FARMÁCIA
HERANÇA INDIVISA
DELIBERAÇÃO SOCIAL
ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
INDIVISIBILIDADE
LITISCONSÓRCIO
SOCIEDADE
QUOTA SOCIAL
Sumário

1. Na legislação reguladora de farmácias o princípio fundamental é o da indivisibilidade entre a propriedade da farmácia e a sua exploração, e gerência técnica.
2. O direito social de requerer a anulação de deliberações sociais compete, no caso de quotas pertencentes a uma herança indivisa, ao conjunto de todos os herdeiros, sendo caso de litisconsórcio necessário activo.
3. Os princípios reguladores do destino de farmácia que esteja integrada no conjunto de bens de uma herança são estes:
I - Sendo um dos herdeiros farmacêutico ou aluno de farmácia (base III da Lei 2125):
a) Se ele não se opuser a quota é-lhe adjudicada, adjudicação essa que pode ser feita:
- em partilha extrajudicial, pelo valor acordado;
- em inventário, pelo valor acordado ou fixado no inventário;
- em acção de arbitramento, pelo valor encontrado pelos árbitros e homologado.
b) Se ele se opuser ou não aceitar os valores fixados ou, sendo aluno, não concluir o curso no prazo de 6 anos por facto que lhe é imputável, regem as regras de Base IV da mesma lei.
II - Sendo a quota adjudicada a herdeiro não farmacêutico nem aluno de farmácia (Base IV) :
a) a quota deve ser objecto de alienação a favor do farmacêutico, no prazo de 2 anos, sob pena de caducidade do alvará;
b) esse prazo conta-se da abertura de herança, salvo se houver inventário obrigatório.
4. Quando se trata da parte social da quota em sociedade farmacêutica, o preceituado nas Bases III e IV aplicar-se-á com as devidas adaptações.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A, e B, intentaram na comarca de Viana do Castelo acção com processo ordinário contra C, denominada farmácia Nelsina, pedindo a declaração de nulidade da deliberação, tomada em Assembleia Geral extraordinária da ré em 08-02-97, de divisão em duas de uma das quotas de uma sócia, para ceder uma delas a um estranho à sociedade de que os ora AA. são sócios em 1/3 do capital, divisão e cessão que, efectivamente, já tinham acontecido em escritura pública de 09-10-96, cuja declaração de nulidade também pedem.
Alegam, para fundamentarem o pedido, a violação da cláusula 6 do pacto social (a cessão de quota a favor de estranhos depende do consentimento do sócio não cedente que terá sempre direito de preferência).
A ré contestou excepcionando a caducidade da acção e o facto de os AA. serem titulares em comum de uma quota, adquirida por sucessão por morte, não sendo farmacêuticos nem alunos de farmácia, devendo já ter cedido a quota nos termos da Base IV da Lei 2125. Pediu ainda a condenação dos AA. como litigantes de má fé.
Em saneador-sentença, a M.ma juíza julgou improcedente a excepção, considerou correcta a posição dos AA. em litisconsórcio necessário activo, julgou improcedente a acção por considerar não ter havido violação do pacto nem das regras de preferência, e julgou ainda improcedente o pedido da ré de condenação dos AA. como litigantes de má fé.
Inconformados, os AA. apelaram, sem êxito porém, já que a Relação confirmou a decisão de 1ª instância.
De novo inconformados, pedem revista, tendo produzido alegações onde concluem pela forma seguinte:
1 - A junção da escritura exarada no 12º Cartório Notarial e certidão de inscrição na faculdade de Farmácia de Lisboa, ao abrigo do disposto no art. 706, n. 1 do CPC é pertinente para a decisão da causa.
2 - O disposto no art. 222, n. 1 do CSC concede aos recorrentes os direitos inerentes à função da sociedade e por maioria de razão os mesmos direitos ficam satisfeitos pela confirmação dos requisitos das Bases IV, n. 1 e V da Lei 2125 de 20-03-65.
