seguro, apaga-se a função sancionatória (e preventiva) e a responsabilidade reduz-se a mero instrumento de reparação. Isso é assim porque a condução de veículos automóveis implica o cometimento de erros, excluindo o direito de regresso por essas culpas, ultrapassada a concepção de que o seguro apenas deveria cobrir os sinistros fortuitos. Mas razões de justiça e de prevenção do acidente levam o legislador, a introduzir fenómenos de personalização da responsabilidade, ao consagrar o direito de regresso nas situações previstas nas diversas alíneas do art. 19 contra o causador do acidente que o tenha provocado com dolo (a); os autores, cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente (b); o condutor se não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado (c); o responsável civil por danos causados a terceiros em virtude de queda da carga decorrente de deficiências de acondicionamento (d); o tomador do seguro, nos termos do n. 2 do art. 6 do DL 162/84 (e), de 18-5; o responsável pela apresentação periódica que não tenha cumprido a obrigação decorrente do disposto no n. 2 do art. 36 do CE e diplomas que o regulamentam, excepto se provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo (f). - Cfr. neste sentido, A. ultimamente citado, pág 175/176.
A letra do preceito e ainda o seu espírito de prevenção que lhe preside convencem que o abandono voluntário do sinistrado confere direito de regresso à seguradora, independentemente de ele ter agravado os danos. Aliás, se o legislador pretendesse limitar o direito de regresso pelo abandono às situações de agravamento, não deixaria de acrescentar essa restrição como o fez em relação ao sinistro ocorrido com veículo que não foi submetido à inspecção periódica (alínea f)). E, igualmente, sobre ele e não sobre a seguradora, deveria incidir o ónus da prova de que o abandono não agravou os danos.
Neste mesmo sentido se pronunciou o Acórdão deste Tribunal de 4 de Abril de 1995 (Martins da Costa), in CJSTJ pág. 151, cujo sumário e descritores não respeitam ao conteúdo do mesmo.
Em conclusão: o direito de regresso da seguradora, contra o condutor, quando haja abandonado o sinistrado, contemplado pela al. c) do art. 19 do DL 522/85, tem a finalidade preventiva e não está limitado aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado.

Decisão:

- Concede-se a revista, revoga-se o acórdão e a sentença que confirmou e, em consequência, julga-se a acção procedente, condenando-se o R. na quantia peticionada e juros.
- Custas neste Supremo e nas instâncias pelo R.
Lisboa, 29 de Abril de 1999.
Dionísio Correia,
Quirino Soares,
Herculano Namora.