3 - Devido à existência na sociedade requerida de quota maioritária de 2/3 a favor da D, não está em causa o alvará da recorrida.
4 - A situação do recorrente A, na qualidade de herdeiro e estudante de Farmácia, vem reforçar o princípio da indivisibilidade da propriedade de farmácia da recorrida que não transita para as mãos de terceiros estranhos à sociedade.
5 - A não existência de "omissão" na cessão de quota dos recorrentes, deve-se às prorrogações concedidas pelo INFM (Infarmed) que no escopo da lei aceitaram a regularização da situação do recorrente A, como estudante de farmácia.
6 - O prazo do n. 1 da Base IV para cessão de quota, de 2 anos, não é prazo peremptório.
7 - As responsabilidades sociais consignadas no art. 222, n. 4 do CSC são acrescidas com a unificação da quota a favor do recorrente A, e o facto de ser aluno de farmácia.
8 - À luz da cláusula 6ª do pacto social da recorrida e nos termos do art. 228, n. 2 do CSC assistia aos recorrentes o exercício de preferência na divisão da quota.
9 - O consentimento prestado na AG extraordinária de 08-02-97, em que é deliberada a divisão da quota deve ser considerado nulo e desprovido de eficácia jurídica.
Contra-alegando, a recorrida pugna pela manutenção da decisão.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir, para o que importa considerar os seguintes factos que vêm provados das instâncias:
1- O objecto social da ré é farmácia:
2- Por sucessão hereditária de E, e mulher, os AA. adquiriram em comum e sem determinação de parte ou direito, uma quota da ré no valor de 333250 escudos, por herança aberta a 17-11-93.
3- O restante capital da ré compunha-se, à data de tal sucessão, de duas quotas, uma de 500000 escudos e outra 166750 escudos, ambas na titularidade de D.
4- Por escritura pública de 09-10-96, D declarou dividir a quota de 166750 escudos em duas novas quotas, sendo uma de 146750 escudos, reservada para si, e outra de 20000 escudos que declarou ceder a F, pelo preço de 1500000 escudos, sendo a cessão aceite por esta e autorizada pelo marido da cedente.
5- Em assembleia geral extraordinária, efectuada na sede da ré, em 08-02-97, foi deliberado, com o voto contra dos AA. autorizar a divisão de quotas tal como foi descrita na escritura referida.
6- Só em tal assembleia os AA. tomaram conhecimento da existência da escritura de cessão de quota de 09-10-96.
7- Nos termos da cláusula 6ª do pacto social da ré, a aquisição de quota por estranhos à sociedade depende do consentimento do sócio não cedente, que terá direito de preferência.
8- Nenhum dos AA. é farmacêutico nem estudante de farmácia.
Antes de prosseguirmos, vamos, desde já, afastar a desgarrada conclusão 5ª que traz questão nova e nem sequer estribada em factos ou documentos, e ainda que o estivesse, não mereceria acolhimento.
Os recorrentes colocam as seguintes três questões à consideração deste Supremo, duas delas já objecto da apelação:
- a pertinência dos documentos apresentados ao relator, no tribunal da Relação, antes dos vistos;
- a não qualidade de sócios dos recorrentes;
- a eventual violação da cláusula 6ª do pacto social da recorrida.
1ª questão:
Pretendem os recorrentes que sejam tomados em consideração, ao abrigo do art. 706, n. 1 do CPC, a escritura de partilhas efectuada em 11-11-98 entre eles, na qual foi atribuída a totalidade da quota ao Autor A, e a certidão de inscrição na faculdade de Farmácia de Lisboa deste mesmo A.
Dispõe a referida norma adjectiva que "as partes podem juntar documentos às alegações nos casos excepcionais a que se refere o art. 524 ou nos casos de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância". Como os recorrentes não especificam qual o segmento da norma em que se baseiam, temos de a decompor, para ver como pode este tribunal apreciar da sua razão:
a) casos excepcionais a que se refere o art. 524 do CPC - este Supremo já julgou que "constitui matéria de facto decidir, para os efeitos do art. 524 e do n. 1 do art. 706 do CPC se a apresentação dos documentos não foi possível até ao encerramento da discussão em 1ª instância, se os factos que os documentos se destinam a provar são posteriores aos articulados ou se a sua apresentação se tornou necessária por virtude de ocorrência posterior" (Ac. de 25-02-75, BMJ 244, p. 281; no mesmo sentido, ainda o deste Supremo de 12-01-94, BMJ 433, p. 467). Ora, são insindicáveis pelo Supremo questões de facto, salvo a ampliação prevista no n. 3 do art. 729 ou a situação do art. 722 n. 2, do CPC. Nenhuma destas duas situações se verifica, pelo que é inaplicável a 1ª parte do art. 706 para fundamentar a posição dos recorrentes.
b) necessidade de junção por força do julgamento proferido em 1ª instância - com a 2ª parte do n. 1 do art. 706 do CPC, quis o legislador "cingir-se aos casos que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não poderia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida, significando o advérbio "apenas", inserto no segmento normativo em causa, que a junção só é possível, se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª instância. Assim, a junção de documentos às alegações da apelação só poderá ter lugar se a decisão de 1ª instância criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes não contavam" (Ac. deste Supremo de 12-01-94, acima cit.).
Ora, nada disto se verifica no caso sub judicio. Os documentos destinam-se a provar que, a partir de 11-11-98 foi partilhada a herança que se encontrava indivisa desde 17-11-93, ficando o AA. com a quota em causa, e que o mesmo se encontra inscrito no ano lectivo de 98-99 numa faculdade de Farmácia. Estes documentos são total e juridicamente inócuos para decidir a questão.
Em 1º lugar, porque o que é necessário, segundo a lei, é que o herdeiro já seja aluno de farmácia à data da abertura da herança. A Base III n. 1 da Lei 2125 é muito clara e incompatível com a tese dos recorrentes. Quando muito, poderia ser passível de uma interpretação extensiva se o agora titular da quota fosse aluno de farmácia no decurso do prazo de 2 anos previsto no n. 1 da Base IV; em 2º lugar, porque a partilha da herança não retroage à data da abertura da herança para, desta forma, e em conjugação com a inscrição do A, ficcionar que não houve qualquer solução de continuidade, com o fim de o apresentar agora como herdeiro aluno de farmácia. Não podem os recorrentes criar neste momento uma situação jurídica para aplicar os seus efeitos retroactivamente. Improcede, assim, a 1ª conclusão, e por arrastamento, as conclusões 4ª e 7ª.
Nada há a censurar no acórdão recorrido pelo facto de não ter tomado em consideração os referidos documentos que, realmente, não são pertinentes para a decisão.
2ª questão:
Persistem os recorrentes em voltar a colocar esta questão que as instâncias já resolveram, concluindo que, "muito embora se possa discutir a qualidade de sócios, não podem os AA. ser impedidos de exercer os direitos que lhes são inerentes". E só poderiam ser impedidos, se a sentença e/ou o acórdão recorrido tivessem acolhido a tese da ré. E esta foi rejeitada. Os recorrentes parece não terem ainda entendido que o facto de serem considerados juridicamente como contitulares da quota - que sem dúvida eram, pouco importando a situação actual após a partilha de 11-11-98 - e não sócios da sociedade, não lhes retirou o exercício de qualquer dos seus direitos, nem foi por causa de não serem sócios que lhes foi negada a pretensão deduzida em juízo.
Os arts. 222 n. 1 do CSC, 2091 n. 1 do CC e 28 n. 1 do CPC são os fundamentos legais para que os AA. pudessem estar legitimamente em juízo, deduzindo a pretensão tal como o fizeram. E a sua posição é aferida à data da propositura da acção. Nessa altura eles eram contitulares de uma quota adquirida por sucessão "mortis causa". Nessa medida, o direito social de requerer a anulação de deliberações sociais compete, no caso de quotas pertencentes a uma herança indivisa, ao conjunto de todos os herdeiros, através de representante comum. Trata-se, portanto, como foi acentuado nas instâncias, de um caso de litisconsórcio necessário activo.
É certo que é diferente a actual situação, por força da partilha da herança efectuada em 11-11-98, em que a quota deixou de estar indivisa para passar a pertencer, por inteiro, ao Autor A. Mas, como já acima se disse, esta situação actual não tem interesse jurídico para a resolução do caso, que é saber se o pacto foi violado.
Por já devidamente apreciada, e bem, esta questão, pese embora a incompreensível persistência dos recorrentes nela, plasmada na 2ª conclusão, dispensamo-nos de a voltar a debater, remetendo para a argumentação aduzida nas decisões das instâncias.
3ª questão:
Esta é, sem dúvida, a questão fundamental a decidir.
Dispõe a cláusula 6ª do pacto social (fls. 78 e 79): "São livres as cessões, totais ou parciais, de quotas entre os sócios; a favor de estranhos depende do consentimento do sócio não cedente que terá sempre o direito de preferência".
Face ao pedido, não se coloca, neste processo, a questão de saber se os AA. têm ou não preferência na cessão de quota, pois o que está em causa é apenas a declaração de nulidade da deliberação e, consequentemente, da escritura, por violação de uma norma do pacto social.
Para isso, há que atentar um pouco mais aprofundadamente na legislação que rege a matéria: a Lei 2125 de 20-03-65 e o DL 48547 de 27-08-68.
O fim querido pelo legislador foi o interesse público que caracteriza a actividade de farmácia. E o princípio fundamental da legislação reguladora da matéria é o princípio da indivisibilidade entre a propriedade da farmácia e a sua exploração e gerência técnica, como forma de, assim, se defender melhor a saúde pública (Dr. Abel Mesquita, Direito Farmacêutico anotado, ed. 1996, p. 153-155). O legislador quer que proprietário e director técnico de farmácia, não só sejam farmacêuticos, como também sejam a mesma pessoa (quando pessoa singular, é claro; se se tratar de sociedade, a lei continua a querer o mesmo. Tanto assim é que, neste caso, o alvará só pode ser concedido se todos os sócios forem farmacêuticos e enquanto o forem). Tal princípio está consagrado na Base II, ns. 1 e 2 da Lei 2125 e no art. 83 ns. 1 e 2 do DL 48547.
Mas como excepções à regra geral, podem surgir situações em que o princípio da indivisibilidade pode estar temporariamente ausente. Elas estão contempladas no art. 84 n. 1 do citado DL, aí constando, a par de outras, a situação de morte, que foi o caso no presente processo. Quid juris, em tais situações?
A Base III n. 1 da Lei 2125 prevê a situação de, com o falecimento do proprietário, haver herdeiros farmacêuticos ou alunos de farmácia; a Base IV contempla as hipóteses de os herdeiros não terem tais qualidades. Com efeito, dispõem:
Base III n. 1: Falecendo o proprietário de qualquer farmácia, se algum dos interessados directos na partilha for farmacêutico ou aluno do curso de Farmácia, ser-lhe-á, salvo oposição sua, adjudicada a farmácia pelo valor acordado ou, na falta ou impossibilidade legal de acordo, pelo valor fixado no competente inventário (...).
Base IV n. 1: Se a farmácia integrada na herança ou nos bens do casal vier a ser adjudicada a cônjuge ou herdeiro legitimário (hoje já não há esta distinção) que não seja farmacêutico ou aluno de farmácia, deverá, no prazo de 2 anos, ser objecto de trespasse ou de cessão de exploração a favor de farmacêutico, sob pena de caducidade do alvará. Este prazo conta-se da abertura da herança, salvo se houver inventário obrigatório.
Cotejando as Bases III e IV (quer nos ns. acima citados quer nas restantes normas) e a Base V, podemos configurar as seguintes hipóteses:
1.- Um dos herdeiros é farmacêutico ou aluno do curso de farmácia (Base III).
I - Se ele não se opuser, a quota é-lhe adjudicada. A adjudicação pode fazer-se:
a) em partilhas extrajudiciais, pelo valor acordado;
b) em inventário, obrigatório ou facultativo, pelo valor acordado ou fixado no inventário;
c) em acção de arbitramento, pelo valor encontrado pelos árbitros e homologado.
Há que anotar ainda o seguinte: a adjudicação a aluno de farmácia implica que conclua o curso no prazo de 6 anos a contar da 1ª inscrição.
II - Se ele se opuser ou não aceitar os valores fixados ou, sendo aluno, não concluir o curso no prazo de 6 anos por facto que lhe é imputável, regem as regras da Base iv (n. 4 da Base III).
2. - A quota é adjudicada a herdeiro não farmacêutico nem aluno de farmácia (Base IV).
- no prazo de 2 anos, a quota deve ser objecto de alienação a favor de farmacêutico, sob pena de caducidade do alvará. Este prazo é de caducidade, de natureza substantiva.
- o prazo de caducidade conta-se da abertura da herança, salvo se houver inventário obrigatório.
Estes são os princípios reguladores do destino da farmácia que esteja integrada no conjunto de bens de uma herança, isto é, a hipótese de sucessão no direito de propriedade de uma farmácia, sob o ângulo do respectivo alvará. Assim, se a farmácia, em certas condições, não for adjudicada ou encabeçada em farmacêutico ou aluno de farmácia, a lei prevê a sanção da caducidade do alvará, o que significa que o proprietário da farmácia perde a licença para exercer a actividade, sem prejuízo dos seus direitos sobre os outros bens, materiais ou não, que, no seu conjunto, constituem a farmácia.
Mas a farmácia pode aparecer sob a "roupagem" de sociedade - sociedade farmacêutica - em nome colectivo ou por quotas (Base II, n. 2). Quando isto acontece, há que ter sempre presente a distinção entre:
- a sociedade;
- os respectivos sócios (titulares de quotas da sociedade, mas não eles próprios, proprietários da farmácia, já que este direito pertence à sociedade e não aos sócios);
- a farmácia (que será uma universalidade constituída por um conjunto de bens, materiais e imateriais, de que é proprietária a sociedade);
- o alvará (que é apenas uma licença administrativa concedida ao proprietário da farmácia, neste caso à sociedade, para exercer a respectiva actividade, um dos bens imateriais que integra o património social, se todos os sócios forem farmacêuticos e enquanto o forem - Base II, n. 2).
Ora, quando se trate de parte social ou quota em sociedade farmacêutica, "o preceituado nas bases anteriores (Bases II e IV) aplicar-se-á com as devidas adaptações" (Base V).
E são, precisamente, as adaptações a fazer para aplicar os princípios consagrados nas bases anteriores que constituem tarefa árdua e bem demonstram o terreno lacunoso em que a lei se move.
Com efeito, no que toca à caducidade do alvará, é extremamente difícil proceder a tais adaptações. É certo que a lei (Base II, n. 1) estatui que o alvará caduca em todos os casos de transmissão, salvo nas hipóteses previstas na lei. E estas, são, sem dúvida, os casos de transmissão "mortis causa", indiscutivelmente durante o período de 2 anos . Mais discutivelmente passado este período. Mas o alvará é concedido à sociedade e quem infringe a lei, ou pura e simplesmente a ignora, não é a sociedade mas sim o herdeiro de um sócio. Então, apesar de o n. 2 da Base II prescrever que "o alvará apenas poderá ser concedido a (...) sociedades (...) se todos os sócios forem farmacêuticos e enquanto o forem, se algum perder esta qualidade, não se concebe que se aplique à sociedade uma sanção (caducidade do alvará) pela conduta omissiva do herdeiro de um sócio, que, afinal, se castigue, embora indirectamente, o sócio que é farmacêutico e que não prevaricou.
Sendo assim, a referida norma tem de ser interpretada restritivamente, visando apenas a concessão e não impondo, implicitamente, como à primeira vista parece, a sanção da cassação.
O alvará, como simples licença administrativa, é indivisível. Ou é concedido ou é cassado, sempre na totalidade. Não é possível fazer caducar o alvará parcialmente, em relação a uma quota, enfim, decidir que a quota de 1/3 da sociedade proprietária da farmácia não tem o direito de exercer a actividade. Quem exerce a actividade é a própria sociedade, pessoa diferente dos titulares das respectivas quotas, e a sociedade ou tem licença para exercer a actividade ou não tem.
Poderá, então, a sanção ser a nulidade? E, neste caso, que acto seria ferido de nulidade? Certamente, nunca o da sucessão, por ser conclusão aberrante. Será o acto da posterior partilha que não conduza à adjudicação da quota social a farmacêutico ou aluno de farmácia, passados 2 anos sobre a partilha sem posterior transmissão da quota?
Repugna aceitar esta solução sancionatória que vai muito além da sanção da caducidade do alvará. A nulidade tem por objecto actos que respeitem ao direito de propriedade da quota social, com todos os direitos que lhe são inerentes, e não apenas a licença para o exercício da actividade.
Por outro lado, temos por abuvisa - por desvio de finalidade - a utilização das regras relativas ao licenciamento (que visam alegadamente defender a saúde pública), para dirimir interesses materiais (de grande vulto, já que o "negócio da farmácia" parece ser dos mais rentáveis e cobiçados) entre os sócios de uma sociedade proprietária de uma farmácia.
É precisamente por isto que situações destas conduzem, em regra, a impasse que a Administração se sente incapaz de sancionar, dada a evidente falta de base legal.
No nosso caso, uma de duas: ou se entende que o alvará caducou, o que significa que a sociedade ré já não pode exercer a actividade farmacêutica; ou se entende que essa sanção não cabe aqui, visto ser indevido sancionar a sociedade e não ser possível fazer incidir tal sanção sobre uma quota social.
De qualquer modo, com ou sem alvará para o exercício da actividade farmacêutica, a sociedade continua a existir e a ser dona do respectivo património, podendo os sócios exercer os seus direitos sociais, entre os quais se conta, de harmonia com o pacto, o da alienação de quota social - coisa diferente da universalidade que é a farmácia e, mais diferente ainda, do elemento desta que é o alvará - depender do consentimento do sócio não cedente.
Portanto, será sempre à luz do pacto que o pedido deverá ser apreciado. E, face ao disposto no art. 6 do contrato, a cessão de quotas a favor de estranhos depende do consentimento do sócio não cedente, que terá sempre o direito de preferência.
Não nos pronunciaremos quanto a este, porque fora do contexto.
Mas houve, sem dúvida, violação do pacto, porque a cessão parcial da quota, depois de dividida esta, processou-se sem o consentimento dos AA.. Assim, a deliberação de 08-02-97 é anulável nos termos do art. 58 n. 1 a) do CSC. Da mesma forma, e por motivo idêntico, é anulável a escritura pública de 09-10-96, que precedeu a deliberação.
Posto isto, e face à legislação especial sobre farmácias, não faltará quem pergunte como acabar, então, com uma situação como a dos autos. A iniciativa terá sempre de partir do sócio farmacêutico, através dos mecanismos previstos no CSC.

Nestes termos, concede-se a revista e declara-se anulada a deliberação tomada em AG da ré em 08-02-97, de divisão em duas de uma das quotas da sócia D, para a ceder à F, e declara-se anulada a escritura pública celebrada em 09-10-96 através da qual aquela sócia operou a divisão da quota e cedeu uma parte à referida F,.
Custas, neste Supremo e nas instâncias pela recorrida.
Lisboa, 17 de Junho de 1999.
Sousa Dinis,
Miranda Gusmão,
Sousa Inês